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DA
LUMINOSA ARQUITECTURA
(João Garção)
“Num
mundo que se assemelha quer a um estaleiro quer a um campo em ruínas,
trata-se de erguer uma casa em que os homens, vindos de todos os
quadrantes, possam viver em conjunto. E é tempo de partir à busca
dos materiais. ” (GILBERT CESBRON)
Não
sei se a famosa frase proferida por Goethe no leito de morte, em que
o escritor pediu ‘mais luz,
sempre mais luz’, deve ser encarada como
tendo sido feita no sentido literal ou no figurado. Desejo
crer que foi neste último, devido ao que de essencial ela expressa,
na sua aparente simplicidade.
Com
efeito, se como salientou Pascal o Homem oscila constantemente entre
o Anjo e a Besta, é fundamental (e simultaneamente reconfortante e
encorajador) que os espíritos nobres de todas as épocas reafirmem
sistematicamente que devem ser criadas condições para que as opções
dos seres humanos se dirijam para a ‘claridade’, em detrimento
das ‘trevas’ – portanto, que se caminhe ‘de claridade em
claridade’, para utilizar as sábias palavras de S. Paulo.
Esta
opção é frequentemente dificultada por um quotidiano societário
que muitas vezes privilegia as ‘trevas’, disfarçando-as
ardilosamente. Os mecanismos de que se serve, aparentemente doces na
sua imediata mas espúria atracção, são a mentira sistemática
camuflada por uma inevitabilidade tida como óbvia (visto que o duvidar
– aspecto estruturante da própria Liberdade – acaba por ser
rodeado de constrangimentos diversos), o falso ‘bom-senso’ e um
epicurismo distorcido que confunde ‘alegria de viver’ com
simples ‘contentamento’ e que se caracteriza pela pseudo-assunção
de um ‘realismo’ que, na prática, mais não produz que frutos
mortos. E o Tempo, esse excelso crítico, bem o tem evidenciado...
Em
conformidade, a quem não se revê neste panorama em que tem
assentado uma boa parte das decisões humanas e das próprias relações
sociais, resta privilegiar a busca da Verdade que qualifica
(saliento, ‘que qualifica’ e não ‘que quantifica’) a
Felicidade das pessoas, enfatizando-a em todos os procedimentos. Os
seus fundamentos poderão ser encontrados num quadro ético que
objectiva tanto a melhoria do Indivíduo quanto da própria
Humanidade, ou seja, numa Ética assente em princípios de criação
que dignifiquem o Homem e valorizem as suas produções, sempre que
estas originem ou desenvolvam consciências críticas – portanto,
que não constranjam, mas que libertem. Daí que, por exemplo, obras
como A
Montanha Mágica (incursão e interrogação no Mundo e no
Tempo exteriores) ou Em Busca do Tempo Perdido (procura e interrogação do Mundo e do
Tempo interiores), mesmo contando, por hipótese, com apenas dois
mil leitores, serão sempre melhores para a espécie humana do que
determinados programas televisivos com dois milhões de
espectadores.
Vários
autores têm evidenciado de forma exemplarmente simples, ao longo
dos tempos, os fundamentos desta Ética. Por exemplo, n’ O
Mercador de Veneza, Shakespeare fez o judeu Shylock proferir
as seguintes elementares palavras: ‘Se
nos picais, não sangramos? Se nos fazeis cócegas, não nos rimos?
Se nos envenenais, não morremos?’. Mais recentemente, num
interessante texto dirigido ao Cardeal Carlo Maria Martini, Umberto
Eco referiu-se à existência dos chamados ‘universais semânticos’, salientando que o respeito pela
‘corporalidade dos outros, entre os quais também se contam o
direito de falar e de pensar’, se impõe como elemento basilar
desta estrutura procedimental.
Contudo,
este princípio fundamental do reconhecimento da dignidade do
‘Outro’ deverá ser matizado visto que tem sido levado a certos
extremos, a ponto de, hoje em dia, concepções que se reivindicam
como estando estribadas no chamado Multiculturalismo
servirem como justificação para desmandos diversos que oprimem em
vez de libertarem. Com efeito, certos aspectos tidos por culturais e
que aparentemente decorrem desta perspectiva ‘multicultural’ não
passam de expressões de autoritarismo dos sectores que as promovem
(frequentemente, de forma brutal contra ‘outros’) a fim de
estabelecerem identidades que ajudem a perpetuar o seu poder. A título
de mero exemplo, permito-me indicar as nefastas práticas da excisão
ou da lapidação, ainda promovidas por certos grupos sociais em
determinados países.
Desta
forma, o diálogo entre culturas, com frequência apresentado como
absolutamente imprescindível, não pode passar pela efectivação
de cedências em relação a aspectos fundamentais, sendo o mais
importante o da defesa da dignidade humana (na qual se encara o
Indivíduo como uma entidade e não como um número), onde deverá
inscrever-se, obrigatoriamente, a por vezes enfatizada mas muitas
vezes deturpada trilogia Liberdade,
Igualdade, Fraternidade – deturpada porque utilizada para
sustentar sistemas de Cleptocracia que substituem, de maneira mais
ou menos subtil, a verdadeira Democracia. De outra forma, esse diálogo
será apenas um monólogo a
dois que somente
servirá, no máximo, para que um dos lados continue impunemente a
afirmar a recusa dos valores essenciais da referida dignidade
humana. Será, em suma, uma ‘solidariedade de crápulas’ que, a
pretexto da prática da tolerância, deturpa esta legítima
perspectiva de confronto de ideias que almeja o mais qualificado
valor operativo, para acabar por ser uma condenável e cobarde
condescendência perante o Mal – não mais sendo do que uma imitação do tristemente famoso
estilo de Neville Chamberlain (que ajudou o mundo a mergulhar na
Segunda Guerra Mundial) ou das perorações ‘doutrinárias’ de
‘pacifistas de 5ª coluna’ que, há um par de décadas, no
Ocidente, diziam de forma descaradamente alvar ‘Better
red then dead! ’ (‘Antes
vermelhos que mortos!’). A este propósito – e nem sequer é
preciso ser-se crente para o referir – impõe-se que recordemos o
apólogo bíblico que reza ‘não
devemos dialogar com os demónios – pois eles enredar-nos-ão numa
conversa sem fim’. Na verdade, que tipo de diálogo será possível
encetar ou manter, por exemplo, com representantes convictos do
terrorismo internacional ou praticantes neo-nazis? E não se diga
que estes não são mais do que o produto de uma sociedade a
arruinar-se. Tal constituiria uma boa ‘desculpa’, apenas, para a
ausência de responsabilidade individual nas respostas perante os
desafios e as crises que a todos assoberbam. E já se sabe que a
eles, infelizmente, nem todos respondem da mesma maneira – e são
essas respostas que verdadeiramente constituem a medida da
capacidade e da qualidade intelectiva do ser humano social.
Ora,
este combate contra o ‘Mal’
(o absurdo expresso na destruição da liberdade, da dignidade e da
qualidade humanas) não poderá ser um mero formalismo que se encena
quotidianamente, o que o tornaria estéril, mas antes um imperativo
decorrente da adesão a princípios éticos, a qual deverá sempre
conduzir a uma certa mundividência e traduzir-se numa praxis
bem precisa. Por outras palavras, esse combate deverá ser afirmado
como um dever individual consequente com o apego do sujeito a concepções
éticas de defesa da dignidade da pessoa humana (concepções estas
que, saliente-se novamente, não embarcam em falsas analogias nem são
complacentes com práticas pseudo-culturais que se afirmam para
melhor constranger o Indivíduo, fingindo libertá-lo).
Ao
longo desta pequena intervenção, tenho referido várias vezes a
palavra ‘Ética’. Chegado a este ponto, afigura-se-me
conveniente esclarecer os seus contornos – embora me pareça que
no contexto da temática abordada se poderá inferir o que por ela
entendo. Para mim, ‘Ética’ é o conjunto de reflexões e
procedimentos que afixam um ‘ir existindo’ civilizado,
compreendendo por este último termo o somatório de vivências
criativas que estabelece, simultaneamente, a dignidade, a felicidade
e a abertura aos salutares ritmos do mundo – passados, presentes
ou futuros.
Em
função daquilo que atrás afirmo depreende-se, com justeza, que
desconfio bastante daqueles que apresentam como recomendável e
politicamente correcto o respeito reverencial por alguma diversidade
de quadros ‘éticos’ existentes, significativamente dispares
entre si nos seus fundamentos e, por isso, a vários títulos antagónicos
nas orientações que acabam por expressar – e, portanto, também
alguns deles dinamizadores de comportamentos que são frequentemente
deploráveis. É minha convicção que qualquer estrutura ética não
poderá reclamar-se como tal se não se fundar no respeito essencial
pelos direitos humanos (evidentemente, utilizo esta expressão na
perspectiva de direitos ‘conquistados’ e não de direitos
‘naturais’, mas entendo que, ainda assim, são direitos
‘positivos’, na acepção filosófica do termo). De outra forma,
não passará de um sistema moral, como tal meramente conjuntural.
Mais: entendo que os distintos ‘diálogos’ a desenvolver pelas
diversas instituições que compõem o chamado ‘Mundo Ocidental’
(quer consigo mesmo, internamente, quer com elementos que lhe são
exteriores) deverão fundamentar-se na inegociável adesão a este
quadro de referências essenciais pois, como oportunamente salientou
Tocqueville, o respeito pelas diferenças reclama uma igualdade prévia.
De outra forma, o debate que possa vir a efectuar-se estará
inquinado ab ovo por inadmissíveis cedências e, como tal, poderá ser mais
nefasto do que proveitoso.
A
concluir, entendo deixar ainda uma última achega: quando se diz que
estes tempos actuais estão ‘despidos
de valores’, há que salientar a incorrecta formulação desta
asserção pois, quando muito, eles estarão despidos de valores éticos
suficientemente praticados e, sobretudo, capazmente divulgados (o
que é diferente). É claro que a difusão daquela perspectiva pode
não ser totalmente inocente, enquanto reflexo de ideias de certos
sectores sociais interessados em que seja afixado o panorama da
volatilização dos tradicionais valores intrínsecos à prática da
cidadania e na sua recomposição sob moldes bem diferentes. Por
outro lado, ela é fruto, igualmente, da resignação fundada no
desespero em que por vezes as pessoas mergulham, sentindo-se pouco
acompanhadas nesta obra de defesa de uma ética desejavelmente
universal, a qual é, verdadeiramente, uma obra sinérgica. A estes
nossos semelhantes importa reafirmar-lhes, sistematicamente, que não
estão sós nessa caminhada.
Em
concomitância, interessa continuar a alargar o trabalho de libertação
das consciências, pois se ‘o espírito sopra onde quer e como
quer’, como referiu São João, é igualmente fundamental que
existam seres humanos disponíveis para o orientar, sempre que tal
se imponha.
Para
que sejamos, cada vez mais, ‘Filhos da Luz’.
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