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A
IMPORTÂNCIA DA ARTE NA CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA SOCIABILIDADE
(João
Garção)
1
- No dia 25 de Abril de 1874, o jornal francês Le Charivari
publicou um texto do crítico Louis Leroy intitulado “A Exposição
dos Impressionistas”, o qual começava da seguinte forma:
“Oh,
que dia terrível aquele em que me arrisquei a ir visitar a exposição
do Boulevard des Capucines, para fazer companhia ao senhor Joseph
Vincent, paisagista, aluno de Bertin, pessoa homenageada e
condecorada por vários governos. Coitado dele, que ia com as
melhores intenções; julgava ir ver pintura como se vê por toda a
parte, boa ou má, mais má que boa talvez, mas não atentatória
dos bons costumes artísticos, do culto da forma e do respeito dos
velhos mestres.”
Este
artigo - uma das mais célebres páginas, se bem que pelas piores
razões, da História da Crítica da Arte Contemporânea - tornou-se
famoso pelo facto de nele o seu autor ter destacado uma obra do
pintor Claude Monet intitulada Impressão. Sol Nascente e por, em
consequência e com objectivos de troça, ter qualificado de
“Impressionistas” os trinta pintores que então expuseram no
atelier do fotógrafo Nadar, à margem da mostra oficial. É bem
conhecido o misto de hilaridade e de escândalo com que esta exposição
dos Impressionistas foi geralmente recebida tanto pela imprensa como
pelo público - que eram consequência da mentalidade incrementada e
difundida ainda durante o Império de Luís Napoleão e que se
manteve, com ligeiras variações, até ao fim do século XIX. Ora,
além de Monet, contavam-se nessa exposição nomes como os de
Sisley, Renoir, Cèzanne, Pissarro, Degas e inclusivamente uma
senhora, Berthe Morisot...
Se
faço referência ao texto de Leroy ao iniciar esta breve comunicação
não é evidentemente pelo que de curioso, anedótico e burlesco
este episódio da História da Arte em si mesmo encerra. A ele
recorro, isso sim, porque o considero exemplar no que diz respeito
à exibição de uma atitude critica espartilhante, dogmática e
espiritualmente confrangedora ao evidenciar a incapacidade de este
jornalista ver, compreender
e sentir as obras-primas da pintura que se estendiam ante os seus
olhos estupefactos. Aparentemente limitada à consideração de uma
pintura de grandiloquente e medalhado estilo académico, a
capacidade analítica e estética de Leroy, se acaso existia, não
conseguiu ganhar asas e, perante a novidade, o inesperado e o
diferente, não procurou voar e tentar saber “o que está para além
da montanha”, para utilizar a feliz expressão do escritor Rudyard
Kipling.
Se
este tipo de atitude tem sido habitual na História da Arte, a
verdade é que facilmente o detectamos também noutros aspectos da
nossa sociabilidade. Longe de ser um fenómeno especifico da História
da Arte, este enfoque contrário à inovação, à diferença, à
singularidade e à liberdade expressiva é uma constante na história
da Humanidade. A sua incidência no campo artístico, no entanto,
tem sido frequente devido precisamente, ao facto de a Arte ser um veículo
privilegiado de comunicação entre os indivíduos. Recorrendo a uma
analogia como forma de melhor fazer compreender esta minha afirmação,
diria que a violência física e verbal que verificamos rodear hoje
em dia o mundo do futebol - em certa medida uma verdadeira arte
coreográfica a que André Maurois, numa frase hoje famosa, chamou
“a inteligência em movimento” - esta violência, dizia, mais não
traduzirá, afinal, que a própria violência social, expressa num
domínio - o Futebol - para o qual se têm virado cada vez mais atenções
e que, portanto, é alvo de crescentes lutas, intrigas e jogos de
interesses.
Referi-me
atrás à Arte como sendo um veículo privilegiado de comunicação,
o que levanta, de imediato, dois problemas essenciais: o primeiro,
procurar saber o que é a Arte; o segundo, verificar como é que a
Arte se relaciona com o quotidiano societário.
Ora,
no que diz respeito ao primeiro ponto, como não é possível
compartimentar a Arte dentro de um conjunto de regras passíveis de
aplicação generalizada, poderá não ser fácil definir as qualidades absolutas que um determinado objecto deve possuir para
poder ser considerado como Arte. Efectivamente, não é mais Arte a
Torre de Pisa do que uma pintura de Giotto, nem é mais artística
uma escultura de Rodin do que uma outra realizada em Çatal Höyoük
nos finais do VII milénio A.C., por exemplo. E isto porque os níveis
e os contextos mentais e civilizacionais são bem diferentes, como
diferentes foram as visões e a concepções do Universo
circundante. Independentemente desta dificuldade, artistas, críticos
e filósofos têm dedicado atenção a este assunto, suscitando
reflexões que deram origem ao nascimento de uma ciência, a Estética,
necessariamente subordinada às variações ditadas pela evolução
e subsequentes flutuações analíticas e conceptuais da Filosofia,
da História, da Sociologia e da Psicologia.
Contudo,
paralelamente às diferenças evidenciadas pelas diversas realizações
artísticas, é também detectável a permanência do mesmo impulso
criador, o que deverá ser salientado. Isto é, verificamos que
nenhuma Civilização existiu sem produzir a sua própria Arte. Este
parece ser um facto inerente à condição humana. Mas, sendo assim,
que necessidade pretenderá, então, satisfazer? A meu ver, busca a
satisfação de uma função mental e espiritual que assenta na
necessidade de se terem respostas ao nível da comunicação
qualificada. Já o pintor Delacroix o disse a respeito da
pintura, referindo-se a esta como “uma ponte lançada entre as
almas”. Beethoven, na música, e Rimbaud, na poesia, exprimiram-se
em termos semelhantes. Cito um antigo ministro francês da Cultura,
de seu nome André Malraux: “ A Arte e a Civilização uniram a
Humanidade num laço apertado, se não eterno, e contribuíram para
fazer do Homem algo mais do que um sobrecarregado habitante de um
Universo absurdo”. Podemos dizer que, sob esta perspectiva e em
certa medida, a Arte acaba por ser a respiração da mente.
Disse
mais atrás, se estão recordados, que pode não ser fácil definir
as qualidades absolutas que um determinado objecto deve possuir para
poder ser considerado como Arte. Contudo, tal será possível, se
dispusermos dos instrumentos culturais que nos permitam uma análise
adequada. Através da sua utilização, poderemos chegar a conclusões
tendencialmente seguras. Assim, verifica-se que uma efectiva “obra
de Arte” apresenta sempre as seguintes condições reais:
1º
- qualidade formal - ou seja, grande qualidade na inter-relação
dos elementos formais que constituem essa obra;
2º
- originalidade conceptual - ou seja, essa obra tende a estar
concebida de forma original;
3º
- profundidade filosófica específica - por outras palavras, as
mensagens que transmite estão longe de serem superficiais. Pelo
contrário, expressam um sistema de ideias estruturado com uma certa
robustez.
Estas
três condições são alicerçadas nas seguintes características
do autor:
1º
- bom conhecimento dos meios que utiliza;
2º
- espírito criativo inovador;
3º
- persistência na expressão das suas propostas.
Nesta
conformidade, a “obra de Arte” fica investida de uma especial
durabilidade que lhe confere uma reconhecível permanência no
Tempo.
2
- Afirmar que a essência da Arte é ser
comunicação qualificada implica também referenciar o Artista como
um comunicador qualificado.
Assim
sendo, que pretende o Artista comunicar? Ele deseja revelar a sua
verdade mais íntima, afirmar a sua interpretação da realidade
circundante e, simultaneamente, interrogar-se a si mesmo,
descobrindo-se e enriquecendo-se humana e espiritualmente. Pretende,
em suma, partilhar as suas concepções e as suas descobertas com o
seu semelhante, desta forma elevado a espectador privilegiado do fenómeno
criador.
O
Artista é pois, no seu âmbito de acção, um verdadeiro demiurgo,
ou seja, um construtor de mundos até então ignorados - e isto
tanto para a Pintura como para o Teatro, tanto para a Arquitectura
como para a Música, ou para qualquer outra disciplina. A afirmação
de si mesmo e da sua individualidade criadora, o seu desejo de
permanência expressando a luta eterna entre a Vida e a Morte; a sua
vontade de partilha (pois a Arte também combate a solidão); o seu
espírito inovador em maior ou menor grau; e, finalmente, as suas próprias
interrogações e reflexões, conferem à “obra de Arte” um
cunho profundamente pessoal e imbuído de uma linguagem simbólica
específica. Treinando-se para compreender mais de si mesmo e do
quotidiano que o rodeia, por forma a poder expressar cada vez melhor
e mais fielmente a sua ‘Verdade’, o Artista expande não apenas
os seus horizontes próprios mas possibilita-nos também a nós -
espectadores, observadores, leitores ou ouvintes - que expandamos
também os nossos, o que levou o escritor Marcel Proust a dizer, com
justeza, que “o prazer que o artista nos dá é fazer-nos conhecer
um universo mais”.
Estes
criadores de Arte, exprimindo as suas vidas e as suas experiências
pessoais nas obras que executam, possibilitam-nos, assim, o acesso a
vários mundos, proporcionando, numa certa medida, que possamos
transcender a própria condição humana no que à limitação
cronológica da vida diz respeito. Ou seja: tanto o historiador
profissional quanto o amante da Arte ou mesmo, apenas, o honesto
observador atento e interessado, apoderam-se de diversos e
multifacetados mundos interiores, de variadas expressões de vivências,
experiências, trajectórias e concepções da Existência. É-lhes
conferida, desta forma, a faculdade de contactar com mais universos
do que aqueles que, por si sós, poderiam conhecer e, em consequência,
é-lhes possível também enriquecerem o seu particular universo
interior, ampliando-o através da obtenção de uma maior soma de
elementos que, conjugando-se, contribuem para uma melhor compreensão
no que se refere ao percurso da aventura humana.
3
- Pelo que atrás afirmei, lógico é
concluir que a Arte é uma necessidade e não um luxo ou uma
frivolidade de salão mundano como tantas vezes se tenta fazer crer;
e que não deverá, portanto, ser algo exclusivo de uma minoria de
iniciados, de estudiosos e de privilegiados, habitualmente inacessível
ao comummente denominado “grande público”.
Contudo,
apesar desta constatação, verificamos que, para este último, a
Arte aparece-lhe frequentemente como uma realidade na qual, pelo
menos, dificilmente pode penetrar, ficando assim estabelecida uma
separação entre o seu quotidiano e a Arte. É lícito e inevitável
que nos questionemos então: que factores contribuirão para este
divórcio entre o artista criador e a obra de arte enquanto seu veículo
de comunicação, por um lado, e o Público, por outro? E quais as
características que o mesmo reveste? Busquemos a resposta a estas
duas perguntas.
Consideremos
primeiramente o Artista. Já acerca dele teci algumas considerações,
mas impõe-se agora que recordemos e sobretudo reafirmemos o que atrás
em parte já foi referido: que ele deve ter um correcto ( e tão
perfeito quanto possível ) conhecimento dos meios e da sua aplicação;
que deve ser persistente na expressão das suas propostas, ou seja,
das suas criações; e que - questão fundamental - deve possuir um
espírito criativo inovador. Significa isto que o criador que possua
estas características pode imediatamente incorporar excelência e
qualidade no seu trabalho? Respondo que em princípio sim,
naturalmente - se isso corresponder a uma autenticidade assumida. É
que não será um Artista verdadeiro aquele que constranger o seu
talento para agradar a facções, a grupos ou a modas ou que forneça
produções artificiosas tendo em vista conseguir vastos proventos
à custa de ingénuos ou de novos-ricos ou que busque apenas o
reconhecimento de largos sectores populacionais frequentemente
alienados por manipulações sociais. Ou seja, o Artista autêntico
deverá ser dotado de corajosa persistência de molde a poder
resistir a ambientes habitualmente adversos.
Como
exemplo daquilo que agora afirmei, reparemos no que se passou com
algumas personalidades: comecemos pela denominada Escola de Barbizon
que reuniu, entre outros, os pintores Rousseau, Millet e Corot.
Sendo sobretudo um grupo de amigos, sem uma unidade teórica e
conceptual, estiveram colocados sob a suspeita de serem perigosos
anarquistas e a polícia tentou várias vezes prendê-los e difamá-los,
ainda que sem êxito. Millet, por exemplo, sofreu diversas
tentativas de agressão a que só escapou por ser um homem forte e
decidido. Quanto aos Impressionistas a que no início aludimos,
foram continuamente caluniados pela imprensa do regime de então que
chegou mesmo a tentar dá-los como loucos. Cézanne foi
caracterizado como “uma criança de mama que faz borradelas”; a
Monet criaram problemas tais, impedindo-o de ganhar o sustento
quotidiano, que a sua primeira mulher faleceu, tanto por não poder
comprar os remédios de que necessitava como por subalimentação. E
os exemplos poderiam multiplicar-se. Só com a chegada de uma nova
mentalidade diminuiu esse franco ambiente de hostilidade. Poderemos
perguntar-nos: porquê tanta animosidade contra simples pinturas de
gente pacífica? A resposta residirá no facto de estes, ao proporem
uma nova visão das coisas, autêntica e liricamente salubre, porem
em causa muitas das estruturas mentais e de comportamento em que
assentava a sociedade da época - e isso era evidentemente
inquietante para quem detinha o poder político. Quanto aos pintores
ditos oficiais - muitos dos quais já desapareceram das salas de
exposição dos museus, tendo sido remetidos para as suas caves ou
depósitos - viviam no conforto económico e social, muito
respeitados, pintando aplicadamente e sem faísca de originalidade
retratos de importantes personalidades da chamada “boa
sociedade” e enviando aos Salons oficiais medíocres exemplares da
sua “arte” lambida e artisticamente morta. Alguns deles tinham
capacidades técnico-artísticas, mas não tinham ética,
autenticidade e independência de espírito; pelo que, passado o período
em que estiveram na moda, foram colocados pelo Tempo - que alguém já
disse ser o maior dos críticos - no justo limbo do esquecimento.
No
que diz respeito a determinados artistas nossos contemporâneos
promovidos pela publicidade - ou são Artistas autênticos (e nesse
caso não há jogadas de interesses económicos que os aniquilem,
porque a sua obra resistirá), ou não passam de episódicas vedetas
que a breve trecho os conhecedores sérios e informados desmascararão
como simples bluffs.
Tenho
vindo a fazer assentar os exemplos mais no campo da Pintura. Mas se
passássemos para outra disciplina, ou o panorama seria afim (caso
da Música) ou, até, mais marcado (caso da Literatura, uma vez que
o seu universo é, devido à especificidade de comunicação da
palavra escrita, mais “interveniente” ou aparentemente mais
perceptível ).
Passemos
agora, de forma breve, a considerar a Obra de Arte. Em função
daquilo que já disse, tornar-se-á evidente que aquilo que nela o
Artista deseja explanar é, prioritariamente, a sua Ideia, isto é,
elementos (ou mesmo a totalidade, aí sintetizada) das suas concepções
existenciais. Os meios expressivos são uma consequência, evoluindo
a partir dessa mundividência. A inexistência, no Artista, de uma
profundidade filosófica específica a que já aludi, traduz-se
inevitavelmente na pura reprodução mecânica de uma linguagem plástica
adoptada de outrem, a qual foi aprendida e mesmo, eventualmente,
compreendida, mas que lhe não é própria. Uma obra nestas condições
não é uma obra “viva”, mas sim “morta”.
Nesta
altura, já tereis compreendido que não sou partidário das teorias
puramente formalistas da análise da obra de arte, que não buscam o
que subjaz às formas evidenciadas pelo quadro. É que um trabalho
artístico põe-nos o problema da necessidade da sua decifração,
como se depreende do que atrás referi. Ora, esta tentativa de
obtermos uma correcta compreensão implica sempre a necessidade de
se proceder à sua leitura completa, pelo que não pode limitar-se
à análise plástica e histórica da obra, como tantas vezes ainda
se faz, mas necessita de ir mais longe, dirigindo-se tanto ao
consciente do artista como ao seu inconsciente. Estudiosos como
Emile Mâle, Elie Faure, André Malraux e Ernst Gombrich, entre
outros, perceberam-no perfeitamente, tendo aberto, com os seus
trabalhos ligados à Psicologia da Arte, novas e mais proveitosas
perspectivas no que se refere à possibilidade de decifração dos
artistas e das suas obras.
Ou
seja, não basta “sentir” a obra de Arte. Há também que
compreendê-la, procurando simultaneamente compreender o artista. Só
com esta disponibilidade e abertura de espírito é possível que
entre em acção a magia comunicativa que a Arte constitui.
Isto
conduz-nos ao terceiro ponto que há que considerar: aquilo a que
habitualmente se chama “o público”. Esta denominação, talvez
cómoda, é, afirmemo-lo desde já, profundamente incorrecta pois,
na verdade, não existe “o público”: existem “públicos”.
“Isto é óbvio”, podereis dizer-me com razão. Contudo, tal
perspectiva generalizadora e unitarista é inúmeras vezes afirmada
para salientar um acentuado divórcio entre os Artistas, a Arte e os
seus possíveis receptores, o que tem contribuído para,
paulatinamente, se radicar nos espíritos a ideia de que a Arte é
um produto de difícil acesso apenas destinado a uma elite, mais ou
menos endinheirada, a qual, tendo satisfeitas as suas elementares
necessidades materiais, dispõe então da oportunidade de se
deleitar na ociosa contemplação de tais criações.
Urge
que repudiemos este equívoco tão divulgado com intuitos que provêm
de uma certa má-fé. Evidentemente que a satisfação das
necessidades materiais pode assegurar a disponibilidade espiritual
necessária ao estímulo da compreensão da obra de arte e ao
crescente refinamento do gosto, da sensibilidade e da inteligência
cultivada. No entanto, verdadeiramente fundamental na adesão ao
prazer superior que a boa obra de arte proporciona é a
disponibilidade interior de base que o eventual receptor pode
cultivar, no sentido de aprofundar, com maior ou menor dificuldade
da sua parte, as condições mentais que lhe permitam fruir as
propostas artísticas. E estas coordenadas interiores têm menos a
ver com condições sócio-económicas do que com uma adequada
atitude perante a Arte. Aliás, diria mesmo que a boa situação
económica dos indivíduos conta menos do que se pensa, na medida em
que, muitos destes, quando se interessam pelo fenómeno artístico,
são geralmente muito mais atraídos por modas e por outros ditames
propiciados pela sociedade, ligados à superficialidade do culto das
aparências e da publicidade, do que propriamente por um apelo
interior derivado da sua condição humana de sujeitos detentores de
capacidade estética ligada à sensibilidade e ao intelecto.
Dito
isto, deve ser salientado que todo o descobridor e inovador é a
princípio pouco compreendido. Consideremos alguns exemplos: El
Greco foi considerado louco e autor de borrões; Ingres foi acusado
de fazer retrogradar a pintura francesa; Renoir foi tido por um
“verdadeiro malfeitor que corrompeu a juventude”; Géricault foi
violentamente atacado devido ao seu conhecido quadro A Jangada do
‘Medusa’ - isto para nos mantermos no campo da pintura. Daí que
com razão tenha dito o grande poeta espanhol Federico Garcia Lorca,
em carta dirigida a Carlos Morla, que “na vida, aquele que caminha
à frente, revestido de esplendor, é aquele que leva consigo um
pequeno vaso de lágrimas, e não aquele que aperta na mão um
punhado de diamantes”.
Todos
os pintores atrás referidos nos parecem agora clássicos, na medida
em que fazem parte do que de mais rico possui o património artístico
da Humanidade. Actualmente, só um espírito verdadeiramente tacanho
- ou apenas insensível e ignorante - é que ainda pode achar ridículas
as figuras femininas de Renoir, distorcidas as naturezas-mortas de Cézanne
ou absurdos os retratos pintados por Picasso. Quero com isto dizer
que a incompreensão a que o artista inovador tem sido votado
decorre inúmeras vezes do facto de as pessoas não terem ainda
aprendido a ler os seus trabalhos, condenando imediatamente aquilo
que, para elas, é invulgar, porque apenas diferente do que lhes é
habitual. E esta rejeição tanto pode derivar do facto de o
espectador se sentir inferiorizado ante aquilo que é diferente e
que ainda não consegue decifrar, como pode ser consequência de um
néscio sentimento de altaneira e vaidosa superioridade perante o
inesperado, optando a pessoa, neste caso, por - de forma deliberada
- não procurar compreender a novidade. Existe um tipo de público
para quem a sua experiência no contacto com a Arte fossilizou a
dada altura, impossibilitando a análise e a interpretação da obra
que ainda não faz parte - e poderá nunca fazer - do seu espaço
mental e das suas vivências, razão porque aquela criação é
rejeitada ou, na melhor das hipóteses, olhada com desconfiança.
Mas
desde que se faculte, através da instrução e da educação, a
iniciação nas concepções do artista reveladas pela forma de
expressão por que este opte, a breve trecho estaremos na posse dos
instrumentos culturais que poderão possibilitar o entendimento das
suas propostas. O consequente gostar, gostar menos ou não gostar já
dependerá, então, da inclinação esclarecida e não somente da
inculta impressão imediata, a qual em geral determina aceitações
ou rejeições irracionais e levianas. Aquilo que pode ser, à
partida, uma proposta confusa e enigmática, através da conjugação
de esforços da educação, da inteligência e da sensibilidade é
passível de tornar-se um todo ordenado e profundamente
enriquecedor, que o espectador poderá entender caso, não é demais
repeti-lo, se deixe absorver na contemplação da obra e se fizer um
esforço verdadeiro para a compreender. Olhar é diferente de ver;
ouvir não é o mesmo que escutar. Ver e escutar exigem
simultaneamente tempo, concentração e reflexão. A Arte necessita
de ser lida, de maneira a não captarmos apenas a sua forma mas também
a sua ideia, isto é, toda a estrutura ideativa subjacente à forma
por nós imediatamente perceptível. Saber ver é muito diferente do
apenas limitarmo-nos a olhar, exige mais esforço mas é,
igualmente, bem mais gratificante. Da mesma maneira que uma criança,
através da leitura continuada, mais facilmente aprenderá a ler e,
especialmente, a compreender aquilo que lê, assim o observador terá
que treinar a visão, a sensibilidade e a inteligência para poder,
de forma profícua, aceder à magnificência transmitida por uma
excelsa obra de arte. Como referiu o escritor Mário Dionísio,
“uma obra dificilmente acessível não tem que ser necessariamente
detestável”. O importante é aceitar ou rejeitar com conhecimento
de causa e não por mero capricho ou provincianismo. E, de acordo
com esta perspectiva, facilmente se compreenderá que o papel
desempenhado pelos educadores poderá ser absolutamente decisivo na
formação artística dos sujeitos e, logo, na construção de uma
cidadania completa que, por isso mesmo, rejeite preconceitos e
acredite na possibilidade do aperfeiçoamento dos indivíduos e das
sociedades.
4
- O nosso tempo já foi referenciado como sendo o “tempo das
imagens”, tão imensa e rápida é a sua difusão e tão grande é
a sua influência. Julgo que a denominação “tempo das
publi-imagens” (ou “imagens de substituição” ou, ainda,
“sucedâneos da Imagem”) será mais correcta porque mais consentânea
com este facto, uma vez que frequentemente se procura promover, por
razões económicas e de marketing, uma recepção passiva, rápida
e quase irreflectida desse tipo de “imagens”, quando não mesmo
a anulação da margem reflexiva do receptor, o qual é desta forma
mergulhado - e logo diluído - numa massa anónima. Ora, a
verdadeira imagem é sempre artística e, nesta conformidade,
libertadora. E é libertadora porque expressa a Realidade
traduzida em sentimentos e ideias tornados significativos da plenitude
da Existência. Por isso mesmo é que uma das características
da obra de Arte é a permanência no Tempo, como já referi. Aponta,
pois, para a Eternidade - que é a Vida no seu máximo grau. E assim
entende-se porque é que uma obra de propaganda ou de publicidade não
será Arte autêntica, visto que o seu objectivo tem a ver com o efémero
da difusão de uma ideologia ou de um produto. Assinale-se que
determinadas mensagens publicitárias entram por vezes no campo da
arte; e isto porque os seus autores, na circunstância, não se
ficaram pelo utilitarismo estrito da mensagem encomendada.
No
que diz respeito ao artista, a verdadeira imagem expressa o seu
poder de criação de mundos; quanto ao espectador, há a considerar
que ela necessita, para ser descodificada, de tempo, cultivo da
sensibilidade e da inteligência, reflexão autónoma e tolerância,
como se depreende daquilo que atrás disse. Verifique-se que o
bombardeamento dessas tais imagens de substituição a que hoje em
dia se submetem os indivíduos, longe de propiciar a capacidade de
leitura das Imagens, provoca exactamente o efeito contrário,
inibindo-a e distorcendo-a. Potenciais receptores passivos logo
desde a infância, o nosso contacto com a Arte é frequentemente
dificultado. Há que responder, pois, com um maior dinamismo na criação
de instrumentos educacionais e culturais que possibilitem o
contrariar desta tendência. As escolas e os educadores desempenham,
repito, uma função indispensável no aprofundamento de um válido
cenário de salutar sociabilidade, que a Arte incrementa e estimula
- tal como o exprimi no decorrer da exposição que efectuei e por
cuja atenção, ao finalizar, vivamente agradeço.
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