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FULANO DE TAL É MEU
CONTEMPORÂNEO
(Renato Suttana)
Se houvesse justiça neste mundo, um escritor como Fulano
de Tal não deveria ser arrolado em nenhuma antologia que
surgisse, em qualquer parte do mundo, reivindicando para
si esse nome. No entanto o fato de que seus poemas
sempre apareçam em todas as coletâneas que são
publicadas pelos críticos a cada ano de Nosso Senhor nos
faz pensar que, frequentemente, a literatura se enamora
de si e se confunde com o fenômeno da sua celebração.
Não vai nesta afirmação nenhum desejo de menoscabar o
esforço de publicar obras. Mas ninguém nos impede de
suspeitar que, num mundo racionalmente organizado,
autores como Fulano de Tal – que pouco acrescentam à
nossa imaginação, ao nosso desejo de compreensão da vida
e ao nosso fervor pela linguagem – não deveriam
frequentar um rol de notáveis, embora possam frequentar
muitos outros lugares em que sua presença seja
bem-vinda.
Igualmente não deveriam ser reconhecidos e mostrados ao
público como representativos de sua época: isso gera na
mente dos leitores uma falsa compreensão dos problemas
que tais publicações pretendem resolver e do que seja de
fato essa época. Em geral, esses autores são
representativos apenas de sua própria escrita ou da
literatura sofrível que toda época é capaz de produzir –
e todas são bastante férteis na criação de autores
menores. Escritores que frequentam os meios, que se divulgam
– para usarmos a palavra da moda – e se oferecem ao
público como figuras dignas de atenção e reconhecimento
terão maiores chances de serem vistos pelos críticos (e
pelos antologistas), que em geral veem pouca coisa, mas
são sensíveis ao barulho (quando não querem eles mesmos
produzir o rumor). Tornam-se grandes propagadores de
equívocos. E os outros talvez passem despercebidos. (Um
dia se descobrirá um modo de publicar antologias em que
só apareçam de fato os autores interessantes.)
E aqui estamos de frente para o fenômeno correlato de
escritores cujos nomes se antecipam à leitura das suas
obras – como é o caso de Fulano de Tal –, se é que não a
obnubilam inteiramente, até o ponto do apagamento. Há
esse tipo de autores, que de tão ruidosos chegam sempre
antes dos seus livros, como se fossem deles os
procuradores ou os representantes legais. Então ficamos
à deriva, sem saber se devemos distinguir a imagem dos
autores daquela imagem que faremos das obras que eles
escrevem. Será inevitável, assim, que eles apareçam nas
antologias – de preferência em todas, mesmo quando se
trate apenas de figurar como velhos virtuoses em meio a
uma trupe de adolescentes. Virtuoses que, diga-se de
passagem, não sabem bem o que estão a fazer ali.
A isso, parece, os críticos pretendem chamar de
literatura contemporânea: um rol de nomes que
importam ou que, de todo modo, deveriam ser lidos pelo
público. Sua notoriedade reluz mais que as suas obras, e
eles são os que precisam figurar lá e aparecer como
autores. São os representantes. Trata-se, pois, de
celebrar a literatura, por meio do esquecimento da
literatura – como quer que ela se apresente no mundo
contemporâneo, como se a literatura em si mesma fosse
apenas um inconveniente. (E os críticos acadêmicos
entendem isto perfeitamente.) Na celebração, passamos a
compreendê-la como instância íntima de uma época (que a
celebração exclui, certamente, mas que sempre se quer
demonstrar em toda parte como uma coisa real). E o
adjetivo em si – o contemporâneo, do qual Fulano
de Tal é um representante expressivo –, que já é
intimidador o bastante para que o deixemos solto por aí,
se converte numa ameaça.
Devemos fugir dos adjetivos? Convém talvez evitar a
presença de Fulano de Tal – que em geral é pessoa
agradável, bem quista e bem relacionada, que todos
gostaríamos de ter por perto (contanto que não nos
oferecesse os seus livros). Sob esse ponto de vista, as
antologias são como ajustes de contas: são um modo de
sossegar a nossa inquietude diante daquilo que nos
intimida. Vamos à forra, por assim dizer,
organizando-as, e isso talvez as defina mais claramente.
Sentimo-nos representados por esses autores e por Fulano
de Tal, especialmente, que puxa o time dos seus
assemelhados. Sua obra (que talvez nunca leiamos), é um
pouco daquilo que somos ou desejamos ser: ela é digna
portanto de estar em todas as antologias.
Ora, num mundo racionalmente organizado ele não deveria
andar por aí vendendo livros cujos títulos vêm sempre
depois do seu nome. Porém o seu nome nos fascina:
queremos ser Fulano de Tal, esta é a verdade, queremos
agir como ele e… figurar nas antologias. Em tudo isso
entra um certo número de prestidigitações, que com pouco
esforço de atenção e cuidado se pode facilmente
compreender. Mas não estamos interessados em
compreender. Importa o barulho, do qual esse autor será
sempre um arauto digno e considerável.
Julho de 2021
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