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Alverto Lacet

 

O PADRE

 

(Mariston Rafael Alves)

 

Era 1970. Vindo de Grottammare, Itália - da província de Ascoli Piceno, em Marche, portanto no mar Adriático, a leste de Perugia e ao sul de San Marino, chegou à cidade um padre. Estava ali para ser o vigário do lugar, sucedendo o anterior - um certo padre José. Seu antecessor, crê Augusto Bandeira porque lhe disseram, havia se tornado monsenhor. Assim, como a cidade de dez mil habitantes não comportava tal posição hierárquica, ele foi cantar em outra freguesia. Augusto, ele mesmo, foi batizado por esse padre, o que lhe desagrada até hoje. Era por demais reacionário - pelos relatos que ouviu menino.

 

O italiano conquistou as pessoas do lugar sem que fizesse o menor esforço para isto. Augusto incluído. Devia ter exatos trinta anos. Caso nosso protagonista seja impreciso, terá sido por pouco. Logo uns gaiatos da cidade (gente muito jovem ainda) providenciaram vassouras para fazê-lo aprender a dançar. As discotecas eram, já, uma febre nacional. O sertão não estava de fora. Mais tarde – talvez 1976 – houve no lugar uma boate chamada 42 – e Augusto Bandeira não faz a menor ideia do porquê do nome.

 

Na cidade se dizia (os mais conservadores ou mais estúpidos mesmo) que ali havia inclusive quartinhos preparados para casais que quisessem usá-los com fins sexuais. Alçavam assim o 42 à condição de prostíbulo. Jamais houve tais quartos. Augusto conheceu todas as suas dependências. Contava 11 ou 12 anos mas podia frequentar. Esta era uma grande vantagem de ser filho de seu pai. Este, no entanto, jamais sonhou que o filho pusesse os pés ali e frequentemente. Proibiria certamente.

 

Sobre os quartos, significando transgressão, o que havia vez por outra era coisa bem distinta de um quarto de lupanar: um ou outro sujeito, flagrado com a namorada por algum homem da família dela, pulava um muro que ficava para além da pista de dança e, para infelicidade sua, caía exatamente dentro de um reservatório de água na casa vizinha, onde morava a professora de Matemática de Augusto. Para sorte do desafortunado, a professora, sempre gentil (ainda que enraivecida) permitia que ele alcançasse a rua em frente à sua casa - e sumisse.

 

Nessa boate, aos 12 ou 13 anos, Augusto Bandeira dançou pela primeira vez com uma garota. Juntinho. A música: Feelings, cantada por um sujeito chamado Morris Albert . Todos o tinham como americano, pelo óbvio. Mais tarde soube que, na verdade, o cara era brasileiro e se chamava – ou se chama - Maurício Alberto. Augusto percebeu, após a dança, que a moça de nome muitíssimo esquisito e que remete a riso havia feito uma concessão a ele. Ela devia ter 18 ou 19 anos e, certamente, dançara com um bebê. Um garotinho com certo esforço e no máximo. Augusto, por sua vez, teve uma ereção em público – a luz negra foi de grande valia para ele. Quase morreu de vergonha mas ela relevou o fato.

 

Voltando ao padre: não tardou muito e carolas do lugar o denunciaram ao bispo em cidade vizinha, Diocese à qual sua paróquia estava submetida. Também não tardou para que começasse a namorar uma mulher. Deixou a batina e casou-se formalmente. Tiveram uma filha. Que lembre, apenas uma. Pelo que soube (não o vê há seguramente quinze anos) o casamento se mantém.

 

Augusto Bandeira o tinha como muito inteligente (e era) além de afetuosíssimo (também o era e deve manter-se assim pois que essas coisas não se perdem). O padre costumava lhe dar pequenas atribuições na igreja, a qual ele frequentava desde sempre, acompanhando a mãe. Assim, embora não fosse propriamente coroinha, em certas quaresmas e páscoas – não foram todas enquanto frequentou a igreja – era incumbido de, na quarta-feira de cinzas, com o auxílio de uma varinha e de uma escada, cobrir todos os santos dos altares dali com uma túnica roxa. Permaneceriam assim por quarenta dias. Estavam enlutados pelo sofrimento de Jesus Cristo. No domingo de Páscoa, o trabalho inverso: despi-los das túnicas.

 

Havia, no entanto, uma recomendação - não sabe se do padre ou de uma senhora que cuidava para que a igreja funcionasse bem - a de cobrir e descobrir todos os santos, exceto a estátua do menino Jesus de aproximadamente seu tamanho, a qual ocupava um altar mais ao alto que os demais, sendo mais baixo apenas do que aquele ocupado pela Virgem (Nossa Senhora da Conceição, padroeira do lugar). Obedeceu. Entretanto, aquilo o intrigava e foi para casa pensando: esse santo deve ter pinto. Dia seguinte, o padre estava na sacristia e Augusto viu-se sozinho na igreja. Usou da varinha rapidamente para não ser visto e levantou as vestes do menino Deus. De fato, o pinto lá estava. Começou a rir. O padre o chamou: - o que houve? Rindo também, já. E ele: - nada, padre, lembrei de uma coisa engraçada. Ficou sério e levou Augusto à sacristia. Apresentou-lhe um sem-número de discos (devia haver uns duzentos ou mais) nas capas dos quais se lia, em letras pretas cursivas: Wolfgang Amadeus Mozart; Piotr Tchaikowsky; Schubert; Hoffmann; Berlioz, etc, etc. Assim, pela primeira vez nosso herói ouviu música erudita (e gostou).

 

O padre lhe tinha mandado escolher um dos discos para ouvir e ele escolheu Mozart. Casualmente. Ouviram então, naquela tarde, a sinfonia número 40. Escolha dele. Em outros dias Augusto ouviu vários outros compositores, sempre que o padre estivesse ali porque tinha ciúmes terríveis daquela belíssima coleção.

 

Nesse mesmo dia da audição, aproveitando do que entendia como erudição do vigário (e que jamais vira em alguém do lugar), perguntou-lhe sobre o significado da inscrição sobre a cruz de Cristo: INRI. Respondeu-lhe de chofre: Jesus Nazareno Rei dos Judeus. Frente à resposta, insatisfeito, nova inquirição de Augusto: - então, por que INRI e não JNRJ? Ao que ele respondeu: - em aramaico não existia J. Então, deve-se dizer Iesus Nazarenus Rex Iudeorum - já transposto para latim. Nosso herói gostou bastante disto.

 

Bem mais tarde, segundo soube, tornou-se prefeito da cidade. Não agradou a Augusto esta conversa.

 

Numa pequena digressão, Augusto Bandeira diz que o padre fez muitas coisas mais por ele. Na verdade, seguiu fazendo e ele percebia que havia gosto em fazê-lo. Gostava dele. Era 1979. Augusto teve sua primeira namorada. Com ferro em brasa, ele inscreveu os nomes num pedaço de couro recortado cuidadosamente e entregou aos garotos. Nesse mesmo ano, foram, Augusto e ela, ao cinema. Nessa época, a cidade tinha um cinema seu. Então, foram ele e sua namorada ao cinema, para assistirem a Gigliola Cinquetti estrelando Dio Come Te Amo. O filme, datado de 1966, chegou ao sertão da Bahia com 13 anos de atraso. No entanto chegou e o casal viu.

 

Sentaram-se, os dois, exatamente na fileira subsequente à que o padre estava com sua namorada e exatamente atrás deles. Augusto tinha por propósito ouvir possíveis comentários dele sobre os lugares da Itália nos quais o filme fora ambientado. Esticaria o ouvido o mais possível. Assim se deu. Ele mostrava a baía de Nápoles, o aeroporto (já no final do filme embora Augusto até hoje tenha dúvidas se a cena é incial ou final...) e comentara algo bem baixinho sobre sua localização (Nápoli) no centro da Itália. Fez uma distinção clara sobre a pobreza do sul italiano em oposição à riqueza do norte e citou Milano. Lembra-se como se houvesse sido ontem. Aqui e ali fez outras observações à namorada, audíveis por eles porque, embora estivesse falando baixinho, a voz era grave e o sotaque fortíssimo. Ele, bem educado, tentara conter a todo custo para não incomodar.

 

Num dia de 1977, o padre chamou Augusto Bandeira e sugeriu que fizessem um jornalzinho para a cidade. Ele e seus amigos, todos pré-adolescentes, sob a orientação dele. Fizeram e chamou-se A TURMADIT (nome prosaico do qual os meninos gostavam). Versava sobre diversos assuntos. Eram vários a escrevê-lo mas, embora tenha feito esforço sobrehumano para lembrar dos meninos e das meninas todos, Augusto lembrou-se somente de sua irmã e de dois dos amigos. O jornalzinho foi bem recebido e circulou por uns dois anos. Nosso protagonista datilografava tudo no escritório de seu pai.  Ele era bom nisso, desde os dez anos, quando o pai lhe ensinara numa máquina de escrever REMINGTON cor de cinza. Usando stencil para mimeógrafo a óleo, da igreja - porque o mimeógrafo do escritório de seu pai era a álcool e, portanto, a impressão saía inferior, faziam a tiragem.

 

Não sabe Augusto Bandeira, absolutamente, em que momento – nem por que – deixaram de publicá-lo.

 

A igreja, propriamente, deixou de frequentá-la a partir da páscoa de 1980. Houve um episódio que coroou o que já vinha pensando sobre ela, Deus, santos... enfim, sobre a religião: aquela senhora que cuidava da igreja foi ter à sua casa e chamou sua mãe. Era uma quinta-feira santa. Na sexta, haveria a procissão habitual. A via sacra. O homem que habitualmente fazia o papel de Jesus Cristo não poderia, desconhece-se o motivo. Enquanto Augusto dormia, a mulher falava com sua mãe. Acordou a tempo de ouvir grande parte da conversa. Quando sua mãe chegou a seu quarto para convidá-lo a carregar a cruz de Cristo no dia seguinte e, assim, ser o mártir da procissão daquele ano, Augusto Bandeira disse um não bem convincente. Sua mãe insistiu docemente. Aquela senhora, da copa de sua casa, disse: “- deixe. Se ele não quer, é melhor não insistir!”

 

Para encerrar sua vida eclesiástica de modo mais belo e menos ingrato, Augusto insiste em dizer a todos que, até hoje, gosta muitíssimo de ver – e ouvir – nas procissões do Senhor Morto, a Verônica cantar. Verônica foi uma personagem que enxugou o sangue de Jesus Cristo em um pedaço de linho. O linho que hoje conhecemos como Santo Sudário e que se mantém na catedral de Turim. Desde menino a aparição de Verônica sempre lhe causou comoção. Houve uma Verônica (houve muitas mulheres a representá-la nas procissões de lá) que ele ouviu por várias semanas santas: Nitinha. Filha adotiva da mesma senhora que o chamou a ser Cristo. Essa senhora jamais casou. Era moça velha – conhecem a expressão? Nitinha cantava lindamente, em latim, enquanto exibia o linho ao povo, em determinada estação da via crucis (não lembra mais ao certo qual seja mas talvez seja a décima terceira): ó vós homines... …sicto est dolor meu... O povo respondia, em uníssono: meo... meo... sicto est dolor meo. Augusto Bandeira esteve em sua cidade natal na semana santa de 2011 e, com seu filho, quis mostrar a ele a procissão in loco. No entanto, não havia Verônica. Houve apenas a citação de que ali, naquela estação, Verônica enxugou o corpo ensanguentado de Jesus Cristo. Verônicas, necessariamente, por exigência da igreja, tinham que ser imaculadas, no sentido de serem virgens de sexo. Risível que seja, Augusto crê – porque viu há pouco - que seja assim até hoje. E acredita que isto se dê pelo fato de a condição feminina, na crença católica, relacionar-se diretamente à suposta virgindade de Maria. À Mater purissimae, à Mater imaculatorum, à Mater castissimae, enfim, à Excelsa Virgem para quem compuseram toda uma ladainha belíssima e que ele tem de cor - em latim - apesar de ele não ter propriamente o domínio da língua.

 

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