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Nicolau Saião

 

O lirismo e o cinismo na poesia

Uma análise fria sobre a poesia dos novos autores

 

(Gustavo Felicíssimo*)

 

A cultura e o senso crítico é constitutivo do ser humano, no entanto vivemos em um tempo onde impera a hipocrisia, onde todos artistas querem ser vanguardistas, de esquerda, revolucionários, mas na verdade a maioria esmagadora é conservadora, e não é errado ser conservador, é até necessário para que as forças se equilibrem, senão vira baderna; o que não tem serventia alguma é a hipocrisia. A poesia, por exemplo, essa pobre coitada está impregnada de hipocrisia, e aqui quero referir-me ao que chamo de “lirismo exacerbado” como sinônimo de hipocrisia, pois o que acontece é que tenho notado que os poetas estão muito mais preocupados com seus “eus” que com a mensagem que seu poema passará. E não me venham os críticos dizerem que não sei que a poesia é composta por muitas outras coisas além das palavras, mas, muito mais que ritmo, metáforas e aliterações, muito mais que falar do amor, da vida, da infância, flores, pedras ou cavalos, é necessário ter o que dizer, imprimindo uma mensagem maior para a humanidade, caso contrário a leitura histórica e estilística que será feita daqui a algumas décadas nos imporá a pecha de vazios, “geração vazia”.

 

Vivemos um tempo de guerras, declaradas ou não, um tempo em que esperamos ansiosos por mudança ética e moral na política com a retirada de toda sujeira que está debaixo do tapete, só não podemos ficar ociosos; nesse mesmo tempo a indústria cultural parece-me nunca ter sido tão pobre de reais valores, e hoje, muito mais que em outros tempos, os poetas estão calados, recolhidos em seus mundos sem se ocuparem em, sem abrir mão dos elementos que compõem um poema, mostrar sua indignação contra toda essa sorte – devia dizer azar – de coisas que nos afligem e, por que não dizer, afligem toda a humanidade.

Tudo aquilo que requer para si a nominação “arte” possui forma, não confundir com fôrma, não obstante, o que importa é a qualidade, não a quantidade, e isso muitos de meus pares de geração ainda não entenderam. Ao lado da qualidade de uma obra artística navega a mensagem, e nesse ponto eu poderia citar inúmeros poetas que imprimiram em suas obras uma mensagem maior para a humanidade, mas prefiro me agarrar à obra de apenas dois poetas brasileiros vivos para iluminar o que defendo, indo beber em Manuel Bandeira, com sua “Nova poética”, onde lançara a “teoria do poeta sórdido”, definindo-o como “aquele em cuja poesia existe a marca suja da vida”, a qual podemos traduzir dizendo que o poeta sórdido/sujo é aquele que não aceita calado os desmandos da burguesia oligárquica, nem a alienação e os desvios éticos e morais da sociedade, fazendo submergir no limbo uma missiva que pretende evitar o esvaziamento da poesia.

 

O livro “Os becos do homem”, de Jorge de Souza Araújo, o “Poema Sujo” e “Dentro da noite veloz”, ambos de Ferreira Gullar, em breve estarão completando 25 e 31 anos respectivamente de lançamento e permanecem atuais porque a opressão sobre o homem continua, agora sem a repressão dos tempos de ditadura, mas com a ditadura da comunicação. A mensagem neles contida é duradoura e será eterna enquanto nosso mundo for esse que encontramos aí fora, derramando sangue e dejetos, devastação e poluição em nossas casas através dos telejornais, uma vez que a televisão, o meio mais fútil de entretenimento e importante instrumento de dominação e alienação das massas, tornou-se a maior companheira do ser humano, ocupando nas residências os espaços mais nobres nelas existentes. Reparem:

 

tempo, espaço, memória

          o homem

será isca da história?

 

Com esses versos Jorge resume tudo o que quero dizer e vai além em “DECLARAÇÃO DE POESIA II” com duas estrofes:

 

Quero agora uma poesia patifa

que se exponha e denuncie

e assuma seu tecido miserável

 

uma poesia que tresande dissolva

o amargo desamparo

da natureza pobre da linguagem

(...)

 

Pois poesia também é isso, exposição e denúncia, denúncia que o autor com seu satélite oferece aos homens no poema “PANFLETO” quando conclui:

 

(...)

Antes acabemos com a briga de galo

desse desfile armamentista

ou com os torneios redondos das conferências de paz

quantas conferências meu Deus e paz nenhuma!

(...)

 

Nada mais atual. E quantos são os poetas que sentem a mesma coisa hoje, que desejam a mesma coisa hoje, que querem dizer de seu jeito essas mesmas coisas e não dizem nada? Porquê? Será que são vazios como parecem ser seus poemas? O que é que os impede? Será que não leram “A ROSA DO POVO” ou será que apenas leram o poema “A procura da poesia”? Talvez nem o leram direito, Drummond.

 

Em 1975, exilado na Argentina, sentindo a morte cada vez mais perto, durante quatro meses Ferreira Gullar dedicou-se a escrever o seu histórico “Poema Sujo”, que foi revelado aos intelectuais da época por Vinícius de Morais, que o trouxe para o Brasil gravado na voz do autor em fita K-7, depois reproduzido e distribuído de mão em mão. Esse poema, segundo o autor é fruto de “uma experiência poética única”, nele estão registradas suas lembranças, imagens, dores e prazeres de um modo intenso e viril, onde está presente a forma inconfundível de Gullar que acerta no alvo com um andamento alucinante logo nos primeiros versos:

 

                        turvo turvo

                        a turva

                        mão do sopro

                        contra o muro

                        escuro

                        menos menos

                        menos que escuro

menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo

                        escuro

                        mais que escuro:

                        claro

como água? como pluma? Claro mais que claro claro: coisa alguma

                        e tudo

                        (ou quase)

um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas

                        azul

                        era o gato

                        azul

                        era o galo

                        azul

                        o cavalo

                        azul

                        teu cu

 

É a angustia do homem se manifestando não em palavra, mas no estado de coisas que ele experimentava porque a palavra muro em seu poema já era o próprio muro, assim como o escuro era a própria escuridão e de claro não havia coisa alguma. É preciso entender a aflição do poeta para sentir a porrada no peito sem nenhum disfarce; aliás, foi esse poema que o fez retornar ao Brasil abertamente, bem na cara dos milicos e com uma turma da pesada o esperando. Glauber Rocha e Vinícius de Morais, por exemplo, fizeram parte desse time que foi recepcioná-lo no aeroporto do Rio de Janeiro, mas no dia seguinte ele foi preso e torturado.

 

“Dentro da noite veloz”, que é seu livro imediatamente anterior a “Poema Sujo”, registra o poeta de pensamento socialista, diretamente ligado ao povo e sofrendo com o povo as dores que desde sempre foram suas também, onde belíssimos poemas engajados são oferecidos à nação sem que neles o poeta seja obrigado a abrir mão daqueles elementos que compõem um poema. Todos os poemas do livro têm essa conotação, mas o que mais me chama a atenção e o que melhor serve à crítica que faço é “Não há vagas”, que diz:

 

O preço do feijão

não cabe no poema. O preço

do arroz

não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás

a luz o telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão

 

O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em arquivos.

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras

 

- porque o poema, senhores,

  está fechado:

  “não há vagas”

 

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

 

            O poema, senhores,

            não fede

            nem cheira

 

Sem comentários. O estranhamento que o poeta busca causar com seu grito não serve apenas para dizer as coisas de um modo diferente daqueles que não têm o mesmo dom ou para mostrar ao mundo a viagem fantástica do seu “eu”, mas também para chamar a atenção dos leitores para determinadas substâncias, excrescências sociais, fazendo-se prevalecer do mérito de ser, segundo Ezra Pound, a “antena da raça”.

 

É evidente que existem exceções, a mais significativa para mim é a que arrisco chamar de “nova poesia marginal” e que tem sido fomentada pelo rapper e escritor Ferréz, através da publicação das revistas Literatura Marginal I e II, que é um marco na literatura dos que vivem à margem da sociedade e que apresenta um quadro bem diferente da literatura marginal dos anos 70.

 

Para concluir quero “pongar” em um comentário de meu amigo Henrique Wagner sobre este artigo e concordar com ele quando diz que “vivemos um tipo de beletrismo muito perigoso porque estéril, narcisista. E pior: um beletrismo que não dá nem um soneto do Bilac, que aliás, era um chato de galocha”.

 

Enfim, muito mais poderia ser dito e mostrado neste artigo, no entanto penso que por ora isso é tudo.

 

 

*Gustavo Felicíssimo, maio de 71, é natural de Marília, interior de São Paulo. Poeta radicado em Salvador, Bahia, desde 1993, onde fundou a SOPA – SOCIEDADE DE POETAS E AMIGOS, através da qual publica e é editor do tablóide literário SOPA POESIA E AFINS, que circula periodicamente na Bahia, com tiragem de 5.000 exemplares e distribuição gratuita.

 

e-mail: gf.poeta@ig.com.br / http://www.sopadepoesia.zip.net

 

 

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