OUTRAS
GARATUJAS
(Mauro
Mendes)
A
ISCA
Pouco
te importaria o resto, se eu pudesse te dizer que sou feliz. Ao
contrário, o meu silêncio te perturba e as minhas palavras quase
sempre são mudas. Vê lá se não me sais uma azêmola, se não me
trazes um Kuat! Louco desperdício desta hora serena em que estamos
mais do que sendo três horas da manhã! Hora incerta, tempo
chuvoso... Quero um amor tipo Technos, “o suíço mais pontual do
mundo”, que saiba a hora de terminar e me deixe ir pelo mundo, o
mundo mais pontual do mundo! ...Foi quando ouvi esta balada, a me roçar,
talvez, as têmporas: “não deixes para dizer amanhã o que não
podes dizer hoje”! Rude e bela, à merencória luz dos tímpanos.
Ensurdeci. E o pranto meu quedoso e triste se foi sozinho a dedilhar
suaves melopéias. Pão e bolor. Levedo. Na página 850 do dicionário,
leio: “porro (ô). Adj. e S m. 1. (bot.) diz-se de um alho
silvestre (allium porrum) cultivado como planta hortense; 2. S. m.
calo que se forma no lugar de uma fratura”. Quem sabe? um verso
alegre a triturar um descabefo! Enchi! O meu e o teu! Brandas auras!
Todos os porros! Um amor tipo Technos, a desfolhar ao vento os sete
salmos da aleluia!
INSÔNIA
A
verdade de tudo quanto se diz ou se pensa não quero achar. É
progressivo e firme, em mim e em ti, o esquecimento, semente de tudo
que não se queria plantar. Agora, nós, separados de nós, depois e
muito além de nós. O que restou (ou poderia ter restado) do
passado nos devolve assim intactos, sem nenhum presságio. Existem
as palavras proibidas (ou inoportunas) e as que, simplesmente, não
ousamos dizer, pois só poderiam gerar idéias frágeis e, assim,
sucumbem sob o peso do seu exíguo tormento. Não caberia relatar
numa só página o que já coube, por inteiro, no coração, nem
desvendar desavenças, nem libertar antigas tramas do seu liame
forte de prender, de enredar. E quanto mais me enredo, menos penso,
menos amo, mais sou minha sombra oculta, meu segundo lugar. Há
muito o que sonhar e o que falta é um motivo sóbrio, que ocorra na
mesma forma em que me movimento e que dirige o meu próprio pensar.
Adiante jamais é um passo em vão, mas, sim, necessário à existência
de quedas e tropeços, que tornam trêmulo o plano dos olhos e o
horizonte do que se tem em vista. Muito tenho eu em vista e muito a
te dizer, de maneira que vás surgindo, lentamente, no vazio deixado
pelas palavras ao meu redor, assumindo formas que eu nem imagino,
formas da mais verdadeira loucura!
PESQUISA
Desci
para sondar as possibilidades de chuva. Desci do meu alto andar de
vista curta e horizonte inexistente. Desci assim, assim assim, com a
mão na testa, cobrindo os olhos do sol, como quem olha pra longe,
querendo ver muito perto. Assim assim. Como quem põe a mão na
testa, e sabe que tem a mão e tem a testa e, um pouco abaixo, tem
os olhos. Assim. O que eu queria dizer hoje é muito pouco: eu,
simplesmente, tinha de te encontrar e te amar e te esquecer, como
hoje, em que te esqueci completamente! Mas não era assim tão
simples, e esta aparente queixa não tem nenhum sentido, não
corresponde a nenhum sentimento, nem presente nem passado, apenas
existe vazia, vaziamente inexistente. Hoje, procuro, em vão, uma
maneira de te fazer sofrer. Por nada. Só por capricho, assim como
desci para sondar as possibilidades de chuva, assim como procuro, em
vão, uma maneira de te fazer chover. Mas as nuvens estão muito
altas e o céu muito claro. Não há nenhuma comparação, nenhuma
possibilidade. Só isto: as nuvens muito altas e o céu muito claro.
Não há sonhos nem saudade nem mágoas nem ressentimento. Apenas
este sol, que não tem nada a ver comigo e também não há nenhuma
possibilidade entre mim e esta manhã muito clara. Ela somente está
aí, no meio das coisas, como eu estou no meio das coisas, como não
estás no meio das coisas. Apenasmente.
P.S.
Voltei ao meu alto andar de vista curta e horizonte inexistente. Lá
embaixo, agora, a chuva cai, como uma estranha necessidade de te
lembrar...
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