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Uma
sombra que os construtores desprezaram *
(João
Paulo Esteves da Silva)
É
engraçado reparar nos erros que cometemos ao tentar lembrar e contar de
novo a história do homem que perdeu a sombra. Podem ser erros mais ou menos
graves, claro, podem ser mais ou menos poéticos. Por exemplo: « Sim, sim,
lembro-me muito bem, a história de Peter Schlemihl, o homem que vendeu a
alma ao…», e aqui há quem diga mesmo o nome do comprador, o que prova, já
se sabe, que o dito anda ali por perto a divertir-se com os nossos enganos.
Erro grave, porque não se trata de alma, mas sim de sombra. Sombra. Peter
Schlemihl troca a sombra pelo porta-moedas mágico do homenzinho do casaco
cinzento. E, se é verdade que nos sonhos e nos sonetos a alma e a sombra se
confundem e se dizem uma pela outra, o que é facto é que neste caso a história
quer afirmar uma diferença: a sombra é a sombra e a alma é a alma. O
homenzinho do casaco cinzento, que não é outro senão o próprio manhoso
em pessoa, quer comprar a alma; o que ele quer mesmo é a alma, mas começa
por propor o negócio da sombra. Para que este desvio? Porque esta estratégia
de marketing em volta da sombra perdida, toda esta história em que o
objecto principal se esvai da memória… como uma sombra. Que difícil
lembrarmo-nos da sombra enquanto sombra. «Pobre Schlemihl, vendeu a alma
ao…» Não! Bolas! Não foi a alma, foi a sombra! E não repitas esse nome
diabético. « Mas qual é o mal? » O mal é o mal e se o chamas, ele vem,
podes estar certo; repara como o Chamisso e o Miguel Castro Caldas, com
todas as diferenças que os separam, ambos evitam cuidadosamente o nome diafónico.
Às tantas é ele que nos apaga a memória da sombra. Ninguém dá nada pela
sombra, trocá-la por ouro sem fim parece bom negócio, o homem pouco hesita
e, se hesita, é mais pela vertigem do ganho do que pela perda da sombra.
Mas a perda é grande. Com a sombra vai-se o mundo. O homem sem sombra fica
de fora e descobre que a sombra era afinal o fundamento da sua pertença. A
marca da ausência, o que desenha o sítio onde ele não está, era a condição
da presença. Fica rico, pois sim. O ouro permite-lhe agir sobre o mundo,
mas de fora, sem que se lhe atribua qualquer valor próprio. Por muito ouro
que lhe jorre das mãos, ele mesmo não vale nada. Que grande partida!
Coitado do Schlemihl, que lamentável situação! Sem mundo, está
agora em condições de medir o seu apego e o homenzinho do casaco cinzento
pode reaparecer e revelar o fundo da questão: a alma. Agora há que
escolher entre o mundo e a alma. E é neste passo que a peça de Miguel
Castro Caldas subverte a moral cristã ou, se quiserem, budista do modelo. O
herói de Chamisso resiste à tentação, abdica, e descobre a verdadeira
vida alhures, ligando-se a uma longa tradição de desprezo do mundo como
sombra fugaz, aparência, mentira por oposição ao ideal, ao nada ou ao
reino dos céus. Chamisso segue assim as pisadas de Sidarta, Sócrates,
Paulo de Tarso. Com todas as diferenças que possa haver entre os não-mundos
almejados por estes três, hão de ter todos em comum a condenação
mais ou menos irremissível da sombra. Miguel Castro Caldas não vai por aí,
o seu herói escolhe a sombra e dá a alma de barato. Opta pela continuação
do mundo. O Schlemihl de Chamisso experimenta como que uma conversão ao
cristianismo ou, se preferirem, uma assimilação ao projecto científico e
ateu do cristianismo, o de estar fora do mundo para o dominar, enquanto que
o Schlemihl de Miguel Castro Caldas se aguenta com o seu nome judeu.
Schlemihl é palavra yiddish; para alguns virá do germano-hebraico Schlimm
Mazzal, «pouca sorte», para outros (Heine) do hebraico Shlomiel, «deus é
quem me paga», isto é , igualmente pouca sorte pois não posso contar com
mais ninguém. No final, a própria sombra, mesmo adquirida a preço de alma
se revolta, ganha corpo e me manda passear. Mas pode ser que um dia Peter e
a sombra se juntem de novo; quem não pára de passear, com certeza, é o
homenzinho do casaco cinzento.
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Sobre «A história de quem perde a sombra», peça de Miguel Castro Caldas.
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