OS FUNGOS DE YUGGOTH
(H.
P. Lovecraft)
1.
O LIVRO
O
lugar era escuro e poeirento, meio perdido
Num
labirinto de vielas junto aos molhes,
Cheirando
a coisas raras trazidas de outros mares,
Envolto
em estranhas névoas agitadas p’lo vento.
Uns
vidros em losango, que a geada e o fumo velavam
Deixavam
entrever pilhas de livros, como torcidas árvores
Desde
o sobrado ao tecto –
putrefacto amontoado
De
sapiência antiga a baixo preço. Enfeitiçado
Entrei,
e dum montão cheio de teias
Um
cartapácio tirei e ao acaso o folheei,
Estremecendo
ao ler palavras raras
que pareciam
Esconder
de olhares humanos
um prodigioso segredo.
E
então, quando o vendedor astuto
em volta quis achar
Apenas
um eco de gargalhadas pude encontrar.
2.
A PERSEGUIÇÃO
Guardei
o livro debaixo do casaco, preocupado por furtar
Tal
objecto aos olhares em semelhante sítio.
Enquanto
apressava o andar ao longo das velhas ruas
Do
porto, virava a cada instante receoso a cabeça.
Opacas
e furtivas nas vacilantes casas de tijolo
As
estranhas janelas espreitavam os meus rápidos passos
E,
intuindo o que almejavam custodiar, ansiava
P’lo
clarão redentor de um puro azul de céu.
Ninguém
me vira furtá-lo... e no entanto
Ainda
tinha na cabeça uma oca risada,
E
percebi que mundos de nocturna maldade
Enchiam
o volume que havia cobiçado.
O
caminho tornava-se cada vez mais estranho. Os muros
Demenciais
assemelhavam-se. E atrás de mim,
Ao
longe, uns passos invisíveis ressoavam.
3.
A CHAVE
Não
sei que deambulações pelas desertas
E
estranhas ruas do porto me levaram
Até
ao lar. No vestíbulo comecei a tremer
Lívido
com a pressa de entrar e de me achar
Trancado
a ferrolho por trás da pesada porta.
Tinha
o livro que indicava a via oculta
Que
atravessa o vazio e as suspensas telas espaciais
Que
sustentam em suas raias os mundos sem dimensão
E
guardam a eternidade no domínio que lhe é próprio.
Por
fim era minha a chave daquelas vagas visões
Espirais
ao sol poente bosques crepusculares
Gerando
o opaco nos abismos além dos limites da terra
Ocultando-se
como memórias de infinidade.
Era
minha a chave, mas enquanto ali estava
Sentado
e balbuciando
No
sótão uma leve pressão fez abanar a janela.
4.
RECONHECIMENTO
Voltara
o dia em que eu ainda criança
Vi
– uma vez apenas – aquela fundura coberta
De
velhos carvalhos
Acinzentados
pela bruma que ao subir do chão
Envolve
e afoga
As
formas abortadas que a loucura profanou.
Via-a
de novo: a erva cerrada e inculta
Cobrindo
um altar cujos signos gravados invocam,
Em
idades sem fim,
O
Inominado ao qual mil fumos tocam
Emanados
de altas torres impuras.
Olhei
o corpo estendido naquela pedra húmida,
Sabendo
que as coisas celebrantes nada tinham de humanas;
E
que aquele mundo cinzento não era o meu,
Mas
sim Yuggoth, o de além dos vazios constelados –
E
então o corpo lançou-me um guincho de agonia
E
tarde demais soube que aquilo era eu.
5.
REGRESSO A CASA
O
demónio me disse que a casa me levaria
À
vagamente recordada terra lívida e sombria
Como
um alto lugar
Com
terraços e escadas, rodeado de balaustradas
De
mármore p’los ventos do céu afloradas
Enquanto
milhas abaixo
Um
labirinto de torres e de cúpulas sobrepostas
Se
estende à beira-mar.
Uma
vez mais, disse ele, ficaria eu subjugado
Frente
às velhas colinas
E
ouviria da espuma o abafado
Longínquo
rumorejar.
Tudo
isto me prometeu,
E
p’las portas do sol-pôr
Me
arrastou,
Por
ondulantes lagos de chamas a passar me obrigou
E
por tronos de ouro vermelho de deuses inominados
Que
ante o destino iminente gritam desvairados.
E
na noite ante um abismo negro me fui achar
Com
o ruído das ondas a rebentar.
«Era
aqui a tua casa», mofou ele «quando visão
Tinhas
então!»
6.
A LÂMPADA
Encontrámos
a lâmpada num buraco
De
um daqueles íngremes rochedos
Cujos
signos cinzelados nenhum sacerdote de Tebas
Saberia
decifrar.
E
os assustadores hieroglifos aí inscritos
Eram
um aviso para toda a criatura viva de origem humana.
Nada
mais ali havia – a não ser aquela lâmpada de bronze
Com
restos de um estranho óleo no seu bojo,
Adornada
com obscuros desenhos em volutas
E
símbolos que vagamente sugeriam desconhecidos pecados.
Os
temores de quarenta séculos muito pouco significaram
Para
nós quando carregámos o nosso diminuto espólio
E
minuciosamente o examinámos no escuro da tenda
Com
um fósforo aceso para experimentar o velho óleo.
E
ele ardeu – santo Deus!... Mas as formas gigantescas
Que
divisámos naquela enlouquecida fumarada
De
respeitoso temor p’ra sempre nos deixaram a alma
abrasada.
7.
A COLINA DE ZAMÁN
A
grande colina erguia-se perto da velha cidade,
Um
penhasco contra o fundo da rua mais povoada ;
Verdejante
e cheia de bosques, cá de baixo parecia escura
E
dominava com a sua altura
O
campanário junto à curva da estrada.
Há
duzentos anos que se ouviam rumores
Sobre
o que ocorria nessa ladeira que o homem devia
evitar...
Histórias
de veados e de pássaros estranhamente mutilados
Ou
de garotos perdidos cujos pais tinham cessado de
esperar.
Certo
dia o carteiro não achou o povoado no seu lugar
E
ninguém voltou a ver os habitantes ou as casas;
As
pessoas vinham de Aylesbury e ficavam-se a olhar...
No
entanto, todos diziam ao carteiro que era um ingénuo
Ou
estava louco por dizer que conseguira descortinar
Os
olhos carnívoros das altas colinas e as bocarras
Abertas
de par em par.
8.
O PORTO
A
dez milhas de Arkham descobrira um carreiro
Ao
longo da falésia alcantilada de Boyton Beach
E
aguardava o momento em que o ocaso coroa
A
crista que assoma por sobre o vale de Innsmouth.
Ao
longe, no mar alto, uma vela vogava
Branqueada
por árduos anos de velhos ventos,
Carregada
com o mal de algum facto inexplicável.
E
não ergui, assim, mão ou voz para saudá-la.
Veleiros
de Innsmouth! Ecos de idas memórias
De
tempos já longínquos; a noite ia caindo,
Bem
cerrada, quando cheguei ao topo
De
onde era meu hábito olhar a povoação.
Além
estão os campanários e os telhados... Mas, olhai!
As
trevas
Propagam-se
nas ruas, tenebrosas como tumbas!
9.
O PÁTIO
Aquela
era a cidade que em tempos conhecera
A
cidade leprosa e antiga onde multidões mestiças
Cantam
a estranhos deuses, golpeando ímpios gongos
Em
criptas sob infectas vielas junto às praias.
As
casas carcomidas com olhos de peixe
Miravam-me
de soslaio
Inclinando-se
meio ébrias e não muito animadas
Quando
evitando as imundícies passava até franquear
A
porta do pátio negro onde um homem devia estar.
As
paredes sombrias cerraram-se sobre mim
E
comecei a blasfemar
Em
alta voz por naquele antro ter caído em entrar,
Quando
de repente vinte janelas rebentaram
Numa
luz selvagem e se encheram de homens que dançavam:
Loucas,
mudas piruetas de morte os arrastavam
Pois
que nenhum cadáver tinha mãos ou cabeça!
10.
AS POMBAS MENSAGEIRAS
Levaram-me
aos bairros pobres, onde um viscoso mal
Desalinhava
as descarnadas paredes de tijolo
E
as caras contorcidas da hedionda multidão
Dava
sinal p’los de fora a estranhos deuses e diabos.
Um
milhão de fogueiras pelas ruas ardia,
E
dos terraços seres furtivos arremessavam
Para
o céu bocejante pássaros sujos de lama
Enquanto
tambores ocultos num ritmo lento rufavam.
Aqueles
fogos sabia que coisas monstruosas anunciavam,
E
que as aves do espaço no Exterior
haviam estado...
Adivinhava
que criptas de escuros planetas tinham sobrevoado,
E
o que de Thog traziam sob as asas.
E
os outros riam – até que de repente emudeceram
Ao
vislumbrar o que um dos pássaros no bico maldito
levava.
11.
O POÇO
Seth
Arnold o lavrador mais de oitenta ia contar
Quando
o poço junto à porta tentou aprofundar
Tendo
só por ajuda o Eb para cavar e perfurar.
Mofámos,
pensando que em breve seu juízo ia voltar,
Mas,
p’lo contrário, também o Eb começou a dementar
A
tal ponto que da quinta o tiveram de levar.
Seth
a boca do poço se deu então a entaipar
E
as veias do nodoso braço esquerdo acabou por cortar.
Depois
dos funerais algo nos fez encaminhar
Até
ao poço p’ra todos os tijolos arrancar,
Mas
no buraco escuro, perdidas até grande fundura
Só
umas pegas de ferro conseguímos divisar.
Então
os tijolos tornámos a pôr no seu lugar
Pois
o covão nos pareceu profundo em demasia
Para
que alguma sonda o pudesse devassar.
12.
O UIVADOR
Tinham-me
dito pr’a não passar pelo carreiro de Brigg’s Hill,
Que
em tempos tinha sido a estrada até Zoar,
Uma
vez que Goody Watkins, enforcado em mil setecentos e
quatro,
Deixara
por ali certo vestígio monstruoso.
Mas
quando desobedeci
e tive à vista
A
casa envolta em hera ao pé da grande escarpa,
Não
pensei nem em olmos nem em cordas de cânhamo,
Antes
me perguntei porque parecia ela inda tão nova.
Parara
um pouco a contemplar o declinar do dia
E
ouvia uns débeis uivos vindos de um quarto no alto,
Quando
através das vidraças cobertas de trepadeiras
Um
raio do pôr do sol colheu de surpresa o uivador.
Vislumbrei-o
e freneticamente fugi daquele lugar
–
e da coisa a quatro patas com uma face de homem.
13.
HESPERIA
Ao
entardecer, o sol de Inverno refulgindo atrás das
torres
E
das chaminés meio desprendidas desta esfera sombria,
Franqueia
os grandes portões a algum ano esquecido
De
antigos esplendores e desejos divinos.
Nessas
chamas imensas ardem maravilhas futuras
Que
o medo não aflora, carregadas de aventuras;
E
uma fila de esfinges um caminho nos abre
Por
entre trémulos muros e torreões
Até
longínquas liras.
É
a terra onde o sentido da beleza floresce,
Onde
toda a inexplicada memória tem sua origem,
Onde
o grande rio do Tempo inicia o seu curso
Descendo
p’lo vasto vazio em sonhos recamados de estrelas.
Os
sonhos aproximam-nos – mas uma doutrina antiga
Insiste
em que o pé humano jamais pisou estas ruas.
14.
VENTOS ESTELARES
Sobretudo
no Outono, a essa hora
Em
que tombam as sombras do entardecer
Os
ventos estelares derramam-se
Pelas
ruas mais altas e desertas
Onde
assoma a luz fagueira de algum cálido aposento.
As
folhas secas agitam-se em estranhos redemoinhos,
O
fumo das chaminés enrola-se com etérea graça
Atento
às geometrias do espaço exterior
Enquanto
Fomalhout palpita entre as brumas do Sul.
É
a hora em que o poetas lunáticos conhecem
Que
fungos brotam em Yuggoth, que perfumes
E
matizes de flores enchem os campos de Nithon,
Que
nenhum jardim terrestre pode ter.
Mas,
por cada sonho que esses ventos ofertam
Doze
dos nossos nos roubam!
15.
ANTARKTOS
No
fundo do meu sonho a ave enorme sussurrava estranhas
coisas
Acerca
dum cone negro no meio das imensidões polares;
Lúgubre
e solitário se levanta na superfície gelada
Açoitado
pelos eternos remoinhos de loucas tempestades.
Ali
nenhuma forma de vida tem o seu rumo natural
E
somente pálidas auroras e sóis indistintos
Luzem
por sobre esse sinal de pedra, cuja origem primitiva
Obscuramente
os Antigos procuram adivinhar.
Se
os homens o vislumbrassem, simplesmente perguntariam
Que
capricho raro da Natureza era aquele que ali viam;
No
entanto, o pássaro falou-me de regiões mais vastas
Que
aguardam, acocoradas e ocultas sob a mortalha de gelo.
Deus
ajude o sonhador cujas loucas visões lhe mostrem
Esses
olhos mortos engastados em abismos de cristal!
16.
A JANELA
Era
uma casa velha, com estranhas alas tão emaranhadas
Que
ninguém podia dizer que lhes conhecia bem a
disposição,
E
num quarto pequeno algures nas suas traseiras
Havia
uma singular janela entaipada com pedra antiga.
A
esse lugar, numa infância atormentada pelos sonhos,
Costumava
ir sózinho, quando reinava a noite negra e vaga.
E
destroçava as teias-de-aranha sem qualquer ponta de
medo
Sentindo-me,
p’lo contrário, cada vez mais maravilhado.
Mais
tarde num certo dia levei até lá uns pedreiros
P’ra
descobrir que paisagem os meus antepassados
Haviam
tentado encobrir,
Mas
quando perfuraram a pedra, impetuosamente entrou
Uma
lufada de ar soprada p’lo ignoto vazio do outro lado.
Fugiram
a sete-pés... Eu assomei-me – e encontrei um por um
Todos
os mundos selvagens que os sonhos me haviam mostrado.
17.
UMA RECORDAÇÃO
Era
um lugar de grandes estepes
e mesetas rochosas
Que
se estendiam sem limites sob a noite estrelada,
Com
fogos de acampamento que iluminavam debilmente
Manadas
de bestas hirsutas cujos chocalhos tilintavam.
Ao
sul, na distancia, a planície alargava-se e descia
Até
uma escura muralha correndo em ziguezague
Como
uma imensa jibóia das idades primevas
Que
o tempo infinito gelara e petrificara.
Eu tiritava
estranhamente no
ar frio e rarefeito,
Perguntando-me
aonde estava e como havia ali chegado,
Quando
uma figura embuçada, na contraluz da fogueira
Se
levantou e se acercou, tratando-me p’lo meu nome.
E
ao mirar aquela face morta debaixo do capuz,
Perdi
toda a esperança – pois tinha compreendido.
18.
OS JARDINS DE YIN
Do
outro lado da muralha de alvenaria antiga
Que
quase tocava o céu com suas torres musgosas
Devia
haver jardins em terraços, esplendendo
Com
miríades de flores, palpitando
Com
os volteios dos pássaros, das borboletas, das abelhas.
Devia
haver passeios e pontes erguendo os seus arcos
Sobre
lagos de água tépida repletos de flores de lótus
Onde
se reflectiam beirais de templos,
E
cerejeiras cujos delicados ramos e folhas contrastavam
Com
um céu cor-de-rosa aonde as garças pairavam.
Tudo
ali devia estar – pois não haviam meus sonhos
Antigos
franqueado a porta daquele labirinto
De
lanternas de pedra onde os sonolentos regatos
Traçavam
seus sinuosos caminhos
Guiados
por verdes parras pendendo das latadas?
Apressei-me
a subir... mas mal cheguei à grande muralha sombria
Descobri
que afinal nela já nenhuma porta existia.
19.
OS SINOS
Ano
após ano ouvi, sumido e ao longe
O
som grave dos sinos
Que
o vento negro da meia-noite transportava.
Dobres
que de nenhum campanário pareciam vir
Uns
estranhos repiques – eram só o que achava.
Através
dum enorme vazio tinham voado.
Em
sonhos e lembranças uma pista busquei,
Nos
carrilhões que minhas visões albergam eu pensei;
Os
da plácida Innsmouth, onde as gaivotas brancas se
demoram
Planando
em volta da velha torre duma igreja
Que
em tempos bem frequentei.
Perplexo,
aquelas notas longínquas eu ouvia tombar,
Mas
numa noite de Março a fria chuva que pingava
As
portas da memória me fez de novo franquear
Até
às velhas torres onde um louco badalar soava.
Como
dobrava... Desde as sombrias correntes que através
Dos
vales profundos manam e se derramam
No
leito morto do mar.
20.
BESTIAGAS NOCTURNAS
De
que cripta saem arrastando-se, não o sei dizer
Mas
todas as noites vejo essas criaturas viscosas,
Negras,
cornudas, descarnadas, de asas membranosas
E
caudas que ostentam do Inferno a bífida barbada.
Chegam
em legiões trazidas p’lo sopro da nortada
Com
obscenas garras que me pungem e arranham
E
me agarram e me levam em monstruosas viagens
Até
mundos pardacentos escondidos em profundos
Poços
de pesadelo.
Passam
por sobre os picos denteados de Thok
Sem
fazer caso dos gritos que aos arrancos dou
E
descem p’los abismos do fundo
Onde
os obesos shoggoths
Chafurdam
num duvidoso sonho nesse lago imundo.
Mas
ai! Se ao menos algum som pudessem soltar
Ou
uma cara tivessem onde ela costuma estar!
21.
NYARLATHOTEP
Do
interior do Egipto eis que por fim chegou
O
estranho Obscuro ante quem os felás se inclinavam;
Silencioso
e descarnado, de enigmática altivez
Ia
envolto em panos vermelhos como as chamas do sol-pôr.
À
sua volta juntavam-se multidões ansiosas p´lo seu
ditame
Mas
ao deixarem-no não sabiam contar que coisas tinham
ouvido;
Entretanto,
pelas nações se difundia a pavorosa notícia
De
que, lambendo-lhe as mãos, o seguiam bestas selvagens.
Cedo
começou no mar um daninho nascimento;
Em
terras esquecidas cúspides douradas cobriam-se de
ervas ruins;
O
chão abriu-se e auroras dementes abateram-se
Sobre
as tremebundas cidadelas dos homens.
Então,
esmagando o que por pirraça ele moldou
O
Caos insensato o pó da Terra assoprou.
22.
AZATHOTH
P’lo
dementado vazio o demónio me arrastou
P’ra
lá dos ninhos de luz nos limites do espaço me levou
Até
que nem tempo nem matéria ante mim puderam estar
Que
ali era só o Caos, sem forma nem lugar.
Ali
o Senhor do Tudo na escuridão murmurava
Coisas
que não entendia, mesmo quando sonhava
Enquanto
perto dele esvoaçavam morcegões
Em
vórtices idiotas atravessados por clarões.
Bailavam
como loucos, ao compasso gemente
De
uma flauta quebrada presa em monstruosa garra
Donde
brotava aquela onda sem sentido coerente
Que
ao mesclar-se ao destino eterna lei lhe narra.
“Eu
sou seu Mensageiro”, o Demónio declarou
E
zás! a cabeça do Amo com desprezo esmurrou.
23.
A MIRAGEM
Não
sei se existiu alguma vez
Esse
mundo perdido e obscuro que flutua no rio do Tempo –
Mas
amiúde o vi, envolto numa bruma violeta,
Brilhando
debilmente no fundo de um sonho indistinto.
Havia
estranhas torres e rios correndo em caprichosos
meandros,
Labirintos
de maravilha, abóbadas plenas de luz,
E
céus chamejantes, cruzados por ramagens de árvores
Como
as que ansiosamente estremecem
Momentos
antes da chegada duma noite de Inverno.
Atravessavam-se
vastos terrenos pantanosos que levavam
A
costas desertas espraiando-se, pejadas de juncais
Onde
aves enormes revoluteavam, enquanto numa ventosa
colina
Havia
um povoado antigo, com um campanário branco
Cujos
repiques vespertinos inda me ressoam nos ouvidos.
Não
sei que terra era – e a perguntar não me atrevo
Sobre
quando, ou porquê, estive ou estarei ali.
24.
O CANAL
Algures
num sonho há um lugar amaldiçoado
Onde
altos edifícios desertos se apinham ao longo
Dum
canal sombrio, profundo e estreito, exalando
Um
cheiro pestilento a coisas horrendas arrastadas
Por
oleosas correntes de água.
Vielas
entre velhos muros que no alto quase se tocam
Em
ruas que podem ou não conhecer-se desembocam
E
um pálido luar derrama o seu brilho espectral
Sobre
longas filas de janelas d’escuridão mortal.
Não
se ouvem sons de passos, aquele débil ruído
É
o da água oleosa deslizando
Sob
as pontes de pedra, ao longo das margens
Do
profundo canal, até aos confins
de
algum oceano perdido.
E
não há ninguém vivo para contar quando levou
Do
mundo argiloso a região do vago sonho que sonhou.
25.
SÃO SAPALHÃO
“Cuidado
com o carrilhão
de
São Sapalhão!”, ouvi-o eu gritar
Enquanto
me internava naquelas
demenciais
vielas
Que
serpenteiam em labirintos
sombrios e indistintos
A
sul do rio onde os séculos antigos vão sonhar.
Era
uma figura furtiva, andrajosa, a torcer-se
Que
num repente cambaleando vi desvanecer-se.
Continuei,
assim, na noite a mergulhar
Até
onde surgiam filas de telhados
malignos e
denteados.
Nenhum
livro nos guia
sobre o
que ali se escondia...
E
a outro velho ouvi de pronto guinchar :
“Cuidado
com o carrilhão
de São
Sapalhão!”.
E
quando, sentindo-me
desmaiar
Parei,
ouvi um terceiro velho
de medo
grasnar:
“Cuidado
com o carrilhão de São Sapalhão!”
Espantado,
fugi. E de repente
Eis
que vi
Aparecer
o negro campanário na minha frente!
26.OS
FAMILIARES
John
Whateley morava a uma milha da cidade,
Lá
no alto onde as colinas começavam a apinhar-se;
Ter
muito juizo era coisa que não podia pensar-se
Vendo
a forma como deixava arruinar a herdade.
Gastava
o seu tempo a ler durante todo o santo dia
Uns
livros que num recanto do sótão da casa encontrara
Até
que rugas esquisitas se lhe marcaram na cara
E
péssimo aspecto lhe deram, como toda a gente via.
Decidímos,
quando de noite ele começou a uivar
Que
seria bem melhor trancá -lo a cadeados.
Então,
do hospício de Aylesbury vieram três empregados
Que
o foram lá procurar.
Voltaram
sós e espantados:
Pilharam-no
conversando com dois seres acocorados
Que
mal ouviram seus passos bem marcados
Com
enormes asas negras esvoaçaram p’lo ar.
27.
O FAROL DO ANCIÃO
De
Leng, onde se erguem cumes sombrios e desnudos
Sob
frias estrelas obscuras para os olhares humanos,
Quando
anoitece um facho de luz propaga-se
E
seus distantes raios azuis os pastores fazem gemer e
orar.
Dizem
eles (apesar de ninguém
Ter
lá estado)
Que
provém
De
um farol numa torre de pedra alojado,
Onde
o último Ancião vive sózinho
E
fala com o Caos fazendo tambores rufar.
A
Coisa, sussurram eles, usa uma máscara de seda
Amarela,
cujas estranhas pregas parecem ocultar
Uma
face que desta terra não é, ainda que jamais
Alguém
se tenha atrevido a inquirir
Que
traços são aqueles que por baixo se vêem avultar.
Muitos
na juventude esse farol buscaram
Mas
nunca ninguém saberá o que foi que encontraram.
28.
EXPECTATIVA
Certas
coisas erguem em mim, porquê não o sei dizer
Uma
sensação de inexploradas maravilhas a acontecer
Ou
um rasgão no muro do horizonte
Que
se abre para mundos onde só os deuses podem viver.
É
uma esperança vaga, sem alento
Como
de grandes pompas antigas o que em parte acalento,
Ou
aventuras selvagens, incorpóreas
Plenas
de êxtase e livres ainda que ilusórias.
Encontro-a
em crepúsculos, campanários de povoados
Em
lugares muito antigos, bosque enevoados
Ventos
do sul, no mar, colinas de cidades iluminadas
Velhos
jardins, fogos da lua, canções meio escutadas
E
mesmo que só por esse engano tenha valido a pena
existir
Ninguém
conseguirá adivinhar o que ele tentou sugerir.
29.
NOSTALGIA
No
anelante resplendor outonal, ano após ano
As
aves retomam o vôo sobre o deserto oceano
Gorjeando
e tagarelando, na alegria apressada
De
chegarem à terra que na memória íntima têm guardada.
Enormes
jardins em terraços onde botões de flor
Rebentam
em vivos tons, e filas de mangueiras com frutos
De
delicioso sabor
E
alamedas
De
ramos entrelaçados em abóbada
Como
num templo sobre amenas veredas –
Tudo
isto seu vago sonho lhes mostra.
Esquadrinham
o mar buscando sinal da antiga linha de costa
–
E a alta cidade branca de torres acasteladas –
Mas
apenas o vazio das águas é por elas divisado,
E
assim uma vez mais voltam p’ra trás desencantadas
Entretanto,
submersas num abismo por estranhos pólipos infestado
As
velhas torres lamentam seu cântico perdido e
relembrado.
30.
PAISAGEM DE FUNDO
Nunca
pude ligar-me cruamente a coisas novas,
Pois
vi a luz pela primeira vez numa cidade antiga
Na
qual telhados em confusão desciam desde a minha janela
Até
um singular porto de abrigo, rico em visões.
Ruas
com portas-de-entrada entalhadas
Cujas
velhas bandeiras
E
pequenas vidraças os raios do sol-poente banhavam
E
campanários georgianos encimados por agulhas douradas
–
Eram
essas as paisagens que meus sonhos de criança
modelavam.
Tais
tesouros, deixados por um tempo não corrompido
Não
podem senão fazer-nos desdenhar das quimeras sem
sentido
Cuja
presença de confusa fé se esgueira por mutáveis vias
Entre
os muros que à terra e ao céu enchem os dias.
Cortam
as amarras do momento e deixam-me em liberdade
Para
ficar só e de pé diante da eternidade.
31.
O HABITANTE
Era
já bem velho nos tempos em que Babilónia
inda
era nova;
Sabe-se
lá há quantos anos dormia sob aquele montículo
Quando
ao fim da demanda as nossas pás encontraram
Seus
blocos de granito e de novo os desenterraram.
Havia
vastos pavimentos e vestígios de muralhas,
E
lajes afeiçoadas e estátuas esculpidas de maneira
a
representar
Fantásticos
seres oriundos daqueles tempos de antanho,
Muito
além da memória que os humanos podem conservar.
E
foi então que vimos os degraus de pedra que desciam
Por
uma porta obstruída de dolomita coberta de inscrições
Até
um refúgio, negro de uma noite sempiterna
Donde
signos antigos e segredos primitivos nos ameaçavam.
Abrímos
uma senda – mas fugímos em louca correria
Ao
ouvirmos um andar pesado que lá de baixo subia.
32.
ALIENAÇÃO
Em
carne e osso nunca para o além pudera passar
Pois
cada aurora o achava sempre no sítio habitual,
Mas
o seu espírito todas as noites gostava de vaguear
Por
abismos e por mundos distantes do dia usual.
Tinha
visto Yaddith e conservara o juízo normal
E
voltara da zona de Ghooric sem ter sido tocado
Até
que numa tranquila noite o espaço foi cruzado
Por
sibilante apelo vindo do vazio sideral.
Nessa
manhã acordou feito num ancião,
E
desde aí nada tornou a parecer-lhe igual.
Ao
seu redor
os objectos pairam nebulosos e sem feição –
Dum
plano mais vasto executores de aparência fantasmal.
Família
e amigos agora uma gente estranha são
À
qual ele se esforça por pertencer em vão.
33.
SEREIAS PORTUÁRIAS
Por
cima dos velhos telhados e das agulhas de torres
arruinadas
Durante
toda a noite as sereias portuárias cantam;
Gargantas
vindas de portos estranhos, de brancas praias
longínquas
E
de oceanos fabulosos, em coros desirmanados se
concertam.
Umas
a outras alheias, entre si se desconhecem,
Mas
todas, por alguma força obscuramente concentrada
Desde
inúmeros abismos além da rota do Zodíaco
Num
misterioso zumbido cósmico se fundem.
Por
entre sonhos sombrios organizam um desfile
De
formas, sugestões e visões mais sombrias ainda;
Ecos
de vácuos exteriores, de subtis indicações
Para
coisas que nem mesmo elas conseguem definir.
E
em tal coro sempre captamos, tenuemente misturadas
Certas
notas que nenhum barco desta Terra se deu a emitir.
34.
RECAPTURA
O
caminho descia
Por
uma charneca pouco arborizada e sombria
Onde
rochas pardas, em corcovas
Do
chão se elevavam e umas esquisitas gotas
Inquietantes,
geladas me salpicavam,
Vindas
de invisíveis arroios que a meus pés serpenteavam.
Nem
o vento soprava nem o mais débil ruído me chegava
Do
emaranhado dos arbustos e das estranhas formas das
árvores,
E
nada mais se via em frente – até que no meio do
caminho
Um
monstruoso monte tumular divisei de repente.
Os
seus flancos escarpados contra o céu se projectavam
Cobertos
de pedra musgosa
Escadas
em ruínas feitas de lava que até altura pavorosa
Seus
degraus lançavam
Tão
grandes que pés humanos os não pisavam.
Agudo
grito soltei – e soube que estrela e que ano primaciais
Me
haviam de novo levado da breve esfera de sonhos
terrenais.
35.
ESTRELA VESPERTINA
Dum
lugar ermo e silencioso a contemplei
Lá
onde o velho bosque em parte oculta a planície.
Brilhava
no meio dum glorioso crepúsculo – debilmente
A
princípio, depois a pouco e pouco com mais força.
E
a noite veio, e o farol ambarino e solitário
Feriu
meus olhos como nunca havia feito;
Um
astro vespertino, mas mil vezes
Mais
espectral nesses silêncio e solidão.
Traçou
estranhas figuras no ar tremeluzente –
Meias
recordações que sempre em mim tinham estado –
Vastas
torres e jardins, curiosos céus e mares
De
alguma obscura vida – nunca eu soube de aonde.
E
agora compreendo que lá na abóbada celeste
Esses
raios me chamavam do lar incerto e remoto.
36.
CONTINUIDADE
Há
em certas coisas antigas um vestígio
De
nebulosa essência, além do peso e forma;
Um
éter subtil, indefinido
Ligado
às leis do tempo e do espaço.
Um
débil, velado signo de sequências
Que
os olhos de fora descobrir não conseguem;
Suas
cerradas dimensões – onde os anos idos se acoitam
Só
por secretas chaves se devassam.
Comovo-me
quando os raios do sol ao entardecer
Alumiam
as velhas casas da quinta frente ao monte
Colorindo
de vida as formas que perduram
De
séculos mais reais que este que conhecemos.
E
nessa estranha luz sinto que não estou longe
Dessa
massa imutável em que as faces são as épocas
27 de Dezembro de 1929 – 4 de
Janeiro de 1930
(Tradução de
Nicolau Saião)
Leia ensaio
de Nicolau Saião sobre H. P. Lovecraft
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