“CIDADES” E
OUTROS POEMAS DE GONZALO NAVAZA
CIDADES
In girum imus nocte
et consumimur ignI
Às íntimas cidades só se
chega
pela passiva, vêm elas a
ti
quando não as procuras,
aparecem
como revelação fugaz,
mostram
a sua troça altiva
fitando de esguelha
o teu surdo tráfego.
Não vêm
precedidas de sinais,
não pedem
mais salvo-conduto
do que uns olhos bem
abertos
de animal sobressaltado.
E não tens de ir muito
longe para saber
que a viagem se mede em
comparanças
com o ponto de partida,
que só sendo de onde és
podes ser noutros
sítios.
E que afinal unicamente
amas
uma cidade quando alguém
há nela
que também te ama a ti e
pronuncia
o teu nome estrangeiro
como ninguém o
pronunciou jamais, como se fosse
a palavra secreta que
cifra o teu destino.
FÁBRICA ÍNTIMA
Tece só a sua teia a lenta tarântula.
Escura num recanto da confusão do assédio
recolhe entre as ruínas da desfeita
os
troféus da morte. Receosa
do
fado quebradiço como dum tesouro
acaricia na sombra as suas próprias feridas
e
vive da convicção de que a vida prossegue
enquanto ainda no peito um coração lateje.
Sabe que tudo está perdido, sabe
que
nada será igual, e não obstante
só
e inerme no meio da noite
prende um cativo lume que cintila
pela gândara erma do silêncio
como se fosse uma voz. Humildemente
tece só a sua teia a lenta tarântula
e
mede na dor a estatura da vida.
OS OUTROS PASSOS
Na
noite metafórica, ao abrigo da alta lua
que
no perfil do espaço se move devagar
fende o silêncio um eco duma distante rua
onde distantes passos parecem ressoar.
Avançando contigo na vereda da idade
semelham ser os ecos do teu próprio ruído:
os
impossíveis passos da impossibilidade,
os
passos doutros homens que pudesses ter sido
e
não foste. De longe, o seu som acompanha
o
teu resvalo lento por diferente via,
espreitando a saudade com uma presença estranha
de
sonhos só formada e de melancolia;
uma
presença escura que fere o corpo quando
destila essa suspeita que te abala o sorriso:
que
ao cabo dos caminhos que foste rejeitando
aguardava a verdade, a luz, o paraíso.
CIDADE
AFOGADA
Torres de sal que foram já um dia
crisol do tempo elementar do lume,
pátria do coração
perdida para sempre,
afogada agora, Compostela.
Na
pedra dos teus sítios namorados
ardeu antanho com fulgor ingénuo,
com
astúcia também, a bem querida
labareda do sangue venturoso.
O
que é feito das praças de alabastro
e
do gume singelo do sol nas pedrarias?
Que
é das flores do amor e dos ornados
com
as águas da paixão?
Onde vão as promessas da magnólia
e
as verdades que os livros ocultavam?
Onde as palavras limpas
do
vinho adolescente
e
da ímpia largueza?
Nada resta
que
não seja enganoso simulacro
e
cifra penitente da ruína.
Debalde pretendemos o regresso
e
acorremos aos mesmos cenários
cegados pelo amor, tal assassinos
voltando escuros ao local do crime
da
mocidade azul. Já não são nossos
os
âmbitos amáveis do passado.
Fatal e irreversível,
o
vento dos desertos esfarela
as
diluídas lajes, as colunas,
a
sombra dos maternos pórticos,
o
bronze vespertino das volutas
e
as altas arquitraves
com
uma chuva incessante
no
rosto das esfinges.
Cai
a tarde nas pálpebras
e
são os membros triste
espelho do sol-pôr e testemunha
do
labor lento de térmita insone
com
que se impõe o esquecimento .Só
nos
é dado sonhar. Sonhar agora
com
Compostela em luz esmorecente,
que
é mansa para os olhos mas que dói
como um cristal de gelo nas meninges,
será evocar um tempo de pássaros.
Mingua a luz na memória
e
cai a tarde enferma sobre os passos
que
devolvem o olhar.
Mergulhada em letal esquecimento
quase não se define a silhueta
da
torre esguia por entre o magma sujo
e
os farrapos doridos
de
um mapa de feridas estancadas.
Só
a informe lembrança nos envia
com
os destroçados restos do naufrágio
confusas badaladas entre a névoa,
signos que caem no coração dos homens
como estigmas de sal
do
avanço inexorável da maré.
MATÉRIA
ELEMENTAR
Absortos na vazante de cristal da inocência
vêm
os olhos cair a chuva lentamente
sobre o pátio submisso e a côdea do planeta.
É
sempre a mesma chuva milenária, a água
incessante dos séculos a cair sobre a terra,
a
traçar na epiderme o seu fado fluvial,
a
escoar-se pelos poros, as seivas, as ravinas,
pelas fontes sonoras e os mares navegáveis,
pelos rios escuros e a as veias subterrâneas,
pelos doidos corações das gentes,
pela gândara vítrea das pupilas.
FRAGMENTO
…mas o nosso dever mais firme é ignorá-lo:
entregarmo-nos à vida como quem vai espalhando
heróico a vã semente pelos sulcos do nada.
TÓPICA DA
CASA
Terras que do Carrio escorrem para o Arnego,
currais, soutos, devesas, pomares, centeeiras,
lagares escuros onde a coruja funga
e a
codorniz farfalha entre o milho e a ervilha,
lugares e labores do sangue antepassado,
barro de que sou feito, raiz, carniça, caroço,
estribeira da idade, sótão dos anteontens,
remoto manancial das águas dos meus olhos,
abeirado horizonte da cabal cepa mestra,
corda deste falar, sabugo destes modos,
da
atávica bigorna chega o calor ao peito
se
na luz do serão soletrar os teus nomes
e
assoma o cerne à voz conforme vou dizendo
Palmou, Toiriz, Quintá, Besexos, Campo, Carbia,
Portafixón, Mosteiro, Coto de Barrio, O Vento,
Pena Redonda, O Piago, A Ponte da Campaina,
As
Seixas, Santo André, O Camballón, Fornelos,
Cercio, Brántega, As Cruces, Galegos, A Goleta,
Bermés, Mouroces, Erbo, O Cello, Val do Carrio,
Pena Guntín, Abonxo, Cumeiro, Carmoega.
Fiadas de romeiros atravessando os séculos
trazem até aqui essa herança sem peso.
Com
a friagem do inverno baixam do monte os lobos
que
vêm espreitar a gente ao bosque das palavras.
(Traduções de Sephi Alter)
Nota: Os poemas “Cidade” e “Tópica da casa” pertencem
originalmente ao livro Libra
(Galaxia, Vigo, 2000). Os demais pertencem a Fábrica íntima
(Galaxia, Vigo, 1991). Ambos os livros receberam o Prémio da Crítica
Espanhola para poesia em língua galega nos anos em que foram
publicados. (Traduções publicadas com autorização do autor.)
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