“PORTA-RETRATO” E OUTROS
POEMAS
(Miguel Carneiro)
DEVER
DE CASA
Eu
atravessei o deserto da loucura
entre
tapas, solavancos e contramão
beijei
a face da solidão
e
não fiquei no poço
vi
companheiros estendidos
no
caminhar desesperado das décadas
naquele
fosso
sem
bandeiras e sem ganhar batalhas
ilustrei
antologias de supostos amigos
no
pomar árido da exibição
nem
assim me ancorei
como
um naúfrago À espera de salvação
viajei
com meu barco a vela
no
mar tempestuoso da paixão
renascido
das cinzas
debuxo
num papel-manteiga:
meu
caderno de anotação
SETE PASSAGENS
Madapolão,
madapolão, madapolão
sete sinos em carrilhão
sete noites sem dormir
São Severino venha nos acudir...
Bogarim, cambraia, cetim
sete luzes num palco
sete luas sem Serafins
São Severino venha nos iludir...
Brim, anarruga, chitão
o dedal de ouro
São Severino que tesouro
nos livre de tanta assombração...
Tergal, casimira, algodão
São Roque nos livre da peste
São Severino dos Ramos, nos afastai
de toda a escravidão...
Seda, linho, cassa
toda brancura duma praça
o negror de um marroquino
São Severino não me apareça de graça...
Jérsei, sarja, tafetá
onde é que se está
nesta aporrinhação?
Livrai-me, São Severino, de todo ladrão...
Tricoline, popeline, chifon
na Bahia o bom
tá pra nascer escondido
Valei-me, São Severino, de todo ato esquecido
FÃ
CLUBE
(Para
uma antiga namorada)
Eu
passsei uma década inteira
me
escondendo de você
ouvindo
no rádio da vizinha
todas
as tuas canções
com
teu cd colado a mim
aquela
voz num labirinto sem fim
Tinha
dias
quando
a saudade batia
eu
dormia
em
plena nostalgia
Mandei
carta apaixonada
voce
me esnobou
Queria
te pegar pela mão
pra
gente passear por Salvador
QUem
vai dar bola prum poeta
querer
se encharcar de amor
Não
se importe, não
Vou
abrir uma caixa postal
vou
botar teu nome no jornal
só
pra voce se achar imortal
só
assim me vingo desta paixão infernaL.
TROVEJO
Avisa
aos tropeiros que a tropa não vai mais partir...
Os
cincerros estão enferrujados
não
badalam durante a caminhada
e
a Mãe da Tropa está velha para a empreitada...
Avisa
aos tropeiros que irei soltar os burros dos paus
e
os clientes não esperem os caixotes de rapadura
O
Tempo que se abateu levou lonjuras
A
tropa fez a sua última viagem
não
volta mais aos Sertões...
Ao poeta e irmão Renato SuttanA
O
teu coração mineiro
Veio buscar agasalho
Em terras do Pantanal...
Teu velho pai há pouco
Deus o levou para o Paraíso
E Minas foi ficando
Como um cartão postal
A paisagem do cerrado
Na poeira da retina
Sem as montanhas de Minas
Sem um rio onde se possa banhar
Guarapuava ficou pra atrás
Lá longe no Paraná
E em terra alheia toca teu ofício:
De poeta e educador
Ah! Renato!
Um dia vamos nos encontrar
Tomar um gole de cerveja
Pitar um cigarro de palha
E
vamos nos abraçar.
Bahia,
15 de outubro de 2009
Alforriado de Mim
Passei minha
vida
aprendiz de
Loja Maçônica
que sequer
cheguei a freqüentar
esqueci de
mim
sem saber
onde me encontrar.
Marcas de
sofrimento pelo rosto
testemunhos
das auroras que cruzei...
O cabelo
prateado nas frontes
besteiras
que eu próprio pratiquei...
Os pés
embrutecidos de calos
caminhos que
um dia alcancei...
A corcunda
com que me apresento
porradas que
da vida levei...
Pela
retaguarda sempre fiquei
sem saber ao
certo meu nome:
basco,
mouro,
cristão-novo, mulato
não
questiono minha etnia
sou como
sou, de fato.
Fui apenas
escravo de meu destino
que eu
próprio tracei de compasso.
em Anoldo de
Sacrifício me disfarço
para segurar
com denodo
tudo aquilo
que faço.
Não promovo
querela de sapos
coaxando
numa algazarra de amargura.
Vivo nessa
eterna busca de ternura...
Meus
inimigos a espreita
querendo sem
custo a jugular
mas o carcás
ainda trago a mão.
Sem jamais
me importar
com tantos
canalhas
e seus
discursos de comiseração.
PORTA-RETRATO
Meu pai foi soldado da Cavalaria
e herdamos de suas bravatas
apenas aquela fotografia fardado,
de quepe, coturno e sabre,
num porta-retrato
que minha irmã Angélica
conserva com grande alegria.
Meu tio Lazinho quis ser profeta
e pelo mundo vagou
de Bìblia na mão.
No seu sermão
misturou tarot
e a sua própria dispersão.
Morreu em busca de um porto,
pobre e esquecido,
num rancho em Riachão.
Minha avó Judite louca, então,
blasfemava, blasfemava,
chamando o Cão.
Me tornei poeta
por força da ocasião,
faço versos, não minto,
fico feito uma besta
de dedo em riste,
no meio de tanta esculhambação.
HEMEOPATICAMENTE
Para Dr. Egberto Ferraz
Arsenicosum
bichromicum
chloricum
ferro cyanatum
iodatum
muriaticum
nitricum
phosphoricum
sulphuricum
kaolin.
AUTO-RETRATO
Sou das ante-salas
aquele que não se recebe
que o próprio tempo os enxota
bomba relógio no advir
sou poeta menor
desses inúmeros que vivem por aqui
Sou navalha afiada
na língua solta de Satanás
doce como cambucás
e cego de lembranças amigas
Não procuro versos raros
sou simples como a língua
que meu povo fala
e me afaga
Eu sou como sou
semelhante a Vladimir
Poeta
prestes a explodir.
“ZARATEMPO!”
Trago o tempo embrulhado num pacote,
dado o laço apertado e fita azul,
daquilo que fiz de errado,
das coisas que pude construir.
Aí guardo minhas lembranças
que jamais irão se diluir.
Trago o tempo embrulhado num pacote,
dado laço folgado
de tudo que perdi.
Muitas boiadas de alegorias,
inúmeras éguas de fantasias
e um cabedal sem fim.
Trago o tempo embrulhado num pacote,
dado laço singelo dentro de mim.
ALFARRÁBIOS SENTIMENTAIS
Eu também pertenci a Cachoeira
quando Riachão era um diminuto
termo encravado no Sertão
Trago a cidade heróica
dentro do meu peito
semelhante como um verdadeiro brasão
Tanta gente embalada
guardada em meu velho coração:
Neco de Liquita, Luiza Gaiaku,
Mateus e Dadinho,
Damário da Cruz,
João de Moraes Filho,
Alzira Power, Lu ...
A ponte de madeira
gemendo na tarde
O Jacuípe se encontrando
com o Paraguassu
Ò Cachoeira,
sou teu filho
desde os tempos em que andava nu.
FEITO ROBERTO CARLOS QUANDO ERA REI
Quando cavalgo meu amor nas antemanhãs,
e a deixo com a rédea entre as mãos,
meu amor me leva por paisagens,
que chego a sentir
o cheiro bom das hortelãs.
De cabresto solto, meu amor esquipa,
de forma bela como uma cortesã.
Eu não me importo em lhe dar freios,
meu amor cavalga por prados,
tendo em suas mãos os meus arreios.
Quando cavalgo meu amor nessas
primaveras,
de sol ardente sem querer parar,
eu extasiado de tanto trepar,
peço a meu amor paciência,
para mais tarde a gente recomeçar.
Vou vivendo com meu amor,
Sem ter pressa para lhe amar,
seja o que a vida for,
seja o que a vida manda,
o que mais gosto é mesmo cavalgar.
CICATRIZ
Minha vida é feita de cacos velhos
que reconstruo pelos muros do meu
quintal.
Paisagens e cinzas que ergo
quando a sombra da Norma lilás
cobre minhas lembranças na tarde
sozinha.
Minha vida é feita de cacos velhos
entre cercanias de vizinhos curiosos
quando minha sogra louca
clama do tempo em exaustão.
Minha vida é feita de cacos velhos
que cortam a minha pele,
dilaceram,
quando os manuseio,
em busca do inexistente sertão.
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