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Giorgio Morandi

 

Uma sombra que os construtores desprezaram *

 

(João Paulo Esteves da Silva)

 

É engraçado reparar nos erros que cometemos ao tentar lembrar e contar de novo a história do homem que perdeu a sombra. Podem ser erros mais ou menos graves, claro, podem ser mais ou menos poéticos. Por exemplo: « Sim, sim, lembro-me muito bem, a história de Peter Schlemihl, o homem que vendeu a alma ao…», e aqui há quem diga mesmo o nome do comprador, o que prova, já se sabe, que o dito anda ali por perto a divertir-se com os nossos enganos. Erro grave, porque não se trata de alma, mas sim de sombra. Sombra. Peter Schlemihl troca a sombra pelo porta-moedas mágico do homenzinho do casaco cinzento. E, se é verdade que nos sonhos e nos sonetos a alma e a sombra se confundem e se dizem uma pela outra, o que é facto é que neste caso a história quer afirmar uma diferença: a sombra é a sombra e a alma é a alma. O homenzinho do casaco cinzento, que não é outro senão o próprio manhoso em pessoa, quer comprar a alma; o que ele quer mesmo é a alma, mas começa por propor o negócio da sombra. Para que este desvio? Porque esta estratégia de marketing em volta da sombra perdida, toda esta história em que o objecto principal se esvai da memória… como uma sombra. Que difícil lembrarmo-nos da sombra enquanto sombra. «Pobre Schlemihl, vendeu a alma ao…» Não! Bolas! Não foi a alma, foi a sombra! E não repitas esse nome diabético. « Mas qual é o mal? » O mal é o mal e se o chamas, ele vem, podes estar certo; repara como o Chamisso e o Miguel Castro Caldas, com todas as diferenças que os separam, ambos evitam cuidadosamente o nome diafónico. Às tantas é ele que nos apaga a memória da sombra. Ninguém dá nada pela sombra, trocá-la por ouro sem fim parece bom negócio, o homem pouco hesita e, se hesita, é mais pela vertigem do ganho do que pela perda da sombra. Mas a perda é grande. Com a sombra vai-se o mundo. O homem sem sombra fica de fora e descobre que a sombra era afinal o fundamento da sua pertença. A marca da ausência, o que desenha o sítio onde ele não está, era a condição da presença. Fica rico, pois sim. O ouro permite-lhe agir sobre o mundo, mas de fora, sem que se lhe atribua qualquer valor próprio. Por muito ouro que lhe jorre das mãos, ele mesmo não vale nada. Que grande partida! Coitado do Schlemihl, que lamentável situação! Sem mundo, está agora em condições de medir o seu apego e o homenzinho do casaco cinzento pode reaparecer e revelar o fundo da questão: a alma. Agora há que escolher entre o mundo e a alma. E é neste passo que a peça de Miguel Castro Caldas subverte a moral cristã ou, se quiserem, budista do modelo. O herói de Chamisso resiste à tentação, abdica, e descobre a verdadeira vida alhures, ligando-se a uma longa tradição de desprezo do mundo como sombra fugaz, aparência, mentira por oposição ao ideal, ao nada ou ao reino dos céus. Chamisso segue assim as pisadas de Sidarta, Sócrates, Paulo de Tarso. Com todas as diferenças que possa haver entre os não-mundos almejados por estes três, hão de ter todos em comum a condenação mais ou menos irremissível da sombra. Miguel Castro Caldas não vai por aí, o seu herói escolhe a sombra e dá a alma de barato. Opta pela continuação do mundo. O Schlemihl de Chamisso experimenta como que uma conversão ao cristianismo ou, se preferirem, uma assimilação ao projecto científico e ateu do cristianismo, o de estar fora do mundo para o dominar, enquanto que o Schlemihl de Miguel Castro Caldas se aguenta com o seu nome judeu. Schlemihl é palavra yiddish; para alguns virá do germano-hebraico Schlimm Mazzal, «pouca sorte», para outros (Heine) do hebraico Shlomiel, «deus é quem me paga», isto é , igualmente pouca sorte pois não posso contar com mais ninguém. No final, a própria sombra, mesmo adquirida a preço de alma se revolta, ganha corpo e me manda passear. Mas pode ser que um dia Peter e a sombra se juntem de novo; quem não pára de passear, com certeza, é o homenzinho do casaco cinzento.

 

* Sobre «A história de quem perde a sombra», peça de Miguel Castro Caldas.

 

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