O lirismo e o cinismo na
poesia
Uma análise fria sobre a
poesia dos novos autores
(Gustavo Felicíssimo*)
A cultura e o senso crítico é
constitutivo do ser humano, no entanto vivemos em um tempo onde
impera a hipocrisia, onde todos artistas querem ser vanguardistas,
de esquerda, revolucionários, mas na verdade a maioria esmagadora é
conservadora, e não é errado ser conservador, é até necessário para
que as forças se equilibrem, senão vira baderna; o que não tem
serventia alguma é a hipocrisia. A poesia, por exemplo, essa pobre
coitada está impregnada de hipocrisia, e aqui quero referir-me ao
que chamo de “lirismo exacerbado” como sinônimo de hipocrisia, pois
o que acontece é que tenho notado que os poetas estão muito mais
preocupados com seus “eus” que com a mensagem que seu poema passará.
E não me venham os críticos dizerem que não sei que a poesia é
composta por muitas outras coisas além das palavras, mas, muito mais
que ritmo, metáforas e aliterações, muito mais que falar do amor, da
vida, da infância, flores, pedras ou cavalos, é necessário ter o que
dizer, imprimindo uma mensagem maior para a humanidade, caso
contrário a leitura histórica e estilística que será feita daqui a
algumas décadas nos imporá a pecha de vazios, “geração vazia”.
Vivemos um tempo de guerras, declaradas
ou não, um tempo em que esperamos ansiosos por mudança ética e moral
na política com a retirada de toda sujeira que está debaixo do
tapete, só não podemos ficar ociosos; nesse mesmo tempo a indústria
cultural parece-me nunca ter sido tão pobre de reais valores, e
hoje, muito mais que em outros tempos, os poetas estão calados,
recolhidos em seus mundos sem se ocuparem em, sem abrir mão dos
elementos que compõem um poema, mostrar sua indignação contra toda
essa sorte – devia dizer azar – de coisas que nos afligem e, por que
não dizer, afligem toda a humanidade.
Tudo aquilo que requer para si a
nominação “arte” possui forma, não confundir com fôrma, não
obstante, o que importa é a qualidade, não a quantidade, e isso
muitos de meus pares de geração ainda não entenderam. Ao lado da
qualidade de uma obra artística navega a mensagem, e nesse ponto eu
poderia citar inúmeros poetas que imprimiram em suas obras uma
mensagem maior para a humanidade, mas prefiro me agarrar à obra de
apenas dois poetas brasileiros vivos para iluminar o que defendo,
indo beber em Manuel Bandeira, com sua “Nova poética”, onde lançara
a “teoria do poeta sórdido”, definindo-o como “aquele em cuja poesia
existe a marca suja da vida”, a qual podemos traduzir dizendo que o
poeta sórdido/sujo é aquele que não aceita calado os desmandos da
burguesia oligárquica, nem a alienação e os desvios éticos e morais
da sociedade, fazendo submergir no limbo uma missiva que pretende
evitar o esvaziamento da poesia.
O livro “Os becos do homem”, de Jorge de
Souza Araújo, o “Poema Sujo” e “Dentro da noite veloz”, ambos de
Ferreira Gullar, em breve estarão completando 25 e 31 anos
respectivamente de lançamento e permanecem atuais porque a opressão
sobre o homem continua, agora sem a repressão dos tempos de
ditadura, mas com a ditadura da comunicação. A mensagem neles
contida é duradoura e será eterna enquanto nosso mundo for esse que
encontramos aí fora, derramando sangue e dejetos, devastação e
poluição em nossas casas através dos telejornais, uma vez que a
televisão, o meio mais fútil de entretenimento e importante
instrumento de dominação e alienação das massas, tornou-se a maior
companheira do ser humano, ocupando nas residências os espaços mais
nobres nelas existentes. Reparem:
tempo, espaço, memória
o homem
será isca da história?
Com esses versos Jorge resume tudo o que
quero dizer e vai além em “DECLARAÇÃO DE POESIA II” com duas
estrofes:
Quero agora uma poesia patifa
que se exponha e denuncie
e assuma seu tecido miserável
uma poesia que tresande dissolva
o amargo desamparo
da natureza pobre da linguagem
(...)
Pois poesia também é isso, exposição e
denúncia, denúncia que o autor com seu satélite oferece aos homens
no poema “PANFLETO” quando conclui:
(...)
Antes acabemos com a briga de galo
desse desfile armamentista
ou com os torneios redondos das
conferências de paz
quantas conferências meu Deus e paz
nenhuma!
(...)
Nada mais atual. E quantos são os poetas
que sentem a mesma coisa hoje, que desejam a mesma coisa hoje, que
querem dizer de seu jeito essas mesmas coisas e não dizem nada?
Porquê? Será que são vazios como parecem ser seus poemas? O que é
que os impede? Será que não leram “A ROSA DO POVO” ou será que
apenas leram o poema “A procura da poesia”? Talvez nem o leram
direito, Drummond.
Em 1975, exilado na Argentina, sentindo
a morte cada vez mais perto, durante quatro meses Ferreira Gullar
dedicou-se a escrever o seu histórico “Poema Sujo”, que foi revelado
aos intelectuais da época por Vinícius de Morais, que o trouxe para
o Brasil gravado na voz do autor em fita K-7, depois reproduzido e
distribuído de mão em mão. Esse poema, segundo o autor é fruto de
“uma experiência poética única”, nele estão registradas suas
lembranças, imagens, dores e prazeres de um modo intenso e viril,
onde está presente a forma inconfundível de Gullar que acerta no
alvo com um andamento alucinante logo nos primeiros versos:
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que
escuro
menos que mole e duro menos que fosso
e muro: menos que furo
escuro
mais que
escuro:
claro
como água? como pluma? Claro mais que
claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem
sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
É a angustia do homem se manifestando
não em palavra, mas no estado de coisas que ele experimentava porque
a palavra muro em seu poema já era o próprio muro, assim como o
escuro era a própria escuridão e de claro não havia coisa alguma. É
preciso entender a aflição do poeta para sentir a porrada no peito
sem nenhum disfarce; aliás, foi esse poema que o fez retornar ao
Brasil abertamente, bem na cara dos milicos e com uma turma da
pesada o esperando. Glauber Rocha e Vinícius de Morais, por exemplo,
fizeram parte desse time que foi recepcioná-lo no aeroporto do Rio
de Janeiro, mas no dia seguinte ele foi preso e torturado.
“Dentro da noite veloz”, que é seu livro
imediatamente anterior a “Poema Sujo”, registra o poeta de
pensamento socialista, diretamente ligado ao povo e sofrendo com o
povo as dores que desde sempre foram suas também, onde belíssimos
poemas engajados são oferecidos à nação sem que neles o poeta seja
obrigado a abrir mão daqueles elementos que compõem um poema. Todos
os poemas do livro têm essa conotação, mas o que mais me chama a
atenção e o que melhor serve à crítica que faço é “Não há vagas”,
que diz:
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Sem comentários. O estranhamento que o
poeta busca causar com seu grito não serve apenas para dizer as
coisas de um modo diferente daqueles que não têm o mesmo dom ou para
mostrar ao mundo a viagem fantástica do seu “eu”, mas também para
chamar a atenção dos leitores para determinadas substâncias,
excrescências sociais, fazendo-se prevalecer do mérito de ser,
segundo Ezra Pound, a “antena da raça”.
É evidente que existem exceções, a mais
significativa para mim é a que arrisco chamar de “nova poesia
marginal” e que tem sido fomentada pelo rapper e escritor Ferréz,
através da publicação das revistas Literatura Marginal I e II, que é
um marco na literatura dos que vivem à margem da sociedade e que
apresenta um quadro bem diferente da
literatura marginal dos anos 70.
Para concluir quero “pongar” em um
comentário de meu amigo Henrique Wagner sobre este artigo e
concordar com ele quando diz que “vivemos
um tipo de beletrismo muito perigoso porque estéril, narcisista. E
pior: um beletrismo que não dá nem um soneto do Bilac, que aliás,
era um chato de galocha”.
Enfim, muito mais poderia ser dito e
mostrado neste artigo, no entanto penso que por ora isso é tudo.
*Gustavo Felicíssimo, maio de 71, é
natural de Marília, interior de São Paulo. Poeta radicado em
Salvador, Bahia, desde 1993, onde fundou a SOPA – SOCIEDADE DE
POETAS E AMIGOS, através da qual publica e é editor do tablóide
literário SOPA POESIA E AFINS, que circula periodicamente na Bahia,
com tiragem de 5.000 exemplares e distribuição gratuita.
e-mail:
gf.poeta@ig.com.br /
http://www.sopadepoesia.zip.net
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