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Max Ernst

 

A NOIVA DO CAVALO-HOMEM

 

(Lord Dunsany)

 

Na manhã do seu ducentésimo qüinquagésimo ano, Shepperalk, o centauro, foi à arca dourada, onde estava guardado o tesouro dos centauros, e, retirando de lá o precioso amuleto que seu pai, Jyshak, em sua juventude, martelara no ouro da montanha e incrustara de opalas barganhadas com os gnomos, ajeitou-o sobre a cintura, para, sem dizer palavra, deixar a caverna de sua mãe. E levou consigo também aquele clarim dos centauros, aquele famoso corno de prata, que em sua época tinha intimado à rendição dezessete cidades do Homem, e que durante trinta anos zurrara para muralhas estreladas no cerco a Tholdelblarna, a cidadela dos deuses, época na qual os centauros empreenderam sua fabulosa guerra e não podiam ser vencidos por força de nenhum exército, mas se retiraram lentamente numa nuvem de poeira ante o milagre final dos deuses, o qual Estes sacaram, em Sua necessidade desesperada, do Seu último arsenal. Apanhou-o e afastou-se, e sua mãe apenas suspirou e o deixou ir.

 

Ela sabia que hoje ele não beberia das águas da corrente que provinha dos terraços de Varpa Niger, as terras interiores das montanhas, que hoje ele não pararia para admirar o pôr-do-sol e depois retornar trotando à caverna, para dormir sobre juncos colhidos às margens de rios que o Homem ignora. Ela sabia que com ele aconteceria como tinha acontecido com o seu pai há muito tempo, e também com Goom, o pai de Jyshak, e também com os deuses num passado ainda mais remoto. Assim, apenas suspirou e o deixou ir.

 

Mas ele, saindo da caverna que era o seu lar, passou pela primeira vez além do pequeno riacho e, contornando a curva dos penhascos, viu refulgir diante de si a planície mundana. E o vento do outono que alourava o mundo, soprando das encostas da montanha, bateu frio contra suas ancas nuas. Ele ergueu a cabeça e aspirou.

 

“Sou um cavalo-homem agora!”, gritou bem alto. E, saltando de rochedo em rochedo, galopou entre vales e funduras, entre leitos de rios e vestígios de avalanches, até chegar às léguas indomáveis da planície, deixando atrás de si, para sempre, as montanhas atraminaurianas.

 

Seu destino era Zretazoola, a cidade de Sombelene. Que lendas acerca da beleza sobre-humana de Sombelene ou sobre as maravilhas de seu mistério teriam fluído através da planície mundana até o fabuloso berço da raça dos centauros, as montanhas atraminaurianas, eu não sei dizer. No entanto, no sangue do homem há uma vaga, uma antiga corrente marinha, que é de algum modo aparentada ao crepúsculo, a qual traz até ele rumores de beleza provenientes de todas as lonjuras, tais como vestígios flutuantes de ilhas ainda não descobertas nos chegam pelo mar. E essa vaga torrencial que visita o sangue do homem vem dos quadrantes fabulosos de sua linhagem, do legendário, do antigo. Leva-o para as florestas, para as colinas. Ele ouve a canção ancestral. Assim pode ter sido que o sangue legendário de Shepperalk se agitou nessas montanhas fabulosas, nos extremos do mundo, ao ouvir rumores que somente o airoso crepúsculo conheceria e que apenas ao morcego confidenciaria, pois Shepperalk era mais lendário ainda do que o homem. O certo é que ele se encaminhou, desde o  princípio, para a cidade de Zretazoola, onde morava Sombelene em seu templo, embora a planície mundana, seus rios e montanhas se interpusessem entre o lar de Shepperalk e a cidade que buscava.

 

Quando os pés do centauro tocaram pela vez primeira a grama daquela macia terra de aluviões, ele soprou alegremente o corno de prata, saltitando e corcoveando, e galopou feliz através das léguas. As distâncias vinham até ele como uma donzela com sua lâmpada, uma nova e bela maravilha; o vento ria ao passar por ele. Ele baixava a cabeça para sentir o aroma de uma flor, e levantava-a para ficar mais perto de estrelas jamais vistas. Deleitou-se, atravessando reinos; alcançou rios em sua carreira. Como vos direi – a vós que viveis nas cidades –, como vos direi o que ele sentiu ao galopar? Sentiu-se forte como as torres de Bel-Narana, leve como esses palácios de gaze que a aranha encantada constrói entre o céu e o mar ao longo das costas de Zith, ligeiro como algum pássaro que se apressa de manhã para cantar entre os pináculos de uma cidade antes de vir o dia. Era o companheiro devotado do vento. De alegre, era uma canção. Os raios de seus ancestrais lendários, os deuses primitivos, começavam a se misturar ao seu sangue; seus cascos trovejavam. Veio às cidades dos homens, e todos os homens tremeram, pois se lembraram das guerras antigas e míticas, e agora aborreciam novas batalhas e temiam pela raça do homem. Nem por Clio essas guerras são lembradas, a história não as conhece, mas e daí? Nem todos nós já nos assentamos aos pés de historiadores, mas todos aprendem fábulas e mitos sobre os joelhos de suas mães. E não houve ninguém que não temeu guerras estranhas quando viu Shepperalk voltear e correr ao longo das vias públicas. Assim ele passava de cidade em cidade.

 

À noite ele se deitava apaziguado sobre os juncos de algum pântano ou floresta. Antes da aurora, levantava-se triunfante e, no escuro, bebia abundantemente de algum rio; e afastando-se trotaria até algum lugar elevado para ver o nascer do sol e saudar o levante com os ecos de sua jubilosa trompa. E, deuses!, o sol levante acorreria aos ecos, e as planícies iluminadas pelo brilho novo do dia, e as léguas se esparramando em volta como águas que jorram do alto, e esse alegre companheiro, o vento bulhento e risonho, e os homens e os medos dos homens e suas pequenas cidades; e, após isso, grandes rios e vastidões e novas colinas enormes, e então novas terras para além delas, e mais cidades dos homens, e sempre o velho companheiro, o glorioso vento. De reino em reino ele passou, e no entanto seu fôlego não se alterava. “É uma coisa áurea galopar sobre boa turfa quando se é jovem”, dizia o jovem cavalo-homem, o centauro. “Ah, ah”, dizia o vento das colinas, e os ventos da planície respondiam.

 

Sinos bimbalhavam sobre torres frenéticas, sábios consultavam alfarrábios, astrólogos perquiriam o portento nas estrelas, os velhos faziam profecias sutis. “Ele não é veloz?”, diziam os jovens. “E como é feliz!”, diziam as crianças.

 

Sucedendo-se, as noites o punham para dormir, e os dias iluminavam seu galope, até que chegou às terras dos homens atalonianos que vivem nos limites da planície mundana, e delas passou às terras da lenda outra vez, tais quais aquelas onde se criara no outro lado do mundo, e que bordejam a margem do mundo e se mesclam ao crepúsculo. E ali um pensamento impositivo se manifestou em seu coração infatigável, pois sabia estar perto de Zretazoola, a cidade de Sombelene.

 

O dia tinha avançado quando se aproximou da cidade, e nuvens coloridas de entardecer corriam baixas sobre a planície à sua frente. Ele galopava em direção à sua névoa dourada, e quando ela ocultava de seus olhos a imagem das coisas, os sonhos despertavam em seu coração, e ele ponderava romanticamente sobre todos esses rumores que costumavam chegar até ele vindos de Sombelene, conduzidos pela camaradagem das coisas fabulosas. Ela morava (dizia, em segredo, o entardecer ao morcego) num pequeno templo à margem solitária de um lago. Um bosque de ciprestes ocultava-a da cidade, de Zretazoola dos caminhos íngremes. E em frente ao seu templo jazia o seu túmulo, seu triste sepulcro lacustre de porta sempre aberta, para que sua beleza estonteante e os séculos de sua juventude não alimentassem entre os homens a heresia de que a adorada Sombelene fosse imortal: pois apenas a sua beleza e a sua linhagem eram divinas.

 

Seu pai tinha sido meio centauro e meio divino, sua mãe era a filha de um leão do deserto e daquela esfinge que guarda as pirâmides; e ela era mais mística do que Mulher.

 

Sua beleza era um sonho, era uma canção, o único sonho de toda uma vida sonhado entre orvalhos encantados, a única canção cantada para alguma cidade por um pássaro imortal que alguma tempestade do Paraíso tivesse arrebatado para longe de suas plagas natais. Aurora após aurora nascendo sobre montanhas de romance, ou crepúsculo após crepúsculo nunca poderiam igualar a sua beleza. Todos os vaga-lumes não saberiam o segredo entre eles, nem todas as estrelas da noite. Os poetas nunca a cantaram, nem o anoitecer imagina o que ela significa; a manhã a invejava, e era interdita aos amantes.

 

Ela não fora desposada, não fora jamais cortejada.

 

Os leões não vinham cortejá-la porque temiam sua força, e os deuses não ousavam amá-la porque sabiam que ela devia morrer.

 

Isso foi o que o entardecer sussurrou ao morcego, isso foi o sonho no coração de Shepperalk, enquanto trotava cego através da bruma. E, de repente, apareceu sob os seus cascos, na escuridão da planície, a depressão das terras lendárias, e Zretazoola aninhada na depressão, a banhar-se ao sol do entardecer.

 

Rápida e habilmente ele desceu pelo despenhadeiro e, entrando em Zretazoola através do portão externo que olha diretamente para as estrelas, passou num galope pelas ruas estreitas. Muitos acorreram às sacadas enquanto ele galopava, muitos enfiaram a cabeça para fora das janelas, e esses são mencionados na velha canção. Shepperalk não se deteve para saudações ou para responder às advertências das torres marciais. Ele atravessou o portão que levava através da terra como o raio de seus ancestrais e, tal como Leviatã saltando sobre uma águia, levantou-se das águas entre o templo e o túmulo.

 

Com os olhos semicerrados, subiu galopando os degraus do templo e, vendo muito obscuramente através das pálpebras, agarrou Sombelene pelos cabelos, ainda não ofuscado pela sua beleza, e assim a arrastou para fora. Então, saltando com ela sobre o abismo sem fundo onde as águas do lago caem para o esquecimento através de um buraco no mundo, levou-a para não se sabe onde, a fim de ser seu escravo para todos os séculos que são concedidos à sua raça.

 

Três grandes sopros ele deu, enquanto ia, naquela trompa de prata que é o imemorial tesouro dos centauros. Esses foram os seus sinos nupciais.

 

(Traduzido por Renato Suttana)

 

Ouça a leitura deste conto na voz de Lauriston Trindade

 

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