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Paul Signac

 

“CIDADES” E OUTROS POEMAS DE GONZALO NAVAZA

 

 

CIDADES

 

In girum imus nocte et consumimur ignI

 

Às íntimas cidades só se chega

pela passiva, vêm elas a ti

quando não as procuras, aparecem

como revelação fugaz, mostram

a sua troça altiva fitando de esguelha

o teu surdo tráfego.

 

Não vêm

precedidas de sinais, não pedem

mais  salvo-conduto

do que uns olhos bem abertos

de animal sobressaltado.

 

E não tens de ir muito longe para saber

que a viagem se mede em comparanças

com o ponto de partida,

que só sendo de onde és

podes ser noutros sítios.

 

E que afinal unicamente amas

uma cidade quando alguém há nela

que também te ama a ti e pronuncia

o teu nome estrangeiro

como ninguém o pronunciou jamais, como se fosse

a palavra secreta que cifra o teu destino.

 

 

 

 

FÁBRICA ÍNTIMA

 

Tece só a sua teia a lenta tarântula.

Escura num recanto da confusão do assédio

recolhe entre as ruínas da desfeita

os  troféus da morte. Receosa

do fado quebradiço como dum tesouro

acaricia na sombra as suas próprias feridas

e vive da convicção de que a vida prossegue

enquanto ainda no peito um coração lateje.

Sabe que tudo está perdido, sabe

que nada será igual, e não obstante

só e inerme no meio da noite

prende um cativo lume que cintila

pela gândara erma do silêncio

como se fosse uma voz. Humildemente

tece só a sua teia a lenta tarântula

e mede na dor a estatura da vida.

 

 

 

 

OS OUTROS PASSOS

 

Na noite metafórica, ao abrigo da alta lua

que no perfil do espaço se move devagar

fende o silêncio um eco duma distante rua

onde distantes passos parecem ressoar.

 

Avançando contigo na vereda da idade

semelham ser os ecos do teu próprio ruído:

os impossíveis passos da impossibilidade,

os passos doutros homens que pudesses ter sido

 

e não foste. De longe, o seu som acompanha

o teu resvalo lento por diferente via,

espreitando a saudade com uma presença estranha

de sonhos só formada e de melancolia;

 

uma presença escura que fere o corpo quando

destila essa suspeita que te abala o sorriso:

que ao cabo dos caminhos que foste rejeitando

aguardava a verdade, a luz, o paraíso.

 

 

 

 

CIDADE AFOGADA

 

Torres de sal que foram já um dia

crisol do tempo elementar do lume,

pátria do coração

perdida para sempre,

afogada agora, Compostela.

Na pedra dos teus sítios namorados

ardeu antanho com fulgor ingénuo,

com astúcia também, a bem querida

labareda do sangue venturoso.

 

O que é feito das praças de alabastro

e do gume singelo do sol nas pedrarias?

Que é das  flores do amor e dos ornados

com as águas da paixão?

Onde vão as promessas da magnólia

e as verdades que os livros ocultavam?

Onde as palavras limpas

do vinho adolescente

e da ímpia largueza?

Nada resta

que não seja enganoso simulacro

e cifra penitente da ruína.

 

Debalde pretendemos o regresso

e acorremos aos mesmos cenários

cegados pelo amor, tal assassinos

voltando escuros ao local do crime

da mocidade azul. Já não são nossos

os âmbitos amáveis do passado.

 

Fatal e irreversível,

o vento dos desertos esfarela

as diluídas lajes, as colunas,

a sombra dos maternos pórticos,

o bronze vespertino das volutas

e as altas arquitraves

com uma chuva incessante

no rosto das esfinges.

 

 

 

 

Cai a tarde nas pálpebras

e são os membros triste

espelho do sol-pôr e testemunha

do labor lento de térmita insone 

com que se impõe o esquecimento .Só

nos é dado sonhar. Sonhar agora

com Compostela em luz esmorecente,

que é mansa para os olhos mas que dói

como um cristal de gelo nas meninges,

será evocar um tempo de pássaros.  

 

Mingua a luz na memória

e cai a tarde enferma sobre os passos

que devolvem o olhar.

Mergulhada em letal esquecimento

quase não se define a silhueta

da torre esguia por entre o magma sujo

e os farrapos doridos

de um mapa de feridas estancadas.

Só a informe lembrança nos envia

com os destroçados restos do naufrágio

confusas badaladas entre a névoa,

signos que caem no coração dos homens

como estigmas de sal

do avanço inexorável da maré.

 

 

 

 

MATÉRIA ELEMENTAR

 

Absortos na vazante de cristal da inocência

vêm os olhos cair a chuva lentamente

sobre o pátio submisso e a côdea do planeta.

É sempre a mesma chuva milenária, a água

incessante dos séculos a cair sobre a terra,

a traçar na epiderme o seu fado fluvial,

a escoar-se pelos poros, as seivas, as ravinas,

pelas fontes sonoras e os mares navegáveis,

pelos rios escuros e a as veias subterrâneas,

pelos doidos corações das gentes,

pela gândara vítrea das pupilas.

 

 

 

 

FRAGMENTO

 

…mas o nosso dever mais firme é ignorá-lo:

entregarmo-nos à vida como quem vai espalhando

heróico a vã semente pelos sulcos do nada.

 

 

 

 

TÓPICA DA CASA

 

Terras que do Carrio escorrem para o Arnego,

currais, soutos, devesas, pomares, centeeiras,

lagares escuros onde a coruja funga

e a codorniz farfalha entre o milho e a ervilha,

 

lugares e labores do sangue antepassado,

barro de que sou feito, raiz, carniça, caroço,

estribeira da idade, sótão dos anteontens,

remoto manancial das águas dos meus olhos,

 

abeirado horizonte da cabal cepa mestra,

corda deste falar, sabugo destes modos,

da atávica bigorna chega o calor ao peito

se na luz do serão soletrar os teus nomes

 

e assoma o cerne à voz conforme vou dizendo

Palmou, Toiriz, Quintá, Besexos, Campo, Carbia,

Portafixón, Mosteiro, Coto de Barrio, O Vento,

Pena Redonda, O Piago, A Ponte da Campaina,

As Seixas, Santo André, O Camballón, Fornelos,

Cercio, Brántega, As Cruces, Galegos, A Goleta,

Bermés, Mouroces, Erbo, O Cello, Val do Carrio,

Pena Guntín, Abonxo, Cumeiro, Carmoega.

 

Fiadas de romeiros atravessando os séculos

trazem até aqui essa herança sem peso.

Com a friagem do inverno baixam do monte os lobos

que vêm espreitar a gente ao bosque das palavras.

 

(Traduções de Sephi Alter)

 

 

Nota: Os poemas “Cidade” e “Tópica da casa” pertencem originalmente ao livro Libra (Galaxia, Vigo, 2000). Os demais pertencem a Fábrica íntima (Galaxia, Vigo, 1991). Ambos os livros receberam o Prémio da Crítica Espanhola para poesia em língua galega nos anos em que foram publicados. (Traduções publicadas com autorização do autor.)

 

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