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Max Ernst, Figura humana

 

MANIFESTAÇÃO QUASE PATRIÓTICA

 

(Renato Suttana)

 

Talvez não haja argumento convincente para contradizer a idéia de que uma das melhores coisas que podem acontecer a uma pessoa é nascer num país. E, antes que o último da fila se erga e proteste, dizendo que tal sugestão é apenas um truísmo, apressemo-nos a explicar que os truísmos – em que pesem as evidências em contrário – enunciam, geralmente, verdades simples, que todos aceitam sem dificuldade (ou, pelo menos, reconhecem como tais), sem que haja necessidade de reduzi-las a silogismos ou encadeamentos lógicos de raciocínios que deixem mais claro o seu conteúdo ou o seu caráter de verdades (o que, aliás, seria desastroso para elas). Os benefícios são patentes não só para as nossas consciências, que não têm de ir muito fundo na extração de tesouros que parecem o tempo inteiro ameaçados de se desvanecer diante de nossos olhos, como também para o progresso do mundo, que nisso tem assentada uma de suas bases mais sólidas e duradouras.

 

Nascer num país contém, além das vantagens de podermos ter um documento de identidade (para aqueles países que fornecem algum) ou de termos uma equipe pela qual torcer nas Olimpíadas e na Copa do Mundo de Futebol (para não falarmos de outras de que não usufruiríamos se não tivéssemos nascido em país nenhum), a vantagem adicional de que podemos ser poupados de aborrecimentos nos quais só mesmo quem não nasceu poderia se gabar de jamais ter corrido qualquer risco de tropeçar. E não é tanto porque essas vantagens existem por si mesmas, de modo absoluto e desvinculado de tudo o mais a que uma verdade tem de estar vinculada para se configurar como tal. Se não se pode negar que a possibilidade de nascer num país nos livra de dores-de-cabeça que só existem porque existem países, também não se pode negar que qualquer coisa se agrega por fora ao raciocínio, somando-se a ele como uma espécie de razão adicional.

 

Ou, pelo menos, devemos nos convencer de tal razão: quem nasce num país recebe não só uma espécie de prêmio antecipado por ter nascido (que, de certo modo, tem qualquer coisa de uma compensação pelos estragos causados à consciência pela idéia do pecado original), como também se vê justificado numa região especial de seu cérebro onde a idéia de ter nascido num país produz efeito semelhante ao de um entorpecente, sentindo-se pago, de algum modo, pelo que quer que haja de injusto ou de obscuro ou mesmo de incômodo no pensamento de que só se nasce num país por acaso e de que no fato de nos orgulharmos disso se infiltra uma gota de trapaça. Nessa região é que a noção de que nascer num país – qualquer que seja esse país – implica mais vantagens do que prejuízos para o indivíduo assume o brilho especial e algo inefável que lhe é próprio, e é dela, supomos (o que outros poderiam não supor), que extrai as suas qualidades propriamente poéticas.

 

No âmbito prático da vida, evidentemente, nem tudo é assim tão bonito. No nível da realidade (para usarmos uma expressão desgastada), quem quer gozar dos benefícios de ter nascido num país (o que será tão mais verdadeiro quanto mais bem definidas forem as fronteiras desse país) não usufruirá deles sem antes ter pago uma taxa. E não estamos falando apenas de todas as obrigações legais com que terá de se defrontar nas inúmeras vezes em que tiver de provar que nasceu nesse país – situação que, se a olharmos de perto, se revelará bem mais complexa do que aparenta ser à primeira vista –, de todos os ônus (e não apenas financeiros) que essa necessidade acarreta, tais como o serviço militar obrigatório ou o voto obrigatório para quem nasceu num país que os adota. Estamos falando de realidades mais sutis e menos palpáveis, com as quais não costumamos gastar nossos pensamentos, talvez porque não queremos ser atormentados pensando nos incômodos que causam. Se não costumamos pensar nelas é porque, ao que parece, aquela parte do cérebro onde se instala e se desenvolve em plenitude a idéia de que devemos nos orgulhar de tudo o que se relacione com o país onde nascemos tende a irradiar influência e, quem sabe, a dominar todo o cérebro. É nela, certamente, que são gestados livros como Por que me ufano de meu país, do velho Affonso Celso, e é também ali que se produz uma química mais penetrante, que faz com que brasileiros, por exemplo, tendam a achar bonitos os contrastes de verde e amarelo que se encontram na plumagem de certos pássaros, ou que norte-americanos passem a gostar incondicionalmente de padronagens em que o branco se intercala ao vermelho com certos toques de azul. Tanto quanto com a psicologia, tudo isso tem a ver com o mistério, e pode ser que não cheguemos aqui senão a tecer conjeturas pouco exatas.

 

É que, se o sentimento patriótico traz inconvenientes, estes não dizem respeito somente às firmes, altíssimas e aparentemente intransponíveis barreiras do zelo burocrático. Mais correto seria pensar, antes, que eles trazem conseqüências sobretudo para o modo como olhamos o mundo, isto é, para a tendência que todos desenvolvemos a tirar lições edificantes das várias situações de nossas vidas, inclusive das mais obscuras. Quem nunca terá experimentado – mesmo em sua forma atenuada – um certo desconforto ao constatar que, apesar das diferenças que tenhamos com nossos superiores, com nossos vizinhos ou com os diversos desconhecidos com quem disputamos lugares no ônibus ou na fila do mercado todos os dias, somos conterrâneos, compatriotas ou seja lá o que for desses eventuais adversários? Ter um sentimento profundo da própria terra ou do próprio país – quer dizer: sentir-se verdadeiramente compenetrado da imenso benefício que é ter nascido em tal terra ou em tal país – significa, na maioria das vezes, alimentar um tal sentimento de fraternidade com as grandes coisas (como o teria pensado Affonso Celso), mas também uma tal magnanimidade frente às coisas e às pessoas, que até mesmo pelo que não é bonito de ver, como as catástrofes climáticas ou os desastres sociais, venhamos a ter simpatia. Não é isso ser integralmente patriota? Afinal, são as nossas catástrofes climáticas, produzidas pelo vigor e pela grandiosidade da nossa natureza. Aqueles que se deixam imbuir de um sincero entusiasmo pela terra deveriam meditar nisto também: que amar a terra é amá-la incondicionalmente, tanto nas suas belezas quanto nos seus desastres – e “incondicionalmente” significaria, mais ou menos, amar também e deixar-se entusiasmar por aquilo que não se pode corrigir.

 

Estamos prontos? Provavelmente não, se olharmos dessa maneira. E pode ser que neste ponto nos acusem de exagero, alegando que ter nascido num país impõe compromissos que dizem respeito apenas a determinados setores da vida, ficando os outros intactos, mas tal argumento não se sustenta. Quando se trata de sentimentos patrióticos, não podemos deixar de pensar que os meios termos são concessões e que as concessões não fazem jus, por mais que tendamos a contemporizar, a esses sentimentos. Ter uma real devoção pelo próprio país de origem – e devoção que se degradaria se deixássemos insinuar-se nela qualquer ressaibo de indolência ou de apatia – deveria significar, para o indivíduo (e tanto mais quanto mais agudo fosse o seu fervor patriótico), encarar de frente, com boa vontade e sinceridade, aquilo que elegeu (na verdade, mais foi eleito do que elegeu) como objeto de seus cuidados e de sua veneração. Deveria significar tanto encarecer aquilo que o seu sentimento nativista (outro termo que vale a pena recordar) o leva a encarecer como algo que merece ser encarecido (e dispensemo-nos de compilar uma lista), como também, tal como para os pais que nunca vêem os maus modos de seus filhos como casos perdidos, dado o direito que todos têm de sempre pensar que as coisas podem ser emendadas no futuro, encarar com magnanimidade o lado menos nobre da vida. Nosso vizinho nos aborrece com suas festas e seus ruidosos churrascos de final de semana? O funcionário da empresa de ônibus foi grosseiro e sequer se dignou a levantar os olhos da tela do computador quando lhe dirigimos uma pergunta? Tivemos de acrescentar quatro carreiras de tijolos aos muros da casa e colocar arame eletrificado por cima depois que fomos assaltados pela última vez? Pensemos: quem dá as festas é um compatriota nosso, quem nos esnoba no guichê poderia ter votado no mesmo candidato em que votamos na última eleição, e quem nos rouba poderia ser, como muita probabilidade, um conterrâneo nosso, que decorou na escola os mesmos hinos e aprendeu a soletrar nas mesmas cartilhas em que nós aprendemos. Ou devemos desenvolver em nossas mentes algum mecanismo de triagem, que nos ajude a olhar todas as situações pelo lado certo, exercitando-nos nele como quem se exercita num instrumento musical até dominá-lo completamente?

 

Por certo, viver patrioticamente não deixa de ser uma arte ou, pelo menos, exige de quem quer viver assim habilidades que lembram as de um artista: conhecimento dos meios, intuição, senso de proporções, etc. E como se define tal arte? Para começar, a arte do patriotismo tem de estar um passo à frente do mero patriotismo de ocasião, aquele que só se dá a mostrar em épocas de competições esportivas e manifestações públicas que exigem que se apliquem no rosto ou em outras partes do corpo manchas de tinta que lembram as cores da bandeira. Em seu devido setor, esse seria o patriotismo que “arrebata”, que traz em si um elemento de contágio do qual somente uns poucos escapam (nem mesmo os espíritos mais decididos e menos propensos a ceder aos entusiasmos de ocasião costumam ficar livres dele). Mas um patriotismo de verdade, que quisesse estar à altura do nome, deveria se qualificar sobre outras bases. E não se trata apenas de assumir atitudes extremas, como lutar numa guerra (ou declarar uma) para pôr à prova o próprio valor e a sinceridade do próprio entusiasmo, com todas as conseqüências que acarreta para o indivíduo. Trata-se, antes, de assumir uma atitude vigilante, em regime de tempo integral, que fizesse do verdadeiro patriota um indivíduo acima de qualquer suspeita, incorruptível e inacessível aos constantes acessos de má consciência ou de pusilanimidade que costumam acometer o cidadão comum nos dias de hoje. Quem quisesse se aperfeiçoar nisso deveria, ao contrário de um músico que apenas aprendesse a tirar sons de um instrumento e a produzir as notas musicais, converter numa música maravilhosamente patriótica cada ocasião de sua vida, indo desde as tarefas mais fáceis, como alimentar uma admiração irrestrita pelas grandes personalidades nacionais (sejam elas quais forem), até as menos óbvias, como pensar que os mendigos nacionais são de algum modo superiores aos dos outros países só porque são mendigos produzidos genuinamente em solo pátrio.

 

Fazendo isso, correríamos o risco de nos tornarmos um pouco idiotas? A resposta dependeria, talvez, da capacidade de cada um para se estudar a si próprio com atenção. Dependeria de verificar o modo como o próprio comportamento (patriótico), exercitado voluntariamente no dia-a-dia e não apenas maquinalmente ou convencionalmente em ocasiões específicas, contém uma pista para se entender com mais clareza a vida diária, atingindo um grau mais profundo de sinceridade na interpretação desses impulsos.

 

Nestes dias em que somos constantemente chamados a assumir atitudes e a tomar partidos, o sentimento patriótico oferece um solo seguro para os que, ao longo de suas vidas, ainda não viram, até hoje, surgir diante de si nenhuma causa pela qual se bater. Sendo ao mesmo tempo a causa por excelência, bem como aquela para a qual já nascemos naturalmente dotados, tem ainda, sobre todas as outras, a superioridade de não ser preciso inventá-la ou descobri-la, pois está aí, diariamente, diante de nossos olhos, a convocar prosélitos que serão tanto mais bem-vindos quanto, de um modo ou de outro, somos todos prosélitos em potencial, isto é, praticantes dela, sem que em geral nos ocorra qualquer intuito de conduzi-la à perfeição

 

Se o fizéssemos, pode ser que descobríssemos que as causas patrióticas, muito mais do que nos fazerem atolar em truísmos, oferecem vasto campo para o aperfeiçoamento pessoal, mais até do que podem supor os autores de livros de auto-aconselhamento. É nesse movimento, nesse vaivém que se dá entre a inclinação natural e a decisão voluntária, que podemos entrever o seu segredo, compreendendo o que têm de fascinante, complexo e inequivocamente arrebatador – até para quem já se cansou de falsos começos.

 

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