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Nicolau Saião, Página do Livro das Pátrias (pormenor)

 

“PORTA-RETRATO” E OUTROS POEMAS

 

(Miguel Carneiro)

 

 

 

DEVER DE CASA

 

Eu atravessei o deserto da loucura

entre tapas, solavancos e contramão

beijei a face da solidão

e não fiquei no poço

vi companheiros estendidos

no caminhar desesperado das décadas

naquele fosso

sem bandeiras e sem ganhar batalhas

ilustrei antologias de supostos amigos

no pomar árido da exibição

nem assim me ancorei

como um naúfrago À espera de salvação

viajei com meu barco a vela

no mar tempestuoso da paixão

renascido das cinzas

debuxo num papel-manteiga:

meu caderno de anotação

 

 

 

 

SETE PASSAGENS

 

Madapolão, madapolão, madapolão
sete sinos em carrilhão
sete noites sem dormir
São Severino venha nos acudir...

Bogarim, cambraia, cetim
sete luzes num palco
sete luas sem Serafins
São Severino venha nos iludir...

Brim, anarruga, chitão
o dedal de ouro
São Severino que tesouro
nos livre de tanta assombração...

Tergal, casimira, algodão
São Roque nos livre da peste
São Severino dos Ramos, nos afastai
de toda a escravidão...

Seda, linho, cassa
toda brancura duma praça
o negror de um marroquino
São Severino não me apareça de graça...

Jérsei, sarja, tafetá
onde é que se está
nesta aporrinhação?
Livrai-me, São Severino, de todo ladrão...

Tricoline, popeline, chifon
na Bahia o bom
tá pra nascer escondido
Valei-me, São Severino, de todo ato esquecido

 

 

 

FÃ CLUBE

 

(Para uma antiga namorada)

 

Eu passsei uma década inteira

me escondendo de você

ouvindo no rádio da vizinha

todas as tuas canções

com teu cd colado a mim

aquela voz num labirinto sem fim

Tinha dias

quando a saudade batia

eu dormia

em plena nostalgia

Mandei carta apaixonada

voce me esnobou

Queria te pegar pela mão

pra gente passear por Salvador

QUem vai dar bola prum poeta

querer se encharcar de amor

Não se importe, não

Vou abrir uma caixa postal

vou botar teu nome no jornal

só pra voce se achar imortal

só assim me vingo desta paixão infernaL.

 

 

 

TROVEJO

 

Avisa aos tropeiros que a tropa não vai mais partir...

Os cincerros estão enferrujados

não badalam durante a caminhada

e a Mãe da Tropa está velha para a empreitada...

Avisa aos tropeiros que irei soltar os burros dos paus

e os clientes não esperem os caixotes de rapadura

O Tempo que se abateu levou lonjuras

A tropa fez a sua última viagem

não volta mais aos Sertões...

 

 

 

Ao poeta e irmão Renato SuttanA

 

O teu coração mineiro

Veio buscar agasalho

Em terras do Pantanal...

Teu velho pai há pouco

Deus o levou para o Paraíso

E Minas foi ficando

Como um cartão postal

A paisagem do cerrado

Na poeira da retina

Sem as montanhas de Minas

Sem um rio onde se possa banhar

Guarapuava ficou pra atrás

Lá longe no Paraná

E em terra alheia toca teu ofício:

De poeta e educador

Ah! Renato!

Um dia vamos nos encontrar

Tomar um gole de cerveja

Pitar um cigarro de palha

E vamos nos abraçar.

 

Bahia, 15 de outubro de 2009

 

 

 

Alforriado de Mim

 

Passei minha vida

aprendiz de Loja Maçônica

que sequer cheguei a freqüentar

esqueci de mim

sem saber onde me encontrar.

Marcas de sofrimento pelo rosto

testemunhos das auroras que cruzei...

O cabelo prateado nas frontes

besteiras que eu próprio pratiquei...

Os pés embrutecidos de calos

caminhos que um dia alcancei...

A corcunda com que me apresento

porradas que da vida levei...

Pela retaguarda sempre fiquei

sem saber ao certo meu nome:

basco, mouro,

cristão-novo, mulato

não questiono minha etnia

sou como sou, de fato.

Fui apenas escravo de meu destino

que eu próprio tracei de compasso.

em Anoldo de Sacrifício me disfarço

para segurar com denodo

tudo aquilo que faço.

Não promovo querela de sapos

coaxando numa algazarra de amargura.

Vivo nessa eterna busca de ternura...

Meus inimigos a espreita

querendo sem custo a jugular

mas o carcás ainda trago a mão.

Sem jamais me importar

com tantos canalhas

e seus discursos de comiseração.

 

 

 

 

PORTA-RETRATO

 

Meu pai foi soldado da Cavalaria

e herdamos de suas bravatas

apenas aquela fotografia fardado,

de quepe, coturno e sabre,

num porta-retrato

que minha irmã Angélica

conserva com grande alegria.

Meu tio Lazinho quis ser profeta

e pelo mundo vagou

de Bìblia na mão.

No seu sermão

misturou tarot

e a sua própria dispersão.

Morreu em busca de um porto,

pobre e esquecido,

num rancho em Riachão.

Minha avó Judite louca, então,

blasfemava, blasfemava,

chamando o Cão.

Me tornei poeta

por força da ocasião,

faço versos, não minto,

fico feito uma besta

de dedo em riste,

no meio de tanta esculhambação.

 

 

 

 

HEMEOPATICAMENTE

 

Para Dr. Egberto Ferraz

 

Arsenicosum

bichromicum

chloricum

ferro cyanatum

iodatum

muriaticum

nitricum

phosphoricum

sulphuricum

kaolin.

 

 

 

 

AUTO-RETRATO

 

Sou das ante-salas

aquele que não se recebe

que o próprio tempo os enxota

bomba relógio no advir

sou poeta menor

desses inúmeros que vivem por aqui

Sou navalha afiada

na língua solta de Satanás

doce como cambucás

e cego de lembranças amigas

Não procuro versos raros

sou simples como a língua

que meu povo fala

e me afaga

Eu sou como sou

semelhante a Vladimir

Poeta

prestes a explodir.

 

 

 

 

“ZARATEMPO!”

 

Trago o tempo embrulhado num pacote,

dado o laço apertado e fita azul,

daquilo que fiz de errado,

das coisas que pude construir.

Aí guardo minhas lembranças

que jamais irão se diluir.

Trago o tempo embrulhado num pacote,

dado laço folgado

de tudo que perdi.

Muitas boiadas de alegorias,

inúmeras éguas de fantasias

e um cabedal sem fim.

Trago o tempo embrulhado num pacote,

dado laço singelo dentro de mim.

 

 

 

 

ALFARRÁBIOS SENTIMENTAIS

 

Eu também pertenci a Cachoeira

quando Riachão era um diminuto

termo encravado no Sertão

Trago a cidade heróica

dentro do meu peito

semelhante como um verdadeiro brasão

Tanta gente embalada

guardada em meu velho coração:

Neco de Liquita, Luiza Gaiaku,

Mateus e Dadinho,

Damário da Cruz,

João de Moraes Filho,

Alzira Power, Lu ...

A ponte de madeira

gemendo na tarde

O Jacuípe se encontrando

com o Paraguassu

Ò Cachoeira,

sou teu filho

desde os tempos em que andava nu.

 

 

 

 

FEITO ROBERTO CARLOS QUANDO ERA REI

 

Quando cavalgo meu amor nas antemanhãs,

e a deixo com a rédea entre as mãos,

meu amor me leva por paisagens,

que chego a sentir

o cheiro bom das hortelãs.

De cabresto solto, meu amor esquipa,

de forma bela como uma cortesã.

Eu não me importo em lhe dar freios,

meu amor cavalga por prados,

tendo em suas mãos os meus arreios.

Quando cavalgo meu amor nessas primaveras,

de sol ardente sem querer parar,

eu extasiado de tanto trepar,

peço a meu amor paciência,

para mais tarde a gente recomeçar.

Vou vivendo com meu amor,

Sem ter pressa para lhe amar,

seja o que a vida for,

seja o que a vida manda,

o que mais gosto é mesmo cavalgar.

 

 

 

CICATRIZ

 

Minha vida é feita de cacos velhos

que reconstruo pelos muros do meu quintal.

Paisagens e cinzas que ergo

quando a sombra da Norma lilás

cobre minhas lembranças na tarde sozinha.

Minha vida é feita de cacos velhos

entre cercanias de vizinhos curiosos

quando minha sogra louca

clama do tempo em exaustão.

Minha vida é feita de cacos velhos

que cortam a minha pele,

dilaceram,

quando os manuseio,

em busca do inexistente sertão.

 

 

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