UM EQUILÍBRIO PERICLITANTE
– ensaio de interpretação
do cómico
(de René Girard)
O senhor Jourdain, o «burguês
fidalgo» de Molière, homem ávido de cultura, é suficientemente rico para
poder transformar a própria casa numa universidade privada. Seria isto uma
bênção para os professores, não fora a presença enfadonha do próprio
benfeitor e único aluno, valente mas incorrigível filisteu.
A dada altura, três professores
discutem apaixonadamente os méritos de suas disciplinas respectivas. Segundo
o professor de dança, a música não seria nada sem a dança. Segundo o
professor de música, a dança não poderia existir sem a música. Segundo o
mestre d’armas, até mesmo os músicos e os bailarinos podem ter necessidade
de saber manejar bem uma espada, caso tenham amor à vida.
Quando a discussão está ao rubro
aparece um quarto malandrim, o filósofo de serviço. O triste espectáculo
oferecido por este comité interdisciplinar provoca nele uma tristeza
filosófica. Com uma erudita citação do tratado de Séneca sobre a cólera,
intervém em plena querela com a firme intenção de lhe dar um fim.
Não tem qualquer dúvida que vai
conseguir, pois que a seu ver todos aqueles argumentos são igualmente
ineptos. De facto, as três artes em causa são equivalentes, situando-se no
grau mais baixo da escala do saber, enquanto que a filosofia só ela é digna
de se sentar no topo.
Esta sentença soberana é
rejeitada com indignação. Pelo que o filósofo, cego de raiva, chega mesmo a
vias de facto com os seus três colegas. Deste modo a tentativa de mediação
transforma a disputa de três numa batalha de quatro, já que o pretenso
mediador também se mete ao barulho.
Sempre fico impressionado com a
analogia que se pode estabelecer entre esta peça, tão representativa de um
certo tipo de comédia, e aquilo que se poderia chamar a dinâmica da tragédia
numa peça que é nada mais nada menos que o Édipo Rei.
As três personagens masculinas
desta peça, Édipo, Creon e Tirésias, são, cada uma por sua vez, chamadas a
tentar dominar uma situação, vagamente descrita como a peste, e que podemos
supor ser de carácter conflitual.
Começa por ser a vez de Édipo;
ele resolveu o enigma da esfinge: nenhuma questão é demasiado difícil para
ele. Aparentemente mais modesto, Creon, no fundo, não é menos pretensioso.
Acaba de chegar de Delfos e traz um oráculo que não pode deixar de
restabelecer a ordem.
É Tirésias quem mostra
semelhanças mais gritantes com o filósofo de Molière. Quando entra em cena,
a peste tebana revela-se como verdadeiro foco de divisões intestinas,
nomeadamente entre Creon e o próprio Édipo. Tirésias é um profeta de tal
gabarito que só intervém no momento em que as coisas se tornam
verdadeiramente incontroláveis. Na sua entrada, o coro canta: «Eis o único
homem que traz a verdade em seu seio.» Não é de estranhar que ele se
apresente de modo um tanto ou quanto pomposo.
Logo Édipo entra em fúria. É
sempre assim que ele se comporta, dizem-nos, quando as coisas não se passam
exactamente como ele quer. Mas os outros dois também se enfurecem, se bem
que supostamente não sejam de temperamento colérico.
Desta vez, não é um mas três
supostos mediadores que são literalmente sugados pelo conflito que pretendem
resolver através da mediação. O típico da discórdia parece ser o poder
afirmar-se sobretudo à custa de quem for suficientemente tolo para se julgar
capaz de dominar a sua própria violência.
Comédia e tragédia, estes dois
exemplos mostram-no, estão muito próximas uma da outra. O esquema
fundamental de um presunçoso vítima da sua presunção nelas recorre
constantemente. Mas se esta proximidade é real, porque é que os efeitos da
tragédia são tão diferentes dos da comédia? Quando assistimos a uma tragédia
ou, de maneira geral, àquilo que se costuma chamar um «melodrama»,
arriscamo-nos a reagir vertendo lágrimas – metafóricas ou mesmo reais. A uma
comédia reagimos através do riso. O riso e as lágrimas opõem-se como dois
contrários, duas emoções distintas no mais alto grau.
Ambos são fenómenos físicos;
neste plano a comparação é fácil. Ela rapidamente revela que a oposição
entre o riso e as lágrimas é bastante exagerada ou melhor, como é o caso de
tantas oposições culturais, estabelecida a partir de uma base comum, que se
negligencia quando prevalecem as considerações literárias de género e de
técnica. Quando, fora do estreito contexto literário, perguntamos: «O que é
o riso?», precisamos de descobrir esta base comum ainda escondida, sob pena
de limitar muito o alcance da resposta.
Os fisiologistas dizem que a
função normal das lágrimas é a de lubrificar os olhos. Mas vertemos lágrimas
mais abundantes que de costume sobretudo em duas ocasiões. Primeiro, quando
os acontecimentos considerados «tristes», quer sejam reais quer
representados, provocam este estado emocional de que acabamos de falar;
depois quando existe no olho um corpo estrangeiro, um grão de pó por
exemplo, que irrita. Neste segundo caso as lágrimas, de ordem puramente
física, têm a função evidente de expulsar o intruso, de o expulsar do órgão
que ele se lembrou de querer irritar.
Sabemos que Aristóteles na
Poética, emprega a palavra catarse para descrever o efeito
produzido pela tragédia sobre os espectadores. A palavra significa ao mesmo
tempo purificação religiosa e purga em sentido médico. Uma medicina
catártica é a que purga o corpo de seus maus humores.
No interminável debate acerca da
catarse, muitos defendem que Aristóteles dava pouca importância às
acepções religiosas ou até médicas do termo e que a catarse dele, de
ordem puramente cultural, deveria ser interpretada independentemente das
modalidades religiosas ou médicas desta misteriosa operação.
O que é que Aristóteles entendia
exactamente por catarse? A questão fica em aberto. Em todo o caso
será difícil negar que as lágrimas, enquanto principal efeito físico da
tragédia sobre o espectador, testemunham de modo muito convincente em favor
de uma interpretação literal da teoria catártica.
Quando o corpo humano reage com
lágrimas a uma representação trágica, parece comportar-se de acordo com
Aristóteles. O olho bem pode não ter nenhum grão de pó incomodativo para
eliminar, age no entanto como se fosse preciso expulsar qualquer coisa.
Há-de haver, algures no complexo alma/corpo, uma necessidade de expulsar, já
que possuímos este órgão expulsor. Objectar que as lágrimas não são feitas
para isso não é aceitável. Porque o olho funciona metaforicamente. Perante
uma necessidade, o corpo, frequentemente, reage como um todo; mobiliza
diversos órgãos, mesmo aqueles completamente inaptos para responder à função
requerida mas que não é por isso que deixam de prestar o seu contributo. E é
possível que esta reacção aparentemente excessiva seja reveladora da
natureza da necessidade em causa.
Isto não quer dizer que eu
regresse à teoria fisiológica de William James. Não considero o corpo como a
origem da emoção mas, de uma maneira mais convencional, como um
acompanhamento, quase no sentido musical do termo. Do mesmo modo que um
solista, aqui invisível e inaudível, pelo menos para nós, se faz acompanhar
pelo piano, o sentimento trágico é acompanhado pelas lágrimas.
Os defensores da autonomia da cultura nunca
foram capazes de formular a mais pequena sugestão quanto à origem e
significação da sua catarse puramente estética. Não só o que afirmam
não tem qualquer fundamento como a separação arbitrária que fazem nos priva
do único verdadeiro indício que nos permita interpretar a teoria de
Aristóteles. As lágrimas sugerem que a emoção se liga de facto a um processo
de purificação e eliminação o qual está certamente presente na catarse
médica e também, estou intimamente persuadido disso, na catarse religiosa. A
ideia de purificação religiosa é inseparável do sacrifício e doutras formas
de ritual as quais, a meu ver, se relacionam sempre com um processo
primitivo de bode expiatório, com um linchamento sagrado realmente capaz de
restaurar a ordem e a paz na cidade coligando todos os cidadãos contra uma
só vítima.
A expulsão ritual desta vítima é a expulsão da própria violência.
Voltando agora a falar do rito,
há que reparar no facto de que as lágrimas fazem parte integrante dele. Este
é um pormenor valioso mas cuja importância é muitas vezes minimizada ou
negligenciada. Pelo facto de querermos a qualquer preço opor o riso e as
lágrimas como dois contrários, somos levados a acentuar apenas aqueles
aspectos do riso que parecem diferençá-lo das lágrimas. Mas aqui as
considerações teóricas são muito menos importantes do que aquilo que
poderíamos chamar a praxis moderna do riso. O homem moderno
constantemente simula rir quando na verdade não haveria caso para tal riso.
O riso é a única forma socialmente aceitável de catarse.
Consequentemente todas as espécies de riso que não têm nada a ver com o riso
são confundidas com ele: o riso de cortesia, o riso sofisticado, o riso
mundano. Todos estes falsos risos fazem muitas vezes aumentar a tensão que
supostamente deveriam aliviar e, naturalmente, não são acompanhados de
manifestações autênticas e involuntárias como as lágrimas.
Se é verdade que muitos dos
sintomas do riso se imitam mais facilmente que as lágrimas, também é um
facto que se tornam igualmente involuntários e irreprimíveis quando se trata
do verdadeiro riso. O corpo inteiro sofre um ataque de convulsões; o ar é
rapidamente expulso para fora das vias respiratórias graças a movimentos
reflexos análogos aos da tosse e do espirro. Todas estas manifestações têm a
mesma função que as lágrimas uma vez que o corpo age como se tivesse
qualquer coisa de concreto a expulsar. A única diferença é que um maior
número de órgãos entra em jogo no caso do riso.
Aquilo que mais se aproxima dum
riso puramente natural e físico é sem dúvida a reacção do nosso corpo a uma
sensação de cócegas. Analisada apenas em função da intensidade, esta reacção
parece desproporcionada em relação à fraqueza do estímulo mas pode muito bem
ser que ela corresponda à verdadeira natureza da ameaça ainda não
identificada. Num contexto de hostilidade natural é bem possível que uma
ameaça de morte iminente, uma mordidela de serpente por exemplo, não seja
precedida de nenhum outro aviso além de pequenas cócegas. O carácter
desconhecido do estímulo e o facto de não ser localizável com precisão, pelo
menos no imediato, faz aumentar a intensidade da reacção.
A sua natureza auto defensiva
mostra-se também na extrema sensibilidade às cócegas daquelas partes do
corpo mais vulneráveis e/ou habitualmente mais protegidas ou por uma outra
parte do corpo – como as axilas ou o interior das coxas – ou pela roupa ou
pelas duas coisas, como é o caso da planta dos pés geralmente bastante
sensível às cócegas naquelas pessoas habituadas a calçar peúgas e sapatos.
O riso, pondo a coisa noutros
termos, sobretudo em suas formas menos «culturais», parece querer
significar, precisamente como as lágrimas, que temos de nos ver livres de
qualquer coisa; mas neste caso essa qualquer coisa é mais importante e
precisa de ser eliminada mais depressa que no caso de simples choro. Se o
corpo é a orquestra, o solista invisível e inaudível é acompanhado por um
número muito maior de instrumentos.
Repare-se que a partir de uma
certa intensidade, as lágrimas transformam-se em soluços e acabam por se
parecer cada vez mais com o riso. De alguém cujo riso é incontrolável, que
ri pois verdadeiramente e já sem fingir, dizemos que chora a rir.
Há então entre o riso e as
lágrimas uma diferença não de natureza mas sim de grau, sendo que o
verdadeiro paradoxo reside na maneira com que se define essa diferença. Ao
contrário do que dita o senso comum, o elemento de crise é mais agudo no
riso do que nas lágrimas. O riso parece mais próximo de um paroxismo
tendendo a traduzir-se em verdadeiras convulsões, mais próximo de um esforço
frenético de rejeição e de expulsão. Mais do que as lágrimas, é assimilável
a uma reacção negativa de todo o ser perante um perigo que lhe parece
insuperável.
Que género de perigo é que a
tragédia e a comédia tentam afastar? O que é que elas tentam expulsar?
Existem respostas célebres a esta pergunta, mas quanto a mim será na leitura
paralela do Burguês Fidalgo e do Édipo – Rei que irei procurar
a solução.
Esta leitura não deixa ficar de
pé nenhuma diferença entre a comédia e a tragédia. Porquê? Sublinhámos a
recorrência, no princípio de cada uma das peças, de um certo tipo de
situação, facto que nos leva a minimizar as diferenças entre as personagens
em desfavor dos traços de carácter que os críticos de maneira geral
privilegiam. Nesta perspectiva. Édipo, Creon e Tirésias vêm a ser mais ou
menos idênticos, precisamente como no caso do filósofo e dos seus três
colegas no Burguês Fidalgo.
Este acentuar da recorrência de
uma configuração típica dá ao Édipo – Rei um ar ligeiro de paródia
imediatamente dissipado pela atmosfera trágica. A tragédia exige que levemos
a sério a individualidade. Mesmo que o seu «destino» esteja entre as mãos
dos deuses e a sua liberdade reduzida, os heróis continuam a ser apesar de
tudo o verdadeiro pólo de referência. Mas a coisa passa-se de outro modo com
a comédia na qual o acento incide na repetição e noutros efeitos
estruturais. A vingança dos deuses, a mesquinhez do destino e a ironia cruel
da «condição humana» podem bem esmagar o indivíduo trágico, mas não o
esmagam ao ponto em que o fazem as situações fundamentais do cômico, as
quais são verdadeiramente estruturais no sentido em que as reacções
individuais lhes são subordinadas e se explicam plenamente através delas.
Daí que os projectos individuais nunca deixem de ser frustrados por essas
mesmas situações e que o pensamento individual não esteja em condições de as
ter em conta. Os esquemas estruturais do cómico contestam a soberania do
indivíduo mais radicalmente do que a divindade ou o destino. À medida que
eles vão aparecendo à luz do dia, o interesse do espectador pelo herói
enfraquece e dirige-se à própria estrutura.
Estará esta estrutura tão
presente na tragédia como na comédia? Sim, está, e já nos mitos que são a
fonte comum de ambas. Alguns mitos sempre foram considerados igualmente
próprios tanto para a comédia como para a tragédia. Houve, entre outros,
Anfitriões cómicos e Anfitriões trágicos, e muitas das comédias de
Shakespeare gostam de seguir abertamente esquemas estruturais igualmente
presentes, mas de maneira muito menos visível, nas tragédias. A boa crítica
literária é muitas vezes ligeiramente cómica porque revela esquemas
estruturais até aí quase invisíveis. Nas suas últimas obras, os grandes
escritores, em particular os romancistas, tornam-se muitas vezes os seus
próprios plagiadores. Pelo facto de serem os melhores críticos de si mesmos,
revela-se neles uma veia cómica. Põem mais plenamente em evidência as
estruturas da sua obra anterior; exprimem mais completamente as suas
obsessões como tão bem o mostrou Charles Mauron.
As tragédias de Racine tratam
sobretudo da paixão. A partir do momento em que se sugere que a não
reciprocidade nas relações amorosas é demasiado constante para poder ser
imputada ao «destino» ou ao mistério da escolha pessoal, a partir do momento
em que se torna claro que uma lei está em jogo, psicológica ou outra,
acaba-se a tragédia. É quase impossível resumir Andromaque sem criar
um efeito satírico. A mais elementar descrição das quatro personagens
principais põe a nu um esquema estrutural. Oreste ama Hermione
que não o ama. Hermione ama Pyrrhus que não a ama. Pyrrhus
ama Andromaque que não o ama. Andromaque ama Hector que
já não pode amar ninguém porque está morto. E se não estivesse a cadeia das
paixões não recíprocas poderia prosseguir até ao infinito. E prossegue
efectivamente, mas nas outras peças de Racine.
Se nos persuadirmos que os
heróis de Racine, por alguma razão, só podem sentir aquilo a que chamam
paixão na medida em que o seu desejo vem embater num obstáculo, se os virmos
como tolos ludibriados por algum mecanismo escondido, deixamos de poder
levar essas paixões a sério enquanto paixões. Antes de mais porque,
reduzidas ao idêntico, essas paixões deixam de poder ser associadas aos
sentimentos de carácter excepcional e único que a tragédia exige.
Um indivíduo tenta impor aos que
o rodeiam aquilo que ele pensa ser a sua regra individual. Começamos a rir
quando, de repente e de maneira espectacular, esta pretensão voa em pedaços.
Forças impessoais levam então a melhor. Nas formas mais elementares do
cómico, essas forças podem ser muito simplesmente as leis da gravidade. O
homem que perde o equilíbrio em cima do gelo é tanto mais cómico quanto mais
a sua segurança e a sua prudência se mostrem igualmente incapazes, por muito
grandes que sejam, de o ajudar a preservar o equilíbrio juntamente com a
dignidade.
Existem para dificultar o nosso
domínio do mundo obstáculos mais graves do que as leis da gravidade. Os
outros homens e nós próprios constituímos um empecilho bastante mais
temível, tanto mais que ele parece ter sido removido e que o caminho do
pleno domínio e do triunfo fácil se estende aberto aparentemente na nossa
frente. Os heróis de Racine podem ser vistos pelo seu lado cómico. Eles são
também as vítimas de forças impessoais que lhes passam despercebidas mesmo
quando estreitamente casadas com os seus desejos. Os três sábios do Édipo
– Rei e o filósofo de Molière tornam-se assim a presa de forças
impessoais que, paradoxalmente, são as mesmas que regem as relações humanas.
O que é que acontece então a
todas estas personagens? Não podemos atribuir a sua queda a uma presunção
puramente pessoal, visto que todos fazem a mesma coisa. Deveria haver então
uma interpretação válida para todos. Não podemos falar de uma «imperfeição
trágica» no caso de Édipo e rir do filósofo a pretexto de que ele não faz
mais do que se conformar com o natural sobranceiro da sua raça.
Quando todas as personagens
entram em cena já qualquer coisa aconteceu e que é da ordem do conflito, a
peste no Édipo – Rei, a querela dos três professores no Burguês
Fidalgo. A ânsia de arbitrar o conflito radica na ilusão de
superioridade que o estatuto de puro espectador oferece.
Se é um facto que a chegada
tardia do filósofo o expõe à queda no ridículo, não é por isso que se deve
considerá-lo primeiro como um filósofo e depois como um retardatário, porque
é precisamente no seu estatuto de espectador que radica o seu estatuto de
filósofo. A atitude filosófica depende inteiramente daquele tipo de
observação que só uma aparição tardia torna possível. Hegel compara a
filosofia a uma coruja que levanta voo ao entardecer. Perante o espectáculo
do desaire dos seus antecessores o filósofo não pode deixar de se sentir
superior.
A posição de espectador alimenta
um austero pessimismo moral ao mesmo tempo que uma verve satírica, a qual se
exerce à custa das fraquezas humanas. O espectáculo da fragilidade humana
produz no moralista um efeito ao mesmo tempo exaltante e opressivo. Mesmo
depois da batalha, o filósofo quer considerar os seus colegas como
personagens cómicos; para se vingar deles tenciona escrever uma sátira «no
estilo de Juvenal».
Esta posição de espectador é a
sua, claro está, mas é também a nossa uma vez que somos espectadores da
peça. Quando nos rimos da querela dos três professores, o filósofo está
connosco e nós estamos com ele. Fazemos exactamente a mesma leitura da cena
que ele.
A única diferença é que o nosso
estatuto permanente de espectadores não nos permite entrar impensadamente na
batalha, como já os três professores fizeram antes de nós e como o filósofo
se apresta a fazer agora. Nós estamos protegidos não por uma superioridade
objectivamente real mas pela nossa situação de espectadores de uma peça. As
nossas ilusões nunca podem mostrar o seu verdadeiro rosto, de mais uma
mentira, de mais uma incitação a nos sentirmos «muito acima da ralé» e a nos
armarmos em árbitro. É impossível adivinhar se seríamos capazes de resistir
a esta tentação insidiosa, enquanto o palco é apenas um palco.
Na verdade rimos de algo que
poderia, e em certo sentido deveria acontecer a todo aquele que ri, nós
inclusive. Creio que isto mostra claramente a natureza da ameaça,
despercebida mas sempre presente, contra a qual o riso não cessa de se
proteger, a do objecto ainda não identificado que precisa de expulsar. Quem
ri está a ponto de ser anexado pela estrutura da qual a sua vítima já faz
parte. Enquanto ri, acolhe e ao mesmo tempo rejeita a percepção desta
estrutura na qual o objecto do seu riso já está preso; acolhe-a de bom grado
na medida em que é outro quem foi apanhado, mas ao mesmo tempo tenta
mantê-la à distância. A estrutura, que nunca é individual, tende a fechar-se
sobre aquele que ri. Compreendemos agora porque é que o riso tem a ver com
uma crise; a estrutura é muito mais visível no cómico do que no trágico; a
autonomia do espectador está ali mais imediatamente e mais gravemente
ameaçada.
Compreendemos também porque é
que a introdução de um espectador que ri é um procedimento importante dos
escritores cómicos. Rindo, este espectador cai na armadilha que já engoliu a
sua vítima e por sua vez faz rir.
A perda de autonomia e domínio
de si próprio que caracteriza todas as formas do cómico deve, de algum modo,
caracterizar o próprio riso. Por outras palavras, o riso seja ele qual for
não pode deixar de se parecer com a sua causa seja ela qual for. As cenas
que mostram um espectador a rir são invariavelmente circulares. O culpado
não tem senão o que merece. Longe de ser uma ilusão idealista, esta justiça
distributiva é a própria realidade do mecanismo. Rirá melhor quem rir por
último. As formas mais elementares da comédia mostram claramente este efeito
nivelador do riso sempre presente ali onde quem faz rir e quem ri não estão
separados por uma barreira artificial como a que no teatro separa actores e
espectadores.
Um homem cai no gelo; mas há um
outro que ri tanto que perde o equilíbrio provocando assim a própria queda.
O segundo é muito mais engraçado que o primeiro. Se aparecesse um terceiro
seria ainda mais engraçado a menos, está claro, que se tratasse de mim
mesmo. À medida que a cena se repete, revela uma surpreendente continuidade
entre a essência do cómico e o riso propriamente dito. Em todas as cenas
mencionadas até agora, as possibilidades cómicas do riso ou já foram
aproveitadas, como no caso de Molière, ou então são facilmente
aproveitáveis, como no caso de Sófocles.
O riso físico, dissemos, tem por
objectivo afastar uma agressão vinda do exterior e proteger o corpo contra
uma eventual intrusão. Mas as quasi-convulsões do riso, se se prolongam,
acabam por provocar a derrocada do auto domínio que se propunham preservar.
O verdadeiro riso torna-nos fracos e reduz-nos praticamente à impotência.
Com as formas mais intelectuais
do cómico, o riso, enquanto afirmação de uma superioridade, constitui uma
negação da reciprocidade. Aquele que me faz rir já tentou sem êxito negar
qualquer reciprocidade entre si e os outros. Quando rio, imito e reproduzo
todo o processo a que assisti, a tentativa de fundar um domínio, e o
falhanço dessa tentativa, o vertiginoso sentimento de superioridade e o
desequilíbrio que daí resulta, a desintegração do auto domínio que ameaça
sempre pela calada nas reacções e nas convulsões desenfreadas que o riso
provoca.
São as próprias acções que
supostamente deveriam anulá-la que restabelecem a reciprocidade. O riso
torna-se parte integrante do processo; é por isso que pode ser engraçado em
si mesmo. Então chega uma altura em que já não sabemos se rimos «com» ou
«contra» quem está a rir. Dizemos apenas que neste ponto o riso se torna
«contagioso».
Bergson, no seu livro O riso,
define o cómico como «o mecânico imposto sobre o vivo», algo que cobre
mecanicamente a fluidez e a continuidade da «vida», algo sacudido,
descontínuo e inadequado que se substitui à feliz mobilidade e à graça
daquilo a que ele chamou «élan vital» (ímpeto vital). Bergson, sem qualquer
dúvida, era o filósofo deste «élan vital». É por isso que todas as
filosofias lhe pareciam um tanto cómicas excepto a sua. Acontece o mesmo,
podemos estar certos, com a maior parte dos filósofos.
A definição bergsoniana do
«mecânico» comporta muitos dos aspectos daquilo que aqui chamámos
«estrutural». Falta, a meu ver, à análise de Bergson não, claro está, uma
palavra, isso não tem importância nenhuma, mas sim uma consciência clara do
«mecânico» como algo mais do que um ridículo individual ou mesmo colectivo.
Nas suas principais manifestações, o «mecânico» é apenas a consequência
externa, de ordem estética ou intelectual, de um enorme «problema» que o
filósofo nunca enfrenta verdadeiramente. Vivendo numa época de
«individualismo», Bergson não vê que o cómico, pelo menos a um certo nível,
tem as suas raízes na derrota final de todo e qualquer individualismo.
Existe nas relações humanas um elemento de reciprocidade que nunca deixa de
se afirmar, seja lá o que for que façamos. Quer a acolhamos quer a
rejeitemos, não podemos de modo nenhum escapar a esta reciprocidade, porque
a própria rejeição vem por seu turno fazer parte dela. E se há reciprocidade
inaceitável, é sem dúvida a reciprocidade do conflito, reciprocidade
inesperada cujas manifestações tanto físicas como intelectuais têm sempre
aquela aparência sacudida e discordante que Bergson tão bem soube reconhecer
no cómico.
A maior parte do tempo, Bergson parece pôr
aquele que ri a jogar do lado do «élan vital», quer dizer do lado dos
deuses. Mas o riso em si mesmo, do qual Bergson, pese o título do seu livro,
diz pouca coisa, não é menos mecânico e convulsivo do que a sua causa. Esta
observação já foi feita por Baudelaire, que compara aquele que ri a um diabo
com molas. Nas suas poucas páginas admiráveis sobre a essência do riso,
Baudelaire percebe claramente a diferença entre aquele que ri e o objecto do
riso como uma diferença que nunca pára de desfazer-se até se transformar
pouco a pouco em identidade. «Haverá fenómeno mais lamentável do que ver a
fraqueza regozijar-se com a fraqueza?»,
escreve.
É no preciso momento em que
tentamos afirmar a nossa autonomia através do riso que este se torna
incontrolável, e que a mesma autonomia precisamente nos escapa. Esta
ambiguidade fulcral do riso explica os papéis diferentíssimos que ele pode
desempenhar em diferentes pessoas em diferentes épocas das suas vidas. Tanto
pode ser duma grande inteligência e sensibilidade como ser a própria
crueldade e estupidez.
É certo que o riso se refugia
geralmente numa ilusão de superioridade, mas o carácter evasivo deste
estranho afecto, a sua superioridade frágil e constantemente ameaçada,
permitem-lhe servir diversos fins. Tanto pode derrubar como reforçar a
barreiras que nos separam dos outros. Surge por exemplo quando vemos a
confirmação dos nossos velhos preconceitos mas também quando os vemos afinal
cair desfeitos em pó. Frequentemente Baudelaire é acusado de ter uma ideia
demasiado pessimista acerca do riso, mas ele é um do únicos a reconhecer a
existência de um riso verdadeiramente superior, aquele que aceita a ideia da
sua própria queda. Ao contrário de muitos dos nossos insípidos
«desmistificadores», ele não elabora gaiolas intelectuais para lá prender
toda a gente excepto a si próprio, compreende o riso numa luz pascaliana,
como sinal de contradição dando testemunho ao mesmo tempo da «miséria
infinita» e a «grandeza infinita» do homem.
Não deixa de ser verdade que a
maior parte das pessoas ou melhor o homem em geral, se ainda é possível
empregar esta expressão, não têm razão nenhuma para rir. Se o riso é mesmo
essa coisa evasiva que descrevemos e que rindo nós não fazemos senão
usufruir do nosso último instante de ilusão vertiginosa antes que a
catástrofe nos abata, porque é que continuamos então a rir como se nada
fosse, porque é que gostamos de rir, porque é que temos prazer nisso?
Uma das razões é, ao que parece,
a nossa atitude ambivalente em relação a tudo aquilo que chamamos o nosso
«eu», o nosso «ego», a nossa «identidade», a nossa «superioridade». De facto,
tudo isso é ao mesmo tempo o mais alto prémio que temos de ganhar, o tesouro
inestimável que, formigas incansáveis, não paramos de ajuntar, e um fardo
assustador que queremos desesperadamente largar, de preferência sobre as
costas dum outro.
Incapazes de nos vermos livre
dele de uma vez por todas, estamos sempre à procura de novos meios de nos
libertarmos, quanto mais não seja provisoriamente. O riso é um desses meios.
Ele permite-nos usufruir, fugazmente, de duas experiências incompatíveis. O
nosso domínio e a nossa autonomia crescem à medida que vemos os outros
perdê-los e a armadilha a fechar-se sobre eles. Mas como, por outro lado,
rindo, começamos a descontrair-nos, a rígida tensão inerente ao auto domínio
começa também a aliviar.
O riso pode ser comparado a uma
droga, nomeadamente ao álcool, o qual começa por dar uma impressão de
soberania, de triunfo fácil sobre obstáculos insuperáveis. Uma ligeira
ebriedade é agradável e favorece o riso; mas o abuso de álcool provoca
vertigens e náuseas.
Em contrapartida, um riso
inextinguível, raramente nos provoca essa desagradável sensação que é a
náusea. Porquê? Como é que nos podemos «fartar de rir» sem sofrer as
consequências? É que, ao que parece, o nosso riso está entre as mãos de
especialistas, ora amadores ora profissionais, cujo ofício é fazer-nos rir e
que nos dão a justa medida desta droga: nem a mais nem a menos. Por outras
palavras, velam para que sejam reunidas as condições necessárias ao
aparecimento do riso. Sem eles o nosso riso seria tão raro quanto breve.
Quais são essas condições? Uma
pessoa apenas ri, como vimos, se vir verdadeiramente ameaçada a capacidade
de dominar o seu meio natural e humano e até os seus próprios pensamentos e
desejos. No entanto, se esta ameaça se afina e se torna demasiado real,
deixa de rir. As condições do riso são pois contraditórias. É preciso que a
dita ameaça seja ao mesmo tempo esmagadora e nula; o risco de cair na
armadilha que já engoliu as vítimas do nosso riso deve ser ao mesmo tempo
iminente e inexistente. Para nos «fartarmos de rir» é preciso sempre «ficar
por cima», mesmo quando estamos constantemente a correr o risco de «ficar
por baixo».
Naturalmente, a melhor maneira
de reunir estas duas condições contraditórias é fornecer verdadeiras vítimas
sacrificiais. Qualquer palhaço ou comediante em plena posse dos seus meios
artísticos sabe perfeitamente que as pessoas rirão ou à custa dele ou à
custa de um terceiro.
Mas isto não basta. Já chamámos
a atenção para o facto de os espectadores, para poder rir à vontade, deverem
estar completamente separados do objecto do seu riso. Se eu próprio me
encontrar no gelo já não rirei tão francamente de quem cai. Estar fora do
palco é apenas um dos modos de obter este estatuto de puro espectador
indispensável ao aparecimento do riso. A distância que nos separa dos
costumes estrangeiros ou do passado longínquo permite também que nos
abandonemos ao riso em total impunidade.
Mas há mais. No ambiente
cultural de pessoas muito imaginativas e capazes de se porem facilmente no
lugar dos outros, só se ri se a anulação da vontade própria pelas forças
impessoais tiver apenas consequências limitadas. A vítima deve sofrer apenas
incómodos; de facto, quando não se trata de pequenos incómodos mas de uma
grave catástrofe, já ninguém se ri, sobretudo quando a vítima é tida como
alguém «chegado».
As condições do riso são de tal
modo complexas e exigentes que raramente as poderíamos reunir se não o
fizéssemos de uma maneira artificial. E de facto, existem pessoas cujo
ofício é o de criar estas condições, e por vezes graças ao emprego de meios
tão complexos e tão técnicos que a contradição destas duas condições que
acabámos de definir aparece à luz do dia.
Isso pode verificar-se
facilmente quando não há vítima sacrificial para desencadear o nosso riso e
introduzir a distância necessária entre nós mesmos e as forças impessoais
que tendem a levar a melhor quando nós – ou antes o nosso corpo –
constituímos o objecto principal do nosso «divertimento».
Aquilo em que estou agora a
pensar, é uma espécie de riso de carácter físico, sobretudo, que nasce dos
perigos evitados mesmo à justa, acidentes de que escapamos por milagre,
curvas apertadíssimas dadas a uma velocidade muito além da prudência. Há
pessoas que gostam deste tipo de situações e se comprazem nelas, mas a maior
parte só as procura quando são simuladas – com a maior fidelidade possível –
e oferecem uma razoável margem de segurança (assim as atracções de feira). É
só quando os riscos estão reduzidos ao mínimo, não deixando de parecer
importantes, que algumas pessoas experimentam, ao serem violentamente
sacudidas e projectadas em todos os sentidos, um prazer tão intenso que até
choram a rir.
Vemos então claramente que não
pode haver riso sem ameaça – ameaça ao mesmo tempo terrível e
insignificante. Assim as duas condições contraditórias do riso estão
presentes tanto nas suas formas mais elementares como nas mais intelectuais.
A única diferença provém do facto das forças impessoais que ameaçam a
autonomia do homem poderem ser ora puramente naturais e físicas ora geradas
nas próprias relações humanas; neste caso elas exprimem a não aptidão do
indivíduo para dominar perfeitamente essas relações.
As cócegas acima descritas como
uma das mais primitivas formas, senão mesmo a mais primitiva forma do riso,
dão um novo testemunho da provável universalidade das suas duas condições
contraditórias. Um facto interessante: podem ser provocadas artificialmente
como as outras formas de riso. Quando são desencadeadas, por assim dizer,
por um outro ser humano, suscitam uma reacção bastante mais intensa e mais
próxima do verdadeiro riso.
Há uma estratégia das cócegas
que é muito parecida com a da guerra ofensiva. Não se deve visar um ponto
preciso do corpo, mesmo que seja especialmente sensível, pois seria então
demasiado fácil para a vítima localizar a ameaça e proteger-se. Para agir
com eficiência é preciso que nos movamos rapidamente de um ponto para o
outro mudando constantemente de objectivo para prevenir qualquer tentativa
de auto defesa. Do mesmo modo, na guerra ofensiva, ganha quem for
suficientemente lesto para conseguir multiplicar os ataques em pontos tão
distantes uns dos outros e com tal rapidez que seja impossível fazer-lhes
frente.
Há contudo uma diferença de
vulto entre estas estratégias. No caso das cócegas não se pode falar de
verdadeira ofensiva, nem mesmo de veleidade ofensiva. Basta suspeitar de uma
tal intenção para deixar de haver riso. A ameaça deve visar numerosos pontos
do corpo, o ataque deve ser vigoroso e até mesmo irresistível, mas é preciso
que ao mesmo tempo não haja nenhuma ameaça nem nenhum ataque. As cócegas são
uma guerra a brincar (para rir) contra o corpo de outrem.
Uma das proibições que as
cócegas não devem nunca transgredir diz respeito aos gestos abertamente
sexuais, se bem que não trate propriamente de uma proibição sexual; tem mais
a ver com a violência real que as cócegas imitam sempre sem nunca a
pôr em prática.
À primeira vista as reacções que
elas provocam parecem uma presa fácil para o imperialismo freudiano; na
verdade, não é assim. Há nelas qualquer coisa de categoricamente não sexual
e até anti-sexual. Os órgãos sexuais se bem que protegidos e vulneráveis não
são particularmente sensíveis às cócegas e ainda bem. O facto de a sensação
de cócegas responder a uma iniciativa abertamente sexual é geralmente
sentido como uma ofensa pois que interpretado como uma forma de rejeição
tanto mais profunda quanto involuntária. Fazer cócegas a um parceiro com um
objectivo sexual é, claro está, prática corrente. Isso permite quebrar uma
resistência física sem despertar reacções de hostilidade. As conotações não
sexuais das cócegas fazem delas um excelente meio de sedução sexual. Elas
possibilitam levar a cabo contactos físicos que, se bem que íntimos,
repelem, até certo ponto, qualquer intenção imediatamente sexual por parte
do assaltante.
Espero não dar origem a um
mal-entendido se disser que a comédia é um cocegar intelectual. Mais do que
qualquer outro tipo de representação estética, a comédia priva-nos da nossa
preciosa autonomia, só que esta privação é na verdade totalmente ilusória.
Os ataques nunca chegam a ser cruéis mesmo que não sejam neutralizados por
um processo qualquer. Pois não riríamos se não tivéssemos a íntima convicção
de nos podermos livrar a qualquer momento daquilo que nos faz rir e de poder
transformar a ameaça em brincadeira.
Um grande escritor cómico não
evita os assuntos «coceguentos» nem os problemas «bicudos». Não ignora
todavia que, tal como quem faz cócegas, deve «utilizar uma ponta delicada» e
que é o único a saber servir-se dela. Conhece o limite a não ultrapassar: só
ele pode dar um ligeiro puxão ao tapete debaixo dos nossos pés – com força
que chegue para nos fazer rir mas sem nos fazer cair de rabo no chão.
Em toda a verdadeira comédia há
algo de profundamente subversivo: o riso de Molière, por exemplo, é
anticartesiano pois mostra a falsidade das pretensões do cogito de
Descartes. Nenhuma filosofia no sentido clássico do termo pode compreender
ou explicar o riso uma vez que a filosofia tenta assentar a nossa capacidade
de domínio, o nosso senhorio de seres humanos ou de indivíduos que somos,
sobre bases inabaláveis.
No mundo moderno, tão diferente,
em que vivemos, os grandes profetas continuam a dar, mais coisa menos coisa,
o mesmo recado: as nossas acções, pensamentos e desejos são inteiramente
dominados por esquemas que nós mesmos não criámos e que nunca interpretamos
perfeitamente.
Isto é assim no caso dos
cientistas, dos sociólogos, dos pensadores como Marx, Nietzsche ou Freud.
Estes últimos particularmente laboram todos eles naqueles mesmos campos de
onde os primeiros escritores cómicos extraíram a maior parte dos seus
materiais. Antes do século XIX, as relações entre pessoas de culturas ou de
níveis socio-económicos diferentes – entre os criados e os donos da casa por
exemplo – eram um dos principais assuntos de comédia juntamente com as
desajeitadas tentativas amorosas dos jovens ou dos velhos. Marx, Nietzsche e
Freud tentaram certamente purgar estes diversos temas de todo e qualquer
vestígio de piada e a maior parte das vezes conseguiram-no.
Nós mudamos isso tudo.
Freud especialmente introduziu o seu fatal lapsus naquilo que dantes
era trocadilho, laracha, jogo de palavras e outros dizeres espirituosos; de
todo este espírito, conseguiu arranjar assunto para um debate sério que
ainda dura.
Não chega dizer que este novo
estado de coisas não tem piada; o mundo actual tenta retirar-nos todas a
possibilidades futuras de riso. Já nenhuma ilusão de autonomia pode ser
destruída pois estamos convencidos de que não sobra nenhuma. Mas esta
interpretação em sentido único pode muito bem ser uma outra ilusão egotista.
Coisa estranha, a extrema
humildade do homem moderno anda a par com o maior orgulho de todos os
tempos. À medida que vamos descobrindo as forças desconhecidas que informam
os nossos destinos, estas, supostamente, deveriam passar a obedecer-nos,
pelo menos parcialmente. Cada nova descoberta vem dar-nos novos poderes
sobre o meio-ambiente e sobre os nossos semelhantes. Estamos constantemente
a aprender que não somos absolutamente nada e que, por outro lado, um mundo
está a nascer, destinado a submeter-se absolutamente à vontade do homem.
Só que estas predições deixam
sempre de lado o facto de que não existe uma vontade humana comum. Os homens
não são agora mais capazes do que antigamente de dominar as suas relações.
As suas ambições, as suas realizações grandiosas são extremamente frágeis;
não dependem da natureza ou do destino mas dessas mesmas «forças impessoais»
que fazem das personagens do Burguês Fidalgo marionetas a quem
ninguém segura os fios.
Em certo sentido, portanto,
nunca, como hoje, foi tão fácil fazer rir. No entanto agora as paradas são
tão altas e os riscos tão grandes que o nosso riso já não pode ser tão
franco e seguro como em épocas passadas. Nunca a natureza precária instável
e «nervosa» do riso foi tão manifesta. Quando consideramos o tipo de cómico
actualmente em voga, é lícito pensar que a nossa época acrescenta – ou
melhor, revela – uma nova dimensão do dito célebre de Molière sobre o riso e
a criação da comédia: «Que estranha empresa é esta de fazer rir a boa
gente.»
(Tradução de Sephi Alter)
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