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Max Ernst

 

BUZU II (ATRASOS DE VIDA...)

 

(Eduardo Calazans)

 

Acabara de entrar no coletivo. Sentei-me ao lado de um cidadão alegre e bem falante, falava mais do que a nêga do leite, não sei se por ter ido com a minha cara ou se por tagarelice mesmo, o certo é que “o gente boa” soltou o verbo, e tome-lhe prosa:

 

– O senhor repare, mas tem vez que parece que o cão atenta... Disse isso, cutucando-me com intimidade, parecia conhecer-me de longas datas, na voz um certo ar de mistério. Somente no buzu acontecem dessas coisas, algumas vezes interessantes, outras, absurdas, inacreditáveis.

 

“Ih! Lá vem caso de polícia”, pensei.

 

– ...Tava sentado ali naquele banco da frente, aquele ali em cima do pneu, pregado, na requenguela, morto de cansado, disse ele em voz alta e com olhar solene.

 

– No banco reservado aos deficientes, idosos e grávidas? Perguntei-lhe interessado e com uma ponta de reprovação.

 

– É... Mas eu tava um caco, quebrado, tinha dado um murro retado pra trocar o piso da Madame na Pituba. De lá de casa até lá a casa dela é uma viagem. Pego dois buzu, um pra Pirajá e outro pra lá mesmo, tenho que acordar às quatro da manhã, às seis horas tô na Estação de Transtorno, de Transbordo que – diga, pra quando chegar as oito já tá dando murro, sabe como é, né? Tem que se virá! Né não?

 

– É... Depois ainda dizem que baiano é preguiçoso...

 

– Conversa de artista! Né, não?

 

– É... Respondi desinteressado e perguntei por perguntar:

 

– Trabalha até as dezoito?

 

– Qual o quê! A mulher tava com pressa, sabe como é, né, fim de ano, todo mundo quer dar uma guaribada na casa, e também eu tenho que adiantar o meu lado, é muita coisa pra dar conta, tem que aproveitar para ganhar mais um tanto, né mermo? Apois, como eu tava dizendo, o senhor repare, repare como tem hora que o cão atenta. Eu tava morto, moído de cansado, pedindo PPU, entrei pela frente do buzuzinho, acochado, apinhado de gente, com esta máquina de cortar azulejo aqui, a maquita, isto pesa que é uma beleza! Por sorte, levantou-se um velhinho mandingueiro daquela cadeira ali, eu, ôpa! Não contei conversa, tchuc! Abanquei-me...

 

– Ninguém chiou? Argüi, fingindo interesse.

 

– Os pessoal da frente não se ouriçaram, penso que sentiro o meu cansaço. Ninguém falou nada, não houve cangancha, ou então tavam morto tombém, sem forças pra empombar, só ouvi alguém no fundo bodejar qualquer coisa, mas num liguei, sabe como é, né, tem sempre um gaiato ou um crente berrando dentro do buzu, né mermo? A gente se acostuma, né mermo?

 

– É...

 

– Sentei todo troncho, botei a maquita no meio das pernas, naquele banco ali, em cima da roda, garrei no sono, de tão cansado q’eu tava, acho até que sonhei. Sonhei um bom pedaço, até que mais adiante o Motô parece que deu um freio de arrumação no buzu. Nem precisava. Acordei e vi uma baiana muciça, descendo, xingando o motorista de tudo que foi nome, o “Motô” ria pra se acabar, nem precisava aquele freio, tinha saltado muita gente, tava tranqüilo, o buzuzinho acochado tinha virado um buzuzão, frouxo, esparramado, a maioria dos pessoal já estava sentada com aquela cara de mareado que a gente fica depois de ter rodado meia-Bahia, olhei em volta só pra conferir, bocejei, fechei os olhos para voltar a dormir, devido que ainda tava longe do meu ponto, foi quando uma senhora roçando a pança no meu braço começou a pagar pra mim, a praguejar, a bodejar, no maior ouriço começou a me dizer desaforo, e tome-lhe lero, e tome-lhe ingrizilha...

 

– Desaforo, assim, na chincha, sem mais nem menos? Perguntei com uma curiosidade cínica.

 

– Rapaz... Essa mulher fez uma presepada, começou a me xingar, me xingou de tudo que foi nome, e eu de olho fechado, e ela começou a dizer que eu tava fingindo e começou a fazer discurso dentro do buzu, pra todo mundo ouvir e o pior é que tinha lugar sobrando e a véia encarnou ni mim: “Safado! Tá fingindo! Ói como finge mal o discarado, tá bom de ir pra Globo fazer novela. Sacano! Sem educação, não sabe que esse banco é pra véio, alejado e mulé prenhe, não, safado? Não sabe ler não, anafabeto? Oia, o tipo! Essa máquina aí, deve ser roubada, filho de lavadeira com guarda noturno. Olha a panca do tabaréu, isso deve ser lá do jebe-jebe, olha o tipo, safado!”

 

– E eu de olho fechado, morrendo de vontade de ri, fingindo mermo, ia fazer o quê? Picar a mão na véia? Até que deu vontade. Eu tava errado, eu sei q’eu tava errado, mas tinha tanto lugar vazio e a véia cismou logo comigo...

 

– E por que você não mudou de lugar?

 

– Eu até pensei em mudar, mas parece que tem hora que o cão atenta, e eu cá com os meus botões: “É petulância desta véia, apois agora é que eu não mudo, vou fingir mesmo”. “Azeite quente, não é meu parente!” Comecei a me divertir com a situação, e a véia bodejando: “Vagabundo, vagabundo”, e com cara de nojo e desprezo dizia que aqui na Bahia só tinha vagabundo, preguiçoso e ladrão, que era por isso e por aquilo e aquilo outro que isso aqui não ia pra frente, e xingou meus parentes, contraparentes e aderentes, e o pior, ajuntou-se com um evangélico que se preparava para entrar em cena, aí é que foi russo. Disse que aquilo era coisa de Satanás, do coisa-ruim, que eu acreditava em Deus lá nada. Homem, essa mulher pintou e bordou, me xingou de tudo que foi nome, me botou mais baixo do que o túnel da Calçada na Cidade Baixa, mas o pior do pior mesmo foi quando ela não tinha mais de que me xingar, mexeu com a minha cor, mexeu com a minha cor. Aí, a conversa foi outra, aí foi esparro! Aí, ela caiu no esparro! Abri o olho, olhei em volta, todo mundo no buzu igualzinho a mim, inclusive ela, acho até que ela era mais escura do que eu, tá rebocado, piripicado! Aí ela pegou embaixo, aí foi esparro! Só o senhor veno, aí ela pegou embaixo, os outros passageiros se sentiram ofendidos e tomaram partido a meu favor e começaram a escorraçar a mulher, bem feito. Tinha um puliça, ói, o tamanho do armário, baiano retado, um negão quase azul, o rosto tranqüilo, brilhando, prendeu o sorriso e botou moral: “A senhora chamou ele de quê?” O cobrador tomou minhas dores e gritou: “De preto sacana!” E a véia baratinada, gaguejando: “Não, não, de preto sacana, não. Eu chamei de Sacano. De Sacano! De preto não. De preto não!” E o guarda indulgente: “A senhora sabe que pode ser presa?” Rapaz, essa mulher atordoou-se, baratinou-se toda, agoniou-se, tremia que nem vara verde, ficou sem saber onde botava a cara, meteu o rabo entre as pernas, puxou o sinal e saltou debaixo de vaias. “Aleluia irmãos!”, disse o crente e se picou... Aí eu gostei... Aí foi porreta... Nunca mais ela vai esculhambar com ela merma, tá rebocado, piripicado, nunca mais ela vai mexer com quem tá quieto. Tá reboré, piripiri! É ruim, hein? É ruim, hein? Aonde? Nunca mais ela mexe com quem tá queto, tá rebocado!...

 

– Esta Bahia tem cada uma que parece duas, filosofou com profundidade um coroa fouveiro ao lado.

 

– Que coisa, não? Disse-lhe, tentando lembrar de uma história estapafúrdia para contar...

 

– É... A conversa tá boa, mas tá chegando o meu ponto. Chego em casa umas dez, vou dormir lá pela meia-noite e amanhã às quatro tô no batente, fui, aquele abraço! Disse isso, solicitando a parada, sorrindo e se espreguiçando, sem ressentimentos.

 

Levantei-me para que ele pudesse passar, entreguei-lhe a maquita que ficara no canto. Cordialmente, saiu saudando a todos com dignidade. Assim que o buzu seguiu, acenei cumprimentando-o de passagem e depois, absorto, pensei em voz alta: o preconceito e o racismo são uns atrasos de vida, tá rebocado, piripicado!...

 

 

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