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MANIFESTAÇÃO
QUASE PATRIÓTICA
(Renato
Suttana)
Talvez não haja argumento convincente
para contradizer a idéia de que uma das melhores coisas que podem
acontecer a uma pessoa é nascer num país. E, antes que o último da
fila se erga e proteste, dizendo que tal sugestão é apenas um
truísmo, apressemo-nos a explicar que os truísmos – em que pesem as
evidências em contrário – enunciam, geralmente, verdades simples,
que todos aceitam sem dificuldade (ou, pelo menos, reconhecem como
tais), sem que haja necessidade de reduzi-las a silogismos ou
encadeamentos lógicos de raciocínios que deixem mais claro o seu
conteúdo ou o seu caráter de verdades (o que, aliás, seria
desastroso para elas). Os benefícios são patentes não só para as
nossas consciências, que não têm de ir muito fundo na extração de
tesouros que parecem o tempo inteiro ameaçados de se desvanecer
diante de nossos olhos, como também para o progresso do mundo, que
nisso tem assentada uma de suas bases mais sólidas e duradouras.
Nascer num país contém, além das
vantagens de podermos ter um documento de identidade (para aqueles
países que fornecem algum) ou de termos uma equipe pela qual torcer
nas Olimpíadas e na Copa do Mundo de Futebol (para não falarmos de
outras de que não usufruiríamos se não tivéssemos nascido em país
nenhum), a vantagem adicional de que podemos ser poupados de
aborrecimentos nos quais só mesmo quem não nasceu poderia se gabar
de jamais ter corrido qualquer risco de tropeçar. E não é tanto
porque essas vantagens existem por si mesmas, de modo absoluto e
desvinculado de tudo o mais a que uma verdade tem de estar vinculada
para se configurar como tal. Se não se pode negar que a
possibilidade de nascer num país nos livra de dores-de-cabeça que só
existem porque existem países, também não se pode negar que qualquer
coisa se agrega por fora ao raciocínio, somando-se a ele como uma
espécie de razão adicional.
Ou, pelo menos, devemos nos convencer de
tal razão: quem nasce num país recebe não só uma espécie de prêmio
antecipado por ter nascido (que, de certo modo, tem qualquer coisa
de uma compensação pelos estragos causados à consciência pela idéia
do pecado original), como também se vê justificado numa região
especial de seu cérebro onde a idéia de ter nascido num país produz
efeito semelhante ao de um entorpecente, sentindo-se pago, de algum
modo, pelo que quer que haja de injusto ou de obscuro ou mesmo de
incômodo no pensamento de que só se nasce num país por acaso e de
que no fato de nos orgulharmos disso se infiltra uma gota de
trapaça. Nessa região é que a noção de que nascer num país –
qualquer que seja esse país – implica mais vantagens do que
prejuízos para o indivíduo assume o brilho especial e algo inefável
que lhe é próprio, e é dela, supomos (o que outros poderiam não
supor), que extrai as suas qualidades propriamente poéticas.
No âmbito prático da vida,
evidentemente, nem tudo é assim tão bonito. No nível da realidade
(para usarmos uma expressão desgastada), quem quer gozar dos
benefícios de ter nascido num país (o que será tão mais verdadeiro
quanto mais bem definidas forem as fronteiras desse país) não
usufruirá deles sem antes ter pago uma taxa. E não estamos falando
apenas de todas as obrigações legais com que terá de se defrontar
nas inúmeras vezes em que tiver de provar que nasceu nesse país –
situação que, se a olharmos de perto, se revelará bem mais complexa
do que aparenta ser à primeira vista –, de todos os ônus (e não
apenas financeiros) que essa necessidade acarreta, tais como o
serviço militar obrigatório ou o voto obrigatório para quem nasceu
num país que os adota. Estamos falando de realidades mais sutis e
menos palpáveis, com as quais não costumamos gastar nossos
pensamentos, talvez porque não queremos ser atormentados pensando
nos incômodos que causam. Se não costumamos pensar nelas é porque,
ao que parece, aquela parte do cérebro onde se instala e se
desenvolve em plenitude a idéia de que devemos nos orgulhar de tudo
o que se relacione com o país onde nascemos tende a irradiar
influência e, quem sabe, a dominar todo o cérebro. É nela,
certamente, que são gestados livros como Por que me ufano de meu
país, do velho Affonso Celso, e é também ali que se produz uma
química mais penetrante, que faz com que brasileiros, por exemplo,
tendam a achar bonitos os contrastes de verde e amarelo que se
encontram na plumagem de certos pássaros, ou que norte-americanos
passem a gostar incondicionalmente de padronagens em que o branco se
intercala ao vermelho com certos toques de azul. Tanto quanto com a
psicologia, tudo isso tem a ver com o mistério, e pode ser que não
cheguemos aqui senão a tecer conjeturas pouco exatas.
É que, se o sentimento patriótico traz
inconvenientes, estes não dizem respeito somente às firmes,
altíssimas e aparentemente intransponíveis barreiras do zelo
burocrático. Mais correto seria pensar, antes, que eles trazem
conseqüências sobretudo para o modo como olhamos o mundo, isto é,
para a tendência que todos desenvolvemos a tirar lições edificantes das
várias situações de nossas vidas, inclusive das mais obscuras. Quem nunca terá
experimentado – mesmo em sua forma atenuada – um certo desconforto ao
constatar que, apesar das diferenças que tenhamos com nossos
superiores, com nossos vizinhos ou com os diversos
desconhecidos com quem disputamos lugares no ônibus ou na fila do
mercado todos os dias, somos conterrâneos, compatriotas ou seja lá o
que for desses eventuais adversários? Ter um sentimento profundo da
própria terra ou do próprio país – quer dizer: sentir-se
verdadeiramente compenetrado da imenso benefício que é ter nascido
em tal terra ou em tal país – significa, na maioria das vezes,
alimentar um tal sentimento de fraternidade com as grandes coisas
(como o teria pensado Affonso Celso), mas também uma tal
magnanimidade frente às coisas e às pessoas, que até mesmo pelo que
não é bonito de ver, como as catástrofes climáticas ou os desastres
sociais, venhamos a ter
simpatia. Não é isso ser integralmente patriota? Afinal, são as
nossas catástrofes climáticas, produzidas pelo vigor e pela
grandiosidade da nossa natureza. Aqueles que se deixam imbuir
de um sincero entusiasmo pela terra deveriam meditar nisto também:
que amar a terra é amá-la incondicionalmente, tanto nas suas belezas
quanto nos seus desastres – e “incondicionalmente” significaria,
mais ou menos, amar também e deixar-se entusiasmar por aquilo que
não se pode corrigir.
Estamos prontos? Provavelmente não, se
olharmos dessa maneira. E pode ser que neste ponto nos acusem de
exagero, alegando que ter nascido num país impõe compromissos
que dizem respeito apenas a determinados setores da vida, ficando os outros intactos,
mas tal argumento não se sustenta. Quando se trata de sentimentos
patrióticos, não podemos deixar de pensar que os meios termos são
concessões e que as concessões não fazem jus, por mais que tendamos
a contemporizar, a esses sentimentos. Ter uma real devoção pelo
próprio país de origem – e devoção que se degradaria se deixássemos
insinuar-se nela qualquer ressaibo de indolência ou de apatia –
deveria significar, para o indivíduo (e tanto mais quanto mais agudo
fosse o seu fervor patriótico), encarar de frente, com boa vontade e
sinceridade, aquilo que elegeu (na verdade, mais foi eleito do que
elegeu) como objeto de seus cuidados e de sua veneração. Deveria
significar tanto encarecer aquilo que o seu sentimento nativista
(outro termo que vale a pena recordar) o leva a encarecer como algo
que merece ser encarecido (e dispensemo-nos de compilar uma lista),
como também, tal como para os pais que nunca vêem os maus modos de
seus filhos como casos perdidos, dado o direito que todos têm de
sempre pensar que as coisas podem ser emendadas no futuro, encarar
com magnanimidade o lado menos nobre da vida. Nosso vizinho nos
aborrece com suas festas e seus ruidosos churrascos de final de
semana? O funcionário da empresa de ônibus foi grosseiro e sequer se
dignou a levantar os olhos da tela do computador quando lhe
dirigimos uma pergunta? Tivemos de acrescentar quatro carreiras de
tijolos aos muros da casa e colocar arame eletrificado por cima
depois que fomos assaltados pela última vez? Pensemos: quem dá as
festas é um compatriota nosso, quem nos esnoba no guichê poderia ter
votado no mesmo candidato em que votamos na última eleição, e quem
nos rouba poderia ser, como muita probabilidade, um conterrâneo
nosso, que decorou na escola os mesmos hinos e aprendeu a soletrar
nas mesmas cartilhas em que nós aprendemos. Ou devemos desenvolver
em nossas mentes algum mecanismo de triagem, que nos ajude a olhar
todas as situações pelo lado certo, exercitando-nos nele como quem
se exercita num instrumento musical até dominá-lo completamente?
Por certo, viver patrioticamente não
deixa de ser uma arte ou, pelo menos, exige de quem quer viver assim
habilidades que lembram as de um artista: conhecimento dos meios,
intuição, senso de proporções, etc. E como se define tal arte? Para
começar, a arte do patriotismo tem de estar um passo à frente do
mero patriotismo de ocasião, aquele que só se dá a mostrar em épocas
de competições esportivas e manifestações públicas que exigem que se
apliquem no rosto ou em outras partes do corpo manchas de tinta que
lembram as cores da bandeira. Em seu devido setor, esse seria o
patriotismo que “arrebata”, que traz em si um elemento de contágio
do qual somente uns poucos escapam (nem mesmo os espíritos mais
decididos e menos propensos a ceder aos entusiasmos de ocasião
costumam ficar livres dele). Mas um patriotismo de verdade, que
quisesse estar à altura do nome, deveria se qualificar sobre outras
bases. E não se trata apenas de assumir atitudes extremas, como
lutar numa guerra (ou declarar uma) para pôr à prova o próprio valor
e a sinceridade do próprio entusiasmo, com todas as conseqüências
que acarreta para o indivíduo. Trata-se, antes, de assumir uma
atitude vigilante, em regime de tempo integral, que fizesse do
verdadeiro patriota um indivíduo acima de qualquer suspeita,
incorruptível e inacessível aos constantes acessos de má consciência
ou de pusilanimidade que costumam acometer o cidadão comum nos dias
de hoje. Quem quisesse se aperfeiçoar nisso deveria, ao contrário de
um músico que apenas aprendesse a tirar sons de um instrumento e a
produzir as notas musicais, converter numa música maravilhosamente
patriótica cada ocasião de sua vida, indo desde as tarefas mais
fáceis, como alimentar uma admiração irrestrita pelas grandes
personalidades nacionais (sejam elas quais forem), até as menos
óbvias, como pensar que os mendigos nacionais são de algum modo
superiores aos dos outros países só porque são mendigos produzidos
genuinamente em solo pátrio.
Fazendo isso, correríamos o risco de nos
tornarmos um pouco idiotas? A resposta dependeria, talvez, da
capacidade de cada um para se estudar a si próprio com atenção.
Dependeria de verificar o modo como o próprio comportamento
(patriótico), exercitado voluntariamente no dia-a-dia e não apenas
maquinalmente ou convencionalmente em ocasiões específicas, contém
uma pista para se entender com mais clareza a vida diária, atingindo
um grau mais profundo de sinceridade na interpretação desses
impulsos.
Nestes dias em que somos constantemente
chamados a assumir atitudes e a tomar partidos, o sentimento
patriótico oferece um solo seguro para os que, ao longo de suas
vidas, ainda não viram, até hoje, surgir diante de si nenhuma causa
pela qual se bater. Sendo ao mesmo tempo a causa por
excelência, bem como aquela para a qual já nascemos naturalmente
dotados, tem ainda, sobre todas as outras, a superioridade de não
ser preciso inventá-la ou descobri-la, pois está aí, diariamente,
diante de nossos olhos, a convocar prosélitos que serão tanto mais
bem-vindos quanto, de um modo ou de outro, somos todos prosélitos em
potencial, isto é, praticantes dela, sem que em geral nos ocorra
qualquer intuito de conduzi-la à perfeição
Se o fizéssemos, pode ser que
descobríssemos que as causas patrióticas, muito mais do que nos
fazerem atolar em truísmos, oferecem vasto campo para o
aperfeiçoamento pessoal, mais até do que podem supor os autores de
livros de auto-aconselhamento. É nesse movimento, nesse vaivém que
se dá entre a inclinação natural e a decisão voluntária, que podemos
entrever o seu segredo, compreendendo o que têm de fascinante,
complexo e inequivocamente arrebatador – até para quem já se cansou
de falsos começos.
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