OUTUBRO
(Geraldo Maia)
(pra Clarice Herzog)
Recordarei
outubro
Risos estalados na
manhã
Onde ficamos um
dentro do outro
E nos metemos em suor
e silêncio
Lembra?
Ai nos despedimos num
trançado
de crianças e carícias
repartidas em nós
de
mãos
no limite da
espera
Recordarei a ponta de
chuva
que
tremia
no canto de tua
risada
O sabor de saudade que
temia
no desafio do
beijo
Outubro outubro
Não pude apascentar a fúria do
segredo
que perseguia
os que passam despertos pelas
ruas
Havia algo emboscado na calçada
Uma trama
taciturna
observava
o avanço da
inocência
Lembra?
Chegaram com suas
bainhas
agudas
Suas canções de
açoite
Seus escombros de
alma
entulham a noite
amordaçada
Então segui com o
impulso de teus
lábios
A força de teus
olhos
A entrega de teu
colo
enraizada
nos
passos
Outubro outubro
Lembra?
O turbilhão de cães
inquieta as ruas com seu
faro coturno
a mendigar trevas
para o banquete
oculto
de cadáveres
Estava decretada a caça ao
sonho
A tortura arma-se de
hediondo
Apenas o coração
balbucia
palavras indomadas
repercutem nas velas
rebeladas
para impedir que o
massacre
jorre absoluto
Recordarei outubro
Em tuas lágrimas
agudas
as injúrias
serviçais
das páginas
submetidas
injusta sentença
sumária condena
canalha suprema
exuberante covardia
Mas de teu pranto
brotam poemas
que rasgam a
noite umedecida
com a selva de
inocentes
Que há
outubro?
A fúria da memória
nem a vingança sacia
Mas pulsa nos
destroços
do coração
o dia longínquo de onde vim
ao teu mar de
alma absoluta
Ao teu perdão inconformado
À tua imensa oficina de coragem
À tua poderosa fábrica de vitórias
Ao teu tear de entrega sem limite
Recordarei tua força
serena
naquela manhã de outubro
quando nos tocamos
famintos
de nossa delicia
e nos repartimos
em prazer e audácia
como sempre fazíamos
para celebrar
a intensa tessitura
de carinho
de que se ocupavam nossos
dedos
Lembra?
Eras o porto
o sopro
e o destino de
caminhar
resoluto
E de súbito fui
tragado
por um inferno de
garras
que açoitavam os
ossos
Rasgavam as vísceras da
voz
Gravavam na pele
grotescos grunhidos de
ferir
Então
embriagavam-se
com o sumo insano das
feridas
onde
afiavam suas ferramentas de
fera
até regurgitarem o asco do
verbo fedido
que fluía
pelas escaras
do poder
Gozavam
de esmagar as
súplicas
ainda
em carne viva
E não satisfeitos
rebentaram a história
com uma foto
espúria
retocada de
mentiras
Recordarei outubro
Ainda que de joelhos
íntegro e quebrado
com acinte
enforcado
em meu próprio
cinto
Outubro
Há mais corações
e mentes
devorados
nesse banquete
armado
de impunidade
Amargas sobras de
futuro
grafitadas
nos muros da
intolerância
onde a dor
jorra enxovalhada
Outubro
Os tanques arrotam
manhãs esmagadas
pelas ruas insepultas
Aviões livram-se
de olhos
que o mar espelha
gritos arrancados
com fios e alicates
amontoam-se pelas celas
cérebros empilhados
nos porões do pântano
esperam a oração
conversas em pau-de-arara
salpicam de urros
paredes preocupadas
nada se pode ouvir:
apenas o batido lancinante
dos carimbos
soava piedade
aos torniquetes
era o prazer
de vigiar o horror
banal
da morte aos
metros
Recordarei outubro
O ódio e suas instâncias
de caridade
A intolerância e sua ética
introduzida
pela via das
mídias
insuspeitas
Porque é preciso
que seja simples e
fácil
Natural
negócio
limpo
com
álcool e açúcar
com
saldo de assassínio
em contas
assépticas
Para que a escória
dos eleitos
esteja sempre
prefeita
ao lucrar
imundície
Recordarei outubro
Os meninos
com seus gestos de
agora
varridos de
balas
com hábeas corpus
As meninas impedidas
em suas
entranhas
ensaiam
séculos
de sonhos sem
saída
A não ser
sorrir
em seco
Outubro outubro
Gestos decepados
Uivam
Pelos corredores do
absurdo
Mãos absolutas
tentam impedir
o Todo
do agora
que há sob o
brilho de
sombras de depois
Outubro
Que tipo de perdão
há de nascer no
carrasco
a experimentar
a perversão do
cadafalso?
Outubro
Na porta da fábrica
Olhos fatídicos
Na porta do sindicato
Olhos de perigo
Na porta do partido
Olhos no gatilho
Na porta do colégio
Olhos de mira
A porta da casa
Olhos farejam
Que importa
que as portas
estejam inquietas?
Cães com olhos
de trilho
à espreita
de seres
suspeitos
de vivos
Outubro!
A foto no jornal
Parece
um assunto de
sevícias
A foto no jornal
jamais sairá
sem os fatos que
impuseram
à manhã
A foto do jornal
revela
que há mais
escroques
e crimes
ainda
sem carência de
função
Outubro
Dos que me amavam
tremulam flores
Os que me pariram
ruminaram o pranto
A solidão meteu-se pelas gavetas
Em busca daquele número de
telefone
perdido na
véspera de ser
atendido
E saber o caminho
daquele bairro de
cantigas de bicicletas
e risadas
espontâneas
Recordarei
Outubro
O aprendiz de
poço
e sua marca
calada
O risco
de alegria
no calabouço
A cicatriz de
futuro
incriminada
Outubro
Nas aldeias
Nações agonizam
No quarup de
séculos
submetidos
na velocidade
da usurpa
Outubro
Nos porões
Os generais
avançam
aos ferros
no conluio do
cínico
com o abjeto
Outubro
Oxalá
Vunguens
Voduns
Curumins
Cunhãtans
Erês
resistem
raízes e
veias
ancestrais
Outubro
Tua marcha
Sem terra
Sem teto
É liberdade
encaminhada
Te ocupas
dos espaços
de teu braço
ao largo
de tua dor
de pária
que resvala
no rastro
revela
teu amor
pela pátria
enxada
semeada de
luz
à margem da
estrada
que se
alastra
alarga-se
pelos matos
pelos agrados
que fazes
ao te plantares
vida
na terra
de tua lavra
WLADO
Wladimir
Wladimir
Tua foto
Em falso
Palhaço
E arlequim
Arte fato
E estopim
Tua vida
De fato
Há de prosseguir
Do espaço
Que a cela
Encerra
Outubro
Os tanques
bailam
abotoados
em dançadura
maldita
que o menino
insulta
com
a ternura
em punho
Outubro
Os exterminadores
salivam
sentenças
de balas
embaladas
no escuro
do golpe
que retalha
risadas
de jovens
negros
e negras
Todas
as cores
cospem
culpa
E a morte
ocupa
os corações
sem liminares
ou pedidos de
reintegração
de pulsos
Outubro
Na sombra
distraída
passos
adornam
o silêncio
de mistério
E o medo
retorcido
nos porões
garante o
amanhecer
impune
ATITUDE
Te proteger
Cálice
E te sorver
Álibi
Permanecer
Átimo
No que perder
Tácito
E convencer
Tátil
O que há de ser
Mútuo
A te querer
Único
Outubro
9 horas:
o olhar a meio pau
mãos em ritmo
de abismo
sonhos crivados
de assuntos
impossíveis
Na viatura
a noite
prepara
o aço
do silêncio
feito
de
corpos
clandestinos
plantados
na
razão
Vladimir
Herzog
nasceu em Osijsk, na Iugoslávia, e veio com os pais para o Brasil
ainda pequeno fugindo do nazismo que assolava a Europa no início do
século passado. Brasileiro naturalizado, filho de Zigmundo e Zora
Herzog, casado com Clarice Herzog, pai, professor da USP,
teatrólogo e jornalista, Vlado, como era chamado pelos amigos, era
um homem íntegro e um profissional competente, muito ligado às
manifestações culturais.
Vladimir foi intimado a prestar depoimento no DOI do II Exército de
São Paulo a respeito das suas atividades políticas, onde foi preso e
morto no dia vinte e cinco de outubro de 1975, aos trinta e oito
anos de idade. Era ligado ao Partido Comunista do Brasil-PCB e
trabalhava como diretor do telejornal A hora da Notícia da TV
Cultura, quando foi morto.
O corpo foi mostrado à imprensa, pendurado a uma grade por uma tira
de pano do macacão de prisioneiro que usava. No entanto, os
jornalistas Duque Estrada, Jorge Benigno Jathay e Leandro Konder,
que estavam presentes durante a prisão de Herzog, afirmam que ele
morreu sendo torturado pelos militares. A polícia política alega que
Herzog, após ter assumido que era integrante do PCB, suicidou-se.
Muitos jornalistas, familiares e boa parte da opinião pública não
acreditaram na versão de suicídio dada pela União. Todos sabiam que
Vladimir tinha sido assassinado nas dependências do DOI. Alguns
companheiros do jornalista quiseram ver o corpo do amigo no IML, mas
foram impedidos. Segundo o juiz Márcio José de Moraes "o laudo da
morte de Vladimir não seguia as exigências legais. Não tinha valor".
No velório havia a presença de policiais à paisana. O enterro foi no
dia vinte e sete de outubro de 1975, de acordo com o ritual da
religião judaica. O rabino Henry Sobel não colaborou com a versão
do governo e decidiu que Vlado não seria enterrado como suicida.
Depois do episódio da morte de Vladimir, o governo brasileiro tomou
iniciativas e tentou controlar aquela situação, que violava a
dignidade e os direitos humanos. Houve uma revolta por parte dos
jornalistas, que começaram a se mobilizar, cada um à sua maneira, e
contestar o sistema ditatorial que assassinava e reprimia. Uma
facção da sociedade também começava a dar sinais da sua insatisfação
com as arbitrariedades do regime militar.
O sindicato dos jornalistas, em São Paulo, teve um papel muito
importante nesse momento. Mostrou coragem em uma época em que o medo
dominava o país.
Finalmente, em
1978, a
justiça admitiu que a União foi culpada pela morte do jornalista. O
governo resolveu em 1987, nove anos mais tarde, que seria pago uma
indenização à família de Herzog, a qual só seria recebida durante o
governo FHC. Hoje, Vladimir é tido como símbolo de luta pela
democracia no Brasil.
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