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ENTREVISTA COM O CONTISTA EUSVALDO
ROCHA NETO
EUSVALDO ROCHA NETO é contista sul-mato-grossense, tendo
já publicado três livros: “Fronteira MS: contos
fronteiriços”, “O amor e outros assombros” e “Cerrado:
luz e sombras”. Está prestes a lançar o seu quarto
livro, “Flores à beira do abismo”, encerrando uma
trilogia cujas características centrais são a paisagem
social de Mato Grosso do Sul e as suas personagens-tipo.
Eusvaldo prefere escrever contos, porque ainda tem
fôlego curto para as grandes narrativas. Produz uma
literatura que poderia facilmente ser rotulada de
“minimalista”; opta, no entanto, por classificar suas
histórias como “contos singelos”, nos quais a crueza e a
banalidade do mundo são marcas constantes. É fã de
escritores como Graciliano Ramos, Clarice Lispector,
Raymond Carver e Stephen King, por isso, por causa dela
e deles, é que procura fazer uma literatura
essencialmente realista, progressista, dramática e, por
que não?, comercial. O sonho de Eusvaldo é poder ser
lido por muitos leitores. Ah, e escrever um romance,
também!
01. HENRIQUE PIMENTA – No conto que abre e dá nome ao
livro a ser lançado, “Flores à beira do abismo”,
apresenta-se, na cidade de Nova Andradina, um personagem
em primeira pessoa, que é o principal contador da
história, e o seu amigo de ocasião, Pedro, e Fabiana, a
namorada de Pedro. O leitor, aos poucos, vai percebendo
que a narrativa é montada em “segmentos”, de acordo com
o que o narrador escuta de Pedro e de Fabiana e que,
depois, reconta a seu modo. Há, inclusive, a
possibilidade da mentira, porque esse narrador, em
estratégia machadiana, em certa instância, dialoga
diretamente com o leitor, problematizando a
verossimilhança da história. Misturando essas ideias ao
fato de que álcool e outras drogas permeiam o conto, em
que o leitor deve ou pode acreditar acerca do que lê? E,
enfim, no universo da arte literária de Eusvaldo Rocha
Neto, existe limite entre ficção e realidade?
01. EUSVALDO ROCHA NETO – O leitor não pode acreditar em
tudo o que lê. Em se tratando de ficção, ele – o leitor
– tem que estar sempre desconfiado, mas a desconfiança
do leitor é uma desconfiança lúdica, ou seja, ele brinca
de desconfiar e confia brincando. Na situação específica
do conto “Flores à beira do abismo”, temos o narrador
que é alguém que nem sabe se existe amizade entre o
outro e ele; como podemos, nesse caso, acreditar no que
ele diz? Não podemos e nem devemos; no entanto, o pacto
ficcional que fizemos ao abrir o livro nos leva para
esse caminho: o da crença de que o que está escrito
possa ser “verdade” ou “crível”, mas aí já não é a
neurose do escritor e sim do leitor. Respondendo a
segunda parte da sua pergunta, não há um limite
observável, mas ele existe sim. Por exemplo: a realidade
é inesgotável, pouco apreensível e complexa, por outro
lado meu universo ficcional é simples, meus personagens
são representações ligeiras, beirando o tipo e, na
maioria das vezes, previsíveis.
02. HP – Você começou a publicar contos em 2021 e, em
breve, já estará lançando o supracitado “Flores à beira
do abismo”, o seu quarto volume de contos. Embora não
siga uma regra, a geografia de boa parte de seus contos,
nos primeiros três livros, se concentra principalmente
na cidade em que você está radicado há muito tempo,
Batayporã. Em conversa informal, no entanto, você
revelou que nesse material novo procurou apresentar
outras regiões. Poderia falar um pouco acerca da escolha
dessas geografias literárias? A terra é importante na
composição de personagens e enredos?
02. ERN – O pouco que apreendi da “vida” aprendi na
minha cidade (Batayporã), que faz parte da região do
Vale do Ivinhema (que compreende basicamente Batayporã,
Nova Andradina, Taquarussu e Ivinhema) e no estado de
Mato Grosso do Sul, sendo assim, procurei homenagear
esse “locus” onde vivo, penso e sonho com referências
nos meus contos. Não é nada de mais, na verdade é uma
forma de devolver à “terra” o que dela tenha retirado.
Sim, a terra ou a Terra, para mim, é a base de qualquer
criação literária. E não estou aqui pregando
Regionalismo, não, ou literatura raiz, ou ufanismo
bairrista. Digo apenas que a terra, a Terra, a
“terrinha” é o espaço/tempo de construção ou
desconstrução de protótipos e estereótipos. Nesse
sentido, os personagens e os enredos estão enraizados,
são rizomas.
03. HP – É comum a várias personagens de todos os seus
livros se sentirem com uma espécie de desconforto
existencial, sem ao menos terem consciência da motivação
desse estado desconfortável. Será que poderíamos
generalizar, a ponto de consideramos que todos os seres
humanos, até mesmo os que têm existência fora do papel
impresso, em certa medida, nunca se encaixam
completamente em uma “zona de conforto”? Esse mal-estar,
podemos categorizá-lo, para além de estar, como ser? Eu
sempre me pergunto por que suas personagens são tão
tensionadas psicologicamente...
03. ERN – Essa tal “zona de conforto” é pura abstração.
Logo, uma literatura que seja, ou que pretenda ser,
próxima da vida com seus personagens parecidos com
pessoas de carne e osso não pode tornar a zona de
conforto um lugar perene, pois a vida não é assim: a
vida é uma zona de confronto. A ignorância dos
personagens em relação a nomear o que sentem ou em saber
o que sentem é que dá, a meu ver, credibilidade para
suas ações. Se os personagens, se elas ou eles,
soubessem por que sofrem e/ou para onde estão indo não
haveria tensão ou drama. Ouso afirmar que não haveria
vida, nem arte. O mal-estar no mundo é típico dos
intelectuais, dos que sofrem psiquicamente, dos
endividados, dos traídos, dos esquecidos, ou seja, o
mal-estar é geral. Todos sofrem de algum jeito e em
alguma medida; há aquelas e aqueles, porém, que
conseguem camuflar suas dores, ou porque não acham tão
interessante ou porque descobriram que tem gente que
sofre mais. Como escreveu Schopenhauer: “Sentimos a dor
e não a ausência dela”.
04. HP – Outra característica marcante de sua contística
é a profusão de epígrafes. Sem exceção, em sua obra
completa, todos os contos são abertos por uma epígrafe.
São epígrafes das mais variadas autorias, que vão da
poesia da nossa Raquel Naveira, passam pelo rap dos
Racionais MC’s, pela dramaturgia de Plínio Marcos, até
contemplarem a ficção de Clarice Lispector, apenas para
ficarmos com alguns nomes de artistas brasileiros,
embora a sua ampla gama de epígrafes também contemple
diversas “estrelas” de outras nacionalidades. O que se
percebe, com relativa facilidade, é que suas epígrafes
nunca são aleatórias e que, portanto, sempre dialogam
com os seus contos, enriquecendo-os semanticamente. Você
é um coletor de epígrafes? Aquele tipo de leitor que
coleciona trechos de livros em um caderno? Uma epígrafe
pode motivar ou impulsionar um conto “meia-boca”,
transformá-lo em um conto “boca-e-meia”? E... confesse:
Há sempre uma boa epígrafe para um bom conto?
04. ERN – Sim, sou colecionador de epígrafes e leitor de
epitáfios. Costumo anotar em uma caderneta para usar
depois, se for o caso, nos meus contos. Há uma frase que
li no livro “Sombras no paraíso” de Erich Maria Remarque
que sintetiza, a meu ver, a minha paixão pelas
epígrafes. Diz mais ou menos assim: “Palavras são apenas
palavras, mas podem também significar o contrário”. Ou
seja, as epígrafes vão sempre além do texto. Então,
começar um conto com uma epígrafe é, para mim, abrir um
metatexto: algo que impulsiona o texto, o transporta
para outro tempo, outro espaço, outras vozes. Uma
epígrafe bem colocada pode fazer de um texto simples,
como é o meu, uma vitrine de entrada para os leitores
cultos e também para os leitores incautos. Eu penso que
bons contos não precisam de epígrafes assim como boas
pessoas não necessitam de epitáfios. No entanto, não
sabemos se um conto é bom sem o ler, reler, às vezes ler
pela terceira vez. Para aqueles que leem por hábito, por
necessidade profissional ou por prazer, a epígrafe é a
cereja do bolo. Se o bolo for bom está ótimo, se apenas
o recheio for apetecível, está legal também; entretanto,
se nem o bolo nem o recheio forem bons, pelo menos o
leitor já levou a cereja do bolo para casa.
05. HP – No texto “Crônica é a quentura do sol”, do
livro “Flores à beira do abismo”, o protagonista, um
homem simples, do povo, um homem que vive às margens do
rio Paraná, apresenta em detalhes muito do que vem
acontecendo há anos em MS, incêndios criminosos a fim de
aumentar a área de pasto e de plantio de monocultura, ou
incêndios que são feitos em áreas improdutivas, a fim de
que o Governo Federal compre essas terras devolutas,
muitas vezes com documentação falsa por parte do suposto
proprietário. O texto fala, ainda, sobre a erosão dos
rios, também se referindo ao aumento de terras para
pasto e monocultura. Enfim, a triste e famosa degradação
do meio ambiente por motivação única: lucro. E, ainda,
explana ideias acerca das consequências dessas práticas
criminosas; em especial, o desequilíbrio climático. Por
acaso o seu protagonista não acredita na “historinha pra
boi dormir” de que o “agro” alimenta não só o povo
brasileiro, mas o mundo todo?
05. ERN – O protagonista, homem simples, comedor de
churrasco, até acredita em histórias pra boi dormir.
Quem não acredita mais é o narrador da história. Tanto é
assim que o referido conto se inicia com o pedido da
mulher para que o marido compre uma “costelinha gorda”
com o intuito de preparar uma refeição para a comadre e,
ademais, o personagem pensa em financiar um carro para
que possa se juntar à massa de gente que também se
desloca aos finais de semana até as margens do rio
Paraná. Entretanto, e aqui está a chave da “história”, o
narrador típico em terceira pessoa abandona a parte da
história do compadre e passa a mostrar um quadro geral
do clima e de todo o meio ambiente da região, como se
pudesse, com isso, enfatizar que os personagens e seus
correspondentes na vida real estão imersos numa situação
“crônica”, em vez de “aguda”. O agro que fez e faz a
mente da maioria da população, não só do nosso estado,
não pega o narrador nem a laço – para usar uma expressão
típica dos peões – entretanto, o que o narrador em
terceira pessoa pode e, nesse caso, deve é dar sua
grita, semelhante aos profetas do Velho Testamento que
gritavam aos quatro cantos que o mundo ia acabar, mas
sem o moralismo bíblico, evidentemente. É supérfluo o
que vou dizer: os personagens, nesse conto, sofrem
agudamente, o narrador (consciente) sofre cronicamente.
E o leitor que se encaixe num ou noutro dilema. Como
escreveu o Fernando Pessoa: “Sinta quem lê!”.
06. HP – Você vem publicando desde 2021. De seus contos,
no aspecto temático, um dos eixos principais refere-se a
questões fronteiriças do Centro-Oeste brasileiro; em
especial, do estado de Mato Grosso do Sul. Embora o que
haja de mais relevante em seus livros seja sempre a
literatura (arte literária) com refinamento estético,
pode-se constatar em seus trabalhos as seguintes
“transversalidades”, expondo correspondências sociais
importantes, urgentes e presentes sob várias formas na
vida cotidiana do povo sul-mato-grossense: tráfico de
drogas e de seres humanos; contrabando; migração ilegal;
questões ambientais; conflitos indígenas e agrários;
infraestrutura precária; dificuldades de integração com
países vizinhos. Você, por acaso, tem consciência de que
está desvelando um MS que muita gente gostaria que
permanecesse quietinho, escondidinho debaixo do
pasto?
06. ERN – Quando comecei a publicar, assumi para mim
mesmo que só publicaria textos (contos) que de alguma
forma pudessem ser, na medida de minhas possibilidades,
um contraponto a textos ufanistas, beletristas e
edificantes. Nessa linha, comecei com o “Fronteira MS”,
com o primeiro conto homônimo, em que procurei mostrar
que o nosso estado se funda, também, na ignorância, no
capanguismo e no compadrio, e termino mostrando no
último conto desse livro, “O sal da Terra”, que a selva
de antes se transformou no deserto verde do presente. No
mesmo livro há o conto “Sob o céu azul da fronteira” que
retrata dois casais indo e voltando do Paraguai e se
deparando com uma cena na estrada, causadora de
desconforto da personagem. A cena do galo morto é uma
metáfora da morte da natureza agonizando sob o
agrotóxico. E por aí vai: a maioria dos contos do mais
recente livro, o “Cerrado: luz e sombras” expõe, mesmo
que de forma sucinta ou sugerida, a situação de peões,
de pessoas marginalizadas e/ou transtornadas pela
ciranda louca que nos leva a todos de roldão para o
matadouro em que está se transformando esse estado
agrário-exportador. Por isso tenho consciência do que
estou escrevendo, sei que não agrada a muitos. E quero
mesmo que não agrade. Como cantou o Belchior: “E eu
quero é que esse canto torto / Feito faca, corte a carne
de vocês”.
07. HP – Em complemento a uma pergunta anterior, creio
que todos os seus leitores percebam que as suas
personagens costumem acionar o modo “mudo”. Ou seja,
elas são de poucas falas, e de muitos pesares, digo,
pensares. Suas personagens não falam nada além do famoso
“mínimo indispensável”, comprovando que os silêncios, ou
que as pausas nas falas, são formas de comunicação
altamente habilidosas. Interessante é o seguinte, você e
eu cultuamos e invejamos os diálogos excepcionais do
grande Luiz Vilela, né... Mas você, Eusvaldo, é
econômico em exagero, um mão-de-vaca no uso de diálogos.
Observe, não estou aqui afirmando que sinto falta de
diálogos nos seus contos. Seus contos são os seus
contos. Contos literariamente bem concebidos, impecáveis
e pecáveis. Comente, por favor, essa questão dialogal.
07. ERN – Admito que faltam diálogos nos meus contos.
Admito também que sou fã de Vilela e de outros monstros
dos diálogos. A economia de diálogos nos meus contos,
acredite, não é proposital. É porque não saem mesmo. É
como se os personagens não conseguissem ou não pudessem
falar. Daí poderíamos pensar que é uma estratégia de
construção de texto (algo como um “minimalismo
dialogal”), mas não é. Pelo menos não que eu queira ou
que eu saiba, conscientemente. Entretanto, analisando
meus contos, percebo que o narrador consegue suprir ou
suprimir, talvez, as falas dos personagens. Como se o
narrador pudesse, de algum modo, através da onisciência
e da criação de imagens compor um panorama, um quadro,
no qual os diálogos dos personagens irrompessem apenas
como uma assinatura, um traço ao pé do quadro. Eu
poderia ficar com a antiga máxima que diz que “o estilo
é o próprio homem”, para corroborar a feitura dos
diálogos baseados na minha personalidade, ou o que acho
que seja minha personalidade: tímida, recatada e
econômica; mas a psicanálise ajuda, e me ajuda a
entender que “o estilo é o homem a quem nos
endereçamos”. Desse modo, a economia nos diálogos (como
a economia em diversos outros aspectos dos meus contos)
parece sugerir que os personagens falam pouco para quem
pouco quer ouvir. Também pode indicar que esse pouco é
só o que temos, por ora.
08. HP – Em conversas informais, alguns amigos em comum,
melhor não citarmos nomes, confessaram ter sofrido essa
tal “modinha de cancelamento”, por abordarem temas
politicamente incorretos, ou por criarem situações e
personagens perversas, dentre outros “pecados mortais”,
em suas obras. Trata-se da época em que vivemos, mas,
talvez, isso pode ser inerente a todas as épocas da
Humanidade, imagino. Há, ainda, a questão do gosto
pessoal do leitor... Enfim, as ramificações acerca desse
assunto são muitas e, eu diria, até incontroláveis.
Penso em alguns contistas que eu adoro, como Rubem
Fonseca, Dalton Trevisan e Marcelo Mirisola; sabemos que
esses caras são execráveis por uma grande parcela de
acéfalos que “pensa” possuir massa cinzenta de boa
gênese. Espero que entendam a ironia... Não, eles
não vão entender. Fonseca, Trevisan e Mirisola são
modelos, suponho, para você também. A parada é a
seguinte, meu irmão, na bronca, na pedra, já aconteceu
de sua literatura sofrer esse tipo de “patrulhamento
ideológico”? Não minta!
08. ERN – Patrulhamento não, mas um certo receio e
desconfiança sim. Vou explicar: leitores, principalmente
iniciantes em Literatura, têm um modelo de livro, de
enredo, de personagens, arraigado em suas mentes e
quando se deparam com algo diferente do que estão
acostumados, eles se sentem, no mínimo, incomodados.
Exemplo disso é um amigo meu que fala que lê meus livros
mas fica mal depois. De acordo com ele, meus livros o
deprimem e ele não sabe o porquê. Eu sei mas não vou
dizer isso ao amigo. Ele que descubra sozinho (e o
mérito será dele, não meu nem de minha literatura).
Também, principalmente por conta da velha ignorância, é
observável uma certa aura de surpresa quando as pessoas
se deparam com escritores locais, parecendo estarem
realmente chocados ao descobrirem que o funcionário
público cumpridor de horários também gosta de ler e, no
meu caso, de escrever. Voltando à questão do
cancelamento: acredito que qualquer ação contrária à
Literatura, à Música, ao Cinema etc., na linha do
conservadorismo e da proibição apenas despertam a
curiosidade das amantes e dos amantes de tais artes e o
“engajamento” delas e deles para resistir, consumir e
criar mais. Já para o público em geral, acredito que não
significa nada, porque ele está acostumado aos
cancelamentos diários: do primeiro respiro ao último
suspiro.
09. HP – Meu amigo Eusvaldo, só por curiosidade mesmo...
Você já escreveu contos em estado alterado de
consciência? Eu penso em álcool, em maconha e em outras
coisas... Mas, nós dois sabemos disto, podemos estar, de
certo modo, 100% caretas e ao mesmo tempo 100% chapados.
Enfim, responda se puder e se quiser à pergunta. Se a
resposta começar com o advérbio “sim”, quero muitíssimo
saber se existe diferença entre escrever com “adição” e
escrever sem “adição”.
09. ERN – Não. O mais próximo que cheguei disso foi
escrever depois de ter tomado um litro de vinho e fumado
uma carteira de cigarros. Mas ficou uma escrita
“nervosa” e “enevoada”... Tive que rasgar e jogar fora,
pois escrevia numa agendinha de bolso. No outro dia,
depois da necessária ressaca, juntei os pedacinhos da
história, misturei com um trecho do sonho bêbado e refiz
o conto, dessa vez tristemente lúcido. Então, acredito
que se eu “chapasse” com qualquer tipo de substância, o
máximo que faria seria retardar o trabalho que me
propusesse a fazer. Sendo assim, epifania: me considero
um escritor careta. Por outro lado, fui, durante algum
tempo, um leitor potencialmente maluco, pois em minha
juventude li a maioria dos livros de Kafka e Castañeda
sob o efeito de maconha. Hoje sei que foi uma
experiência juvenil e redundante: esses dois autores
sozinhos já fazem a cabeça de qualquer pessoa. Devo
acrescentar que prefiro a “loucura controlada” dos
livros ao descontrole das drogas.
10. HP – Gostaria de comentar acerca de um conto
específico do “Flores à beira do abismo”, o
“Fragmentos”, não porque ele possua a melhor epígrafe do
livro inteiro, não por isso, mas por sua forma e por seu
conteúdo. O título já sugere o que o leitor vai
encontrar. No caso, temos sete parágrafos curtos,
numerados, que condensam uma história principal e
algumas outras prováveis sub-histórias. Você,
escancaradamente, furtou do cinema a técnica de
“trailer”, fazendo com que cada parágrafo, ou fragmento,
tivesse o poder de impacto de uma cena brevíssima, mas
com refinada elaboração estética. Cada cena ressoa no
espírito do leitor ao modo de um choque imagético.
Revelações e mistérios aglutinam-se em síntese
discursiva. Eu comentei. Agora, é a sua vez.
10. ERN – O conto “Fragmentos”, a começar pela epígrafe
escolhida a dedo, extraída de um excelente conto seu,
ainda não publicado, é uma tentativa de utilizar na
minha obra a técnica de “cut-up” que não é mais novidade
para ninguém. O conteúdo e a forma nesse conto se
equivalem, porque a violência física contida nele se
expõe como pauladas, socos, cutiladas. Por isso, optei
por retratar essas vidas despedaçadas em forma de
pedaços também, em fragmentos. Da mesma forma, o
mistério e a revelação se dão em fatias. Em maus
bocados. Para resumir: a vida é breve, meus contos
também. Personagens mutilados pelas vidas desgraçadas
que levam merecem do autor ao menos o respeito da
brevidade. Que a terra lhes seja leve, já que vida não
é. Ademais, a vida – boa ou não – é sentida aos poucos.
Apenas a morte é completa e total.
11. HP – Nos seus livros, há muitos contos que, no
mínimo, apresentam características de narrativa
policial. Especificamente, no seu livro “O amor e outros
assombros”, a pegada se volta para um lance mais de
suspense, mistério, terror e, misturado no mesmo
caldeirão, de narrativa fantástica. Buscando um elemento
aglutinador, eu chutaria que você tenha lido muito Edgar
Allan Poe. Acertei? Você poderia supor os porquês de sua
literatura estar tão ligada às narrativas policial e
fantástica?
11. ERN – Li os contos clássicos de Edgar Allan Poe,
gosto de alguns em especial, um exemplo é o conto “O
gato preto”. Mas não sou fã do autor. Nessas linhas de
literatura policial e fantástica, acredito que as minhas
narrativas breves sejam uma espécie de emulação dos
contos de Raymond Chandler e de Stephen King, ou seja, a
brevidade, a concisão e a linguagem cotidiana nos meus
contos estão muito distantes da linguagem elaborada e do
macabro profundo de Poe. Mas, estão imersas no nosso
“terror” cotidiano que é aquele baseado na nossa
ignorância coletiva e em nosso egoísmo relacional. O que
se opera, por exemplo, nos contos do meu livro “O amor e
outros assombros” é um terror psicológico e/ou social,
não mais o terror sobrenatural, cósmico ou bestial,
encontrado nos clássicos do gênero.
12. HP – Aproveitando o gancho da pergunta anterior,
revele um pouco de suas autoras e de seus autores de
predileção. Se puder, destaque autoras e autores de
contos... E... as suas preferências seriam notáveis,
também, como influências? As influências, se existirem,
angustiam o leitor e escritor Eusvaldo Rocha Neto?
12. ERN – São tantas autoras e tantos autores de minha
predileção que ficaria cansativo enumerá-los. Vou citar
os mais lidos e amados recentemente: Raymond Carver,
Hilda Hilst, Ana Paula Maia, Sérgio Faraco, Lucia
Berlin, Annie Proulx e, óbvio, Rubem Fonseca, que é
leitura contumaz. Sou extremamente sugestionável,
inclusive em Literatura: tudo o que leio me afeta. A
influência existe, mas não a sinto como angústia e sim
como uma espécie de alegria, sempre renovada ao
descobrir novas escritoras e novos escritores, ao reler
os mais antigos que me agradam: Machado, Tchecov,
Lispector. Por isso, tento escrever histórias parecidas
com aquelas que leio. Já que leio muito, me encontro em
muitos lugares e isso me alegra bastante. Dessa forma,
quanto mais leio, mais me alegro: é um ciclo virtuoso.
13. HP – Você tem fixação por animais. Isso é bastante
legal e, em termos religiosos, a sua fixação me remete a
São Francisco. Uma situação recorrente em seus contos é
o relacionamento do ser humano com animais, sejam eles
domésticos ou selvagens: por vezes, você humaniza
animais e animaliza seres humanos. Outra situação
recorrente é o atropelamento de animais nas autovias de
MS. Comente, por gentileza, essa minha pequena tese.
13. ERN – Sim, por vezes, prefiro os animais (cães,
gatos, cavalos, galos, jabutis, tamanduás e macacos) aos
seres humanos. Os bichos têm o instinto, que alguns de
nós já perdeu, ou nos civilizamos ao extremo, a ponto de
nos transformarmos em ideia sem corpo. Eles, se é que
podemos dizer assim, são todos “coração”. Além disso,
sinto uma grande compaixão por eles, o que me envergonha
bastante, pois ainda sou carnívoro e pesco de vez em
quando. No entanto, sei e sinto que tenho uma dívida de,
no mínimo, trinta e oito anos com os meus amigos animais
(o tempo referente aos anos em que venho comendo-lhes a
carne, bebendo-lhes o leite e roendo-lhes os ossos). Por
isso, o mínimo que posso fazer é me retratar na ficção
de algo que sou culpado na vida real. A grande questão,
para mim, é: até quando? Literariamente falando, a cena
mais triste e ao mesmo tempo mais linda da Literatura
Brasileira é o sacrifício da cachorra Baleia no livro
“Vidas secas” de Graciliano Ramos. Acho que o velho
Graça foi feliz ao nos fazer ver e viver aquela cena.
Depois daquilo, nunca mais pude olhar um cão, sem vê-lo.
E o que eu vejo neles é um bicho feito eu: alguém que
quer viver e, se possível, felicitar.
14. HP – Parece que sua experiência sob a pele do
professor Neto rendeu várias histórias interessantes e
algumas delas já entraram, de uma forma ou de outra, em
alguns de seus contos. Você poderia nos relatar um pouco
sobre sua experiência no Magistério e sobre como
histórias reais, vividas no calor (sem ar condicionado)
das salas de aula, adquiriram o formato ficcional de
conto em seus livros? Aproveitando o tema: de modo um
tanto quanto sarcástico, no conto “Emparedados”,
inserido no “Flores à beira do abismo”, um professor de
sexta série compara a escola com um presídio. E você,
contista Eusvaldo Rocha Neto, concorda com sua
personagem? A propósito, detono ainda mais uma questão,
de ordem aristotélica: a arte imita a vida, mesmo?
14. ERN – Fui professor durante oito anos e meio. Saí
porque fiquei desiludido comigo mesmo, porque achava que
poderia, com boa vontade e teoria, mudar o mundo. Tenho
mestrado na área de Linguagens e “PhD em Inocência”.
Depois de alguns anos descobri que a escola, sozinha,
não muda o sistema. Ela é, também, parte do sistema.
Como tudo na vida. Então segui o conselho de Oswald de
Andrade, qual seja: “A felicidade é a prova dos nove”, e
decidi abandonar a escola. Hoje não ensino ninguém, só
aprendo. O período de docência rendeu e renderá bons
contos, imagino. Por hora, salvo engano, só consegui
fazer dois, devido, principalmente, ao pudor que ainda
tenho em escrever sobre esse período da minha vida; no
entanto, aos poucos, vou adquirindo distanciamento
temporal e crítico para escrever sobre essa fase com
verdade artística. Há muitas histórias a serem contadas
sobre esse período, mas precisam de um gesto, de um
aceno do mundo exterior, a fim de pularem pra fora da
cabeça e caírem na superfície lisa do livro. É polêmico
o que vou dizer, mas é o que penso hoje: a instituição
escola, no seu arcabouço geral, e da forma como está
estruturada atualmente, se parece com a Casa Verde, do
livro “O alienista” de Machado de Assis, ou seja, um
manicômio. Em relação à última pergunta, acredito que a
arte imita a vida e imita a ela mesma. Ainda assim,
continuo procurando um tipo de arte que não apenas
imite, mas revele também o insondável para, quem sabe,
torná-lo imitável.
15. HP – Uma parte de sua obra completa, até aqui, é
dedicada ao universo metalinguístico da leitura e da
escrita. Você costuma apresentar personagens e
tramas com leitores e escritores (diletantes ou
profissionais). No caso de “Flores à beira do abismo”,
poderíamos citar três contos como exemplares. Em
“Tropeçava nos livros desastrado”, há um jovem aspirante
a escritor, que é leitor de revistinhas de faroeste,
Agatha Christie, Jorge Amado, Marquês de Sade, Ernest
Hemingway, Jean Paul Sartre e James Joyce; o sonho de se
transformar em um grande escritor, contudo, ainda se
reduz a apenas os tradicionais clichês de fumo, álcool,
prostíbulos e mecenato materno. Em “Delírios”, embora o
protagonista não se identifique explicitamente como um
escritor, ele cria histórias em sua mente, como uma
forma de fugir da realidade imediata; o leitor do conto,
então, percebe que estão ocorrendo duas tramas ao mesmo
tempo, uma chatíssima na sala de espera de um
consultório médico e outra vibrante na mente do
protagonista. Em “Entretanto, luto”, um escritor
sul-mato-grossense tenta vender seus livros ao modo de
mascate (caixeiro-viajante), ou seja, vai de cidade em
cidade, oferecendo os “produtos”; ele, em determinado
momento, afirma que só escreve baseado em experiências
vivenciadas, como, talvez, um relacionamento amoroso que
está prestes a iniciar. Você se irmana com suas
“divagações” metalinguísticas? Por partes: 1. Você foi
um jovem leitor de histórias em quadrinhos a “Finnegans
Wake”, aspirante a ser Nobel de Literatura? 2. Você
costuma fugir da realidade imediata e criar boas tramas
em sua mente apenas como forma de passatempo? 3. Você só
escreve suas vivências e, depois de publicá-las,
mascateia seus livros por aí?
15. ERN – Como escreveu José Ortega y Gasset: “Eu sou eu
e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me
salvo a mim”. Sim, fui e sou um leitor de Tex, Conan e
Chico Bento, mas não sou mais jovem, leio-os porque sou
apegado ao que fui. Deixo para os críticos e os
analistas, se existirem, analisar. Ainda mantenho acesa
a brasa infantil da memória. Em relação ao “Finnegans”,
nunca li, mas tenho uma vontade imensa de ler e um medo
enorme de me decepcionar, por isso o deixo no limbo. O
meu Nobel será quando um mendigo, destes que vivem nas
praças públicas de Nova Andradina, ou daqueles que
dormem na rua Allan Kardec e na avenida Calógeras, em
Campo Grande, me encontrar em via pública e me pedir um
autógrafo. Fujo da realidade o tempo todo, não como
forma de escapismo, para poder olhar para ela como
crítico e escritor. Se ficasse imerso na realidade, não
conseguiria escrever do jeito que escrevo. O máximo que
faria era reportagem ou notícias para canais
humanitários. Além do mais, não sou obrigado a aceitar
apenas “o que meus olhos veem, senão aquilo que minha
alma deseja”. Escrevo também a partir de minhas
vivências, pois é muito material para ficar desperdiçado
dentro de mim. Quero que enlouqueçam com minha loucura.
Sobre mascatear/vender, vender meus livros por aí, sou
um tanto quanto amador. Prefiro doá-los, de boa vontade,
a ter que vendê-los. No entanto, há gente que insiste em
pagar por eles. Não os contradigo, já que tenho que
pagar a gráfica.
16. HP – Eusvaldo, para finalizar a nossa entrevista,
gostaria de saber, sem cobranças, se na condição de
escritor você se basta como contista. Salvo engano,
certa vez, você disse que havia esboçado um romance...
Enfim, quais são os seus projetos futuros, em termos de
literatura, depois do lançamento de “Flores à beira do
abismo”?
16. ERN – O conto é o deleite, o ápice, mas não é o
bastante. Acredito que a maioria dos escritores sonha em
escrever um romance e eu não sou exceção. Tenho dois
protótipos de narrativa longa, um começado em 2002 e
abandonado em 2004, outro iniciado em 2017 e abandonado
em 2022. Entretanto, estou sempre voltando a eles para
extrair trechos para os meus contos. São duas fontes
que, inevitavelmente, vão se esgotar. Pretendo lançar
mais um ou dois livros de contos e depois só voltarei a
publicar se for um romance. É um desafio e uma meta aos
quais estou me propondo. Depois de 2025 é o romance, ou
nada. Evidentemente isso não exclui possíveis reedições
melhoradas dos meus livros de contos.
Campo Grande e Batayporã, 1º de novembro de 2024.
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