Home Poesia Prosa Traduções Colaborações Arquivo Contatos

Bem-vindo à homepage de Renato Suttana.

Van Gogh

 

A CASA AMARECENTE

 

(Miguel Carneiro)

 

... todas as cruzes das aldeias, as mesmas cruzes

que dominam os nossos mortos...

(André Malraux, em Le Temps du Méprís)

 

A primeira vez que estive na casa amarecente, eu era apenas uma criança acompanhando um ancião, em sua caminhada pela pequena cidade. Eu não entendia por que aquele homem de olhar perdido, terno verde-musgo, vivia cercado de tantos mistérios. Deduzi que se abatia sobre ele uma névoa de tristeza.

 

Sempre, sempre aos sábados o velho tomava as minhas mãos como bengala, para que eu o conduzisse à casa doze da Rua Coronel Marcolino Mascarenhas. Retiravam de um quarto escuro grossos livros forrados de tecido azul e passavam um quarto de hora a manusear aqueles manuscritos, com uma pequena lupa, em silêncio. Ao fundo, o mihrab indicando o caminho para se chegar a Deus. Um dia, pelos sussurros, descobri que os exemplares que manuseavam, tratava-se do Livro das Canções de Abul-al-Faradj. Ambos estavam ficando cegos e em algumas ocasiões auxiliei-os também na procura da garrafa de cognac que escondiam na dispensa da casa. Brindavam um ou dois cálices. O tempo suficiente para que o sino repicasse na hora do Ângelus. Despediam-se sem trocar apertos de mãos, depois eu segurava as mãos trêmulas do velho pelas escuras ruas do arruado.

 

Por alguns meses, o velho esteve com problemas de saúde. O reumatismo o atacara sem piedade, deixando-o acamado. Nesse período, o homem de terno verde não viera lhe visitar e nem por isso deixaram de trocar correspondência.

 

À noitinha eu era portador de um pacote ocra, para ser entregue na residência do seu amigo. Da nossa casa à do homem, eu teria de atravessar a praça. Neste horário, o farmacêutico estava na porta, de olhar enviesado, jogando dominó com os comerciantes vizinhos. Adiantado o passo, alcançava a casa do destinatário. Ele sentado placidamente na sua cadeira de espaldar, trocávamos, silenciosamente, o tal pacote por um saco de bombons, que eu devorava no trajeto de volta. Ao chegar em casa, o velho já estava à mesa orando os Salmos de Davi, preâmbulo de quase todas as refeições. Com a cabeça indicava-me que eu sentasse para o jantar. Na mesa, ninguém sabia do pacote ocra.

 

Os coronéis foram marchando um a um, como espigas esquecidas de uma plantação, e as ruas ficando cada vez mais desertas. O mata-pasto invadindo as soleiras das portas, e as pesadas janelas despencando sobre o parapeito de carrara. Dias que parecia uma cidade fantasma. Não havia ninguém às ruas, apenas o sol queimando os narcisos das Moças da Jurema.

 

Quando retornava do Osvaldo Cruz, meu velho estava na porta, grifando um velho livro de Cura D’Ars. O tempo parecia atingível, não escorria de minhas mãos pequenas. O azulão do avarandado cantando de estalo e Cassimira voltando do Jacuype com as roupas alvas de anil. O tempo tinha cheiro de roupa lavada.

 

 

Retorna ao topo

Outros escritos de Miguel Carneiro