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Nicolau Saião, Postal de namorados (técnica mista sobre papel)

 

RITMOS

 

(Gérard Calandre)

 

1.

Percorro a cidade sem frio sem fome

Ando como uma sombra   diria: uma pequena sombra

um fragmento escuro entre automóveis   carros

baratos   carros de luxo

Um hiato de carne entre casas   Moradias

onde nunca entrarei

 

 

2.

Conheço-as há tantos anos   as suas imagens enchem-me

Repleto   ou uma pança de reconhecimento   de meiguice

ó casas sem nome com nome   Casas bonitas casas feias

As casas da cidade habitual

As vozes não entram em mim   ocupam-me

As flores que não há repousam modestamente

no sítio do costume

 

As que há desafiam-nas para existirem paralelamente

Entram na minha sombra

ondeiam   estralejam.

 

 

3.

Afinal a minha fome é diferente

talvez pior que a dos bravos rapazes de Banville

ou do bairro anão dos marroquinos

que misturam a polícia   trancam-na em monossílabos

sangue e ruínas   pistachos   guisados de borrego

"morte, onde está tua vitória?"

Visitam com o seu gáudio os parentes

eles são os grandes avatares do momento

 

 

4.

Vede   é a calva de um tal qualquer

límpida como a lua límpida como um sol

e eu sem fome e eu sem sono

Desespero. Tenho de que me queixar   desfaleço

O meu fato habitual desabitual pende-me do esqueleto

ouço a música e espero   como uma sombra espero

algo passa   vai para um planeta distante   o sítio do costume.

 

 

 

NA COZINHA

 

(Jacques Tombelle)

 

deuses que entram e saiem

com o pão

a fruta

uma bilha de água

um gesto de mãos

um de barriga ao léu

dois três anos

que saberá do seu futuro tempo

interroguemo-nos

 

a mamã põe os olhos no ar

assim são os sonhos

passeios por lugares insondáveis

áfrica   américa

o choro do filósofo encobre o Sol

com as suas mãos emagrecidas acaricia um ombro

 

o mais pequeno olha a um canto

o rasto de algum familiar

avós sobrinhos comadres

um burrinho branco junto ao maciço de dálias

 

se amais as lindas canções

ide até ao princípio da noite

 

 

 

O DIA DE PHILICARI

 

(Jacques Tombelle)

 

Georg Friedrich Handel

em Meerbusch

no Hotel

com mendigos à porta

um de perna quebrada

outro zarolho

outro recordando os seus dias felizes

uma tarde junto ao rio

com uma pequena que o adorava

"Zozi!" dizia ela "Zoziiiii!"

De boca aberta pensa

Coça uma perna chagada

Olha o outro do lado   é uma outra

De saias até aos pés   olhando o homem

 

que agora chega de roxo e ouro, as meias verdes

um comerciante célebre que dias antes enviuvou

"Zoziiii!" chama uma voz fresca morta esfomeada

Ele sorri   a boca enegrecida   os olhos mais fundos

 

Junto ao rio os mesmos barcos, a mesma água.

Philicari prende o violino, a mão hábil o queixo recolhido

O arco a direito sobre as cordas   um sussurro rouco

 

Haendel sai, a carruagem vai partir   os mendigos

olham-no a pouco e pouco   mais longe   na rua depois

escurecendo   mais e mais   deserta.

 

 

(Traduções de Nicolau Saião)

 

 

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