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SEIS
APONTAMENTOS SOBRE CHAVE DE IGNIÇÃO, DE RUY VENTURA
(João
Candeias)
Há
quem diga que vivemos na sociedade da algazarra. Todos falam, todos
querem aparecer. É verdade que numa sociedade dita democrática
cada cidadão tem direito à opinião. Esta algazarra é consequência
de um deserto de ideias – palavras oralizadas, mas vazias de conteúdo,
são geralmente um deserto de ideias em que se vão repetindo
conceitos de outros até à exaustão. Ou seja, muito barulho por
nada (esta expressão não me é estranha…). Talvez nada seja um
pouco exagerado. Muito barulho por quase nada. E assim, com este
quase, aqui estou sorrateiramente (procurando não fazer muito ruído),
com muito prazer, a apresentar um breve texto como proposta de
leitura do livro Chave de ignição, de
Ruy Ventura
, que organizei sob a forma de “seis apontamentos”.
Antes disso, porém, gostaria de recordar que o autor destes poemas
tem publicados vários títulos, dos quais destaco os seguintes: Arquitectura
do silêncio (2000), Sete capítulos do mundo
(2003), Assim se deixa uma casa (2003) e El
lugar, la imagen (editado em Espanha) (2006).
1.
O
livro sobre o qual nos debruçamos – Chave de ignição,
de Ruy Ventura
– é denso, de uma energia primordial e de instintual vitalidade.
Várias
abordagens seriam possíveis e esquematizáveis: abordagem ao conteúdo
e suas diversidades semânticas (e, aqui, com a complexidade do
sujeito enunciador), estrutural e polissémico, com os materiais
linguísticos em presença, de análise particular que cada poema
propõe; ou, uma aproximação mais geral, mais global de toda a
obra.
Decidimos
optar por esta última hipótese. Tocar em vários aspectos que o
texto apresenta,
com o cuidado de que esta apresentação se não prolongue para além
do que é tolerável para quem aqui está presente. “Esto
brevis et placebis” – Sê breve e agradarás.
2.
Chave
de ignição está dividido em cinco núcleos: um prólogo, três
partes e um epílogo, ou um prólogo, um epílogo e três jornadas,
um pouco à maneira wagneriana. A saber: “[prólogo]”,
“contramina”, “viagem”, “ignição”
e “[epílogo]”.
No
conspecto da obra em apreço, um ponto deve ser especialmente
considerado (ainda que inconscientemente) – a análise comparativa
– uma vez que nunca nos alheámos nem nos furtámos ao que para trás
ficou das leituras que, ao longo de décadas, mais nos marcaram.
Esta
leitura não foi excepção: uma girândola de livros e autores
surgiram na busca axial destes versos. E assim, toda uma arqueologia
substantiva e arquitectural da construção do poema emerge desta
incursão pelo “corpus” da obra. Destacar desta incursão o que
nos pareceu mais saliente não foi tarefa hermenêutica despicienda.
Ruy Ventura
em cada poema fragmenta a lógica do discurso para assim o tornar
mais acutilante e impressivo. Contudo, a lógica interna de cada uma
das cinco partes em que se divide o livro une-se num todo
perfeitamente coeso e centrípeto. Devemos considerar também o
sentir que move o autor em sentido, por vezes ambíguo, mas evidente
– o desejo.
Como
diz Silvina Rodrigues Lopes no seu livro Anomalia Poética,
“[…] há um móbil muito poderoso que leva à poesia, o
desejo”. E nós acrescentaríamos – a necessidade da
escrita.
A
conclusão é a de que estamos perante uma obra rara neste tempo de
secura, de culturas poéticas extensivas e sonolentas.
3.
A
poesia é, de certo modo, o eu perscrutando o insondável, como
sentido antecipador do devir.
A
eclosão do poema é a consequência do pulsar de uma tensão
interior das palavras forçando a sua periferia de silêncio.
Partindo desta ideia, encontramos nestes versos uma contraposição
dialógica entre tempo e memória, morte e salvação. Temos,
portanto, o tempo ausente em “acontecimentos” memorados e o
tempo presente em “acontecimentos” quotidianos.
Cito
Paul Veyne, inserto por Gilles Deleuze no livro O Mistério
de Ariana: “aquilo que se opõe ao tempo, tal como se
opõe à eternidade, é a nossa actualidade”.
A noção de tempo atravessa estas páginas em que as palavras
cimentam como elementos de composição a nossa actualidade, numa síntese
visceral entre o objecto inanimado e a vida. A sombra do tempo
acolhe o mistério. A violência da vida pode ou não conter a redenção?
Demos a palavra ao poeta: “[…] a serenidade acolhe-nos – /
como uma tempestade.” (p. 33)
Qualquer
coisa de escatológico se esconde nos meandros da obscuridade, como
veremos ao longo da leitura da obra. A vida só é vida com os seus
fantasmas. É aí, no fluir – e da tempestade – que se
apresentam, sob a forma de corpo que arde, se mortifica, se
transforma em cinza e que, quando parece que se salva, ressurge
em dúvida. E
o poeta pergunta: “que dança divide o coração?” (p.
32). O medo instala-se intenso no corpo efémero. A dor é a
palavra, a palavra balbuciada com o medo – a presença da morte.
A
vida terá que ter sentido, e Ruy Ventura
monda o eu, onde o ser parece perplexo com o que o circunda, como se
se esperasse uma existência diáfana e definitiva. “A
primeira forma de esperança é o medo, o primeiro rosto do
desconhecido, o susto”, como refere Heiner Müller. George
Steiner reforça: “O medo tem em si um grão de esperança, o
pressentimento de poder ser superado. É o estatuto da esperança
que é hoje problemático.” Para todo o efeito, resta-nos a
esperança, quem sabe, a esperança num deus escondido que permita
– sem livre arbítrio, como lhe compete – a salvação da vida,
num planeta em fogo e chamas.
4.
Mas
é, efectivamente, a memória que pauta e conduz o discurso, que
agita o verbo e leva ao encontro de uma profusão lexical definidora
dos propósitos do seu autor e da sua contribuição para a consistência
da obra: medo, corpo, lume, fogo, cinza, sangue, dor, tempo, memória,
etc., resultam na densidade dos poemas, envoltos em cepticismo
invulgar na obra de Ruy Ventura. Apetece dizer como Strindberg na
sua peça O Sonho: “A humanidade mete dó”.
Convoquemos
de novo o autor: “[…] a carne / apodrece no lugar onde
procuravam o curso / dos planetas […]” (p. 44). Assim
regressa a voz ao fatalismo de uma existência da qual – quem
sabe? – só a memória, a memória da História, nos salvará.
Por
vezes, a memória dissolve-se em cinza – com o corpo – e são
necessárias imagens fixas ou dinâmicas como suporte material: a
gravura, a fotografia, o retrato, o filme. Damos exemplos com os
seguintes versos: “não existe paisagem / para além do
quadro. / monótona, a tinta dissolve / a alma e o pintor. /
descreve esse segredo / como telha enegrecida – / lançando água
para a terra, / guardando (sem saber) / fragmentos de tempo / que
ninguém quis conservar.” (pp. 23-24)
A
erosão impondo a sua acção sobre as coisas que a memória tenta
reter.
O
poeta quer agarrar a imagem, a vida fixada, como se esta fosse a
última forma de reter a realidade. Consideremos os seguintes
fragmentos: “a fotografia permanece em segredo” (p.
21), “o retrato transcende a caligrafia” (p. 22), “projectamos
este filme na memória” (p. 35), “arde sobre o ventre a
mais antiga gravura” (p. 44)… são exemplos que se
apresentam ao longo destas páginas.
5.
E
regressamos, como se percorrêssemos um círculo perfeito, ao
primeiro texto deste livro: “a inteligência dos motores /
dispensa a entrada da chave. / a ignição precisa apenas de
sinapses / cujo código permita a deslocação / do objecto sobre o
espaço.” (p. 13) ou “uma chave é somente uma chave. /
alavanca que o metal permite, utensílio / apenas utensílio – de
movimento, de entrada, de saída. / a combustão não vale como símbolo.
/ reduz a cinza, a fumo – e tudo o mais / é efeito da luz, da
temperatura.” (p. 13). Sendo, na nossa opinião, estes versos
fundamentais para uma leitura destes poemas, é nos versos que se
seguem, também do “[prólogo]”, que encontro o centro
desta obra: “mas guardo nas mãos o objecto – / metal e plástico,
sem filosofia.” (p. 14).
É
conclusivo, sem filosofia! Temos talvez num outro tentame sem
filosofia, a autobiografia das sensações, das “pequenas
percepções” – como dizia José Gil –, também elas em
conflito com o que
Ruy Ventura
pretenderia, um apaziguamento do real, uma luz nas trevas, que de
tanto persistir tem a certeza de encontrar.
6.
Fizemos
uma viagem tortuosa, enfrentámos muitos dos pesadelos que a vida
nos traz, mas não queremos terminar sem revelar o que um dos últimos
poemas do livro nos propõe, embora sem excessos de optimismo. É,
de resto, um dos muito bons poemas deste livro.
A
luz volta a brilhar e a difícil esperança aparece como uma
alvorada. Estamos no berço do futuro. E dizem os versos: “um
corpo nasce. um corpo nasce // para que eu possa morrer.” (p.
47).
A
vida vence a morte. A semente lançada à terra dará os seus frutos
e, perspectiva-se então, a continuidade de um planeta onde todos
poderemos habitar, mesmo com as atrocidades conhecidas. O risco é
imenso, mas o sonho é a possibilidade do impossível.
O passado está completo. O futuro falará por si.
Lido
por João Candeias a 16 de Julho de 2009 na apresentação de Chave
de ignição em Sesimbra.
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