AGUARELA
(João
Garção)
Na
minha terra, quando eu era pequeno
havia
montanhas altas com bosques e recantos
pelo
menos um Oceano com piratas e segredos
e
muitas outras coisas que se transfiguravam
Os
heróis eram altos, atléticos, usavam duas cores
e
parece que havia uns outros sobrados da Grande Guerra
A
velhota gorda que vendia castanhas no largo do Rossio
pertencia
a uma misteriosa quadrilha francesa
falava
alto, tratava os fregueses pelo nome
aparecia
e desaparecia consoante era Inverno ou Verão
No
dia de Santos o gajo das barbas (que tinha um tesouro escondido)
dava-nos
nozes, se lhe batíamos à porta
e
havia alguns, corajosos, que batiam
Havia
um espanhol que era barbeiro
mas
as tesouras cantavam em português
Os
polícias passavam, nas tardes de Primavera
muito
suaves, devagarinho, rua do Comércio abaixo
quando
não era pela Corredoura acima
Pareciam
anjos vestidos de azul claro
Só
muito mais tarde notei que usavam cassetete
Como
eu gostava da Escola! E ainda por cima
os
professores era tudo gente esperta
Não
havia, que eu soubesse, pessoas infelizes
e
os bandidos só faziam serviço no “Tintin”
ou
nos filmes (poucos) da televisão
Mas
as coisas, como nas fitas, parece que às vezes
andam
demasiado depressa.
Os
heróis – os mais velhos morreram –
tinham
estado, coitados, com o Milhões
na França
e
os que eram às cores transformaram-se em futebolistas
com
o remate trocado
A
mulher das castanhas foi um ar que lhe deu:
finou-se
com um colapso e era avó de três netos
como
ela trabalhadores da fábrica da rolha
Os
anjos que eram polícias já só andam de carro
e
um deles até me ofendeu, um dia, junto a um Bar
Alguns
dos professores ficaram com orelhas de burro
E
nesta coisa de crescer, o que mais (juro-vos) me dana
é
que agora corto o cabelo num cabeleireiro
de homens
que
competentemente me afeita (enquanto leio o jornal)
com
um aparelho que rosna como um rafeiro sem classe.
(in
“Líricas
e Satíricas)
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