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Giorgio Morandi, Natureza morta

 

DESENCANTADOS

 

(Renato Suttana)

 

Houve uma época em que as pessoas se diziam encantadas por se conhecerem umas às outras. Essa época já passou, ao que parece, e o costume se esgotou não tanto porque as nossas maneiras de hoje sejam mais rudes e intolerantes, mas porque, desencantados, a idéia de nos encantarmos com o que quer que seja se tornou extremamente aborrecida. Quem se diz encantado por ter conhecido outra pessoa corre o risco de parecer antiquado. E, a não ser que admita que esse encantamento contém em si uma boa dose de desencanto, correrá também o risco de dar a entender, no instante do cumprimento, que está à espera das maiores decepções – quem sabe até preparado para elas ou a desejar que aconteçam. Só assim poderá escapar à suspeita – inevitável – de que, ao dizer-se encantado por conhecer alguém, acabou ultrapassando os limites da discrição e tomando o outro por aquilo que ele não é.

 

Dizer-se encantado, depois de séculos de ciência e de exorcismo dos velhos fantasmas da cultura, contém um grão de ironia e, suporíamos mesmo, de insensatez. O fato é que já não nos encantamos facilmente, nem mesmo quando lemos livros sobre bruxos ou histórias de mágicos. E, quando vamos ao cinema, estamos preparados para admitir que não seremos enganados, distinguindo, com olho excessivamente crítico, as trucagens e os malabarismos de cena que visam por certo a produzir em nós o efeito do encantamento. Como nos encantaríamos, se sabemos que, ali, o preço do susto ou do espanto é mais ou menos proporcional ao que pagamos para assistir à sessão?

 

Só alguém que fosse vítima de um exagerado otimismo poderia admitir que há aí qualquer coisa de genuíno. Acostumados ao desencanto diário (que se distingue – admitimos – do desencantamento, mas não entraremos em detalhes sobre tal questão), é provável que a idéia de que ainda podemos nos encantar nos encante mais do que o encantamento em si próprio. Porém causaria espécie ouvir alguém dizer que está encantado com a possibilidade de encantar-se e que o encantamento em si lhe é indiferente, até porque ainda não chegamos a esse grau de refinamento em nosso modo sutil de ver as coisas. Preferimos, na maioria das vezes, deduzir que quem se encanta ou se diz encantado está apenas mentindo, e pode ser que por esse motivo o emprego da palavra em ocasiões de encontro com desconhecidos tenha caído em desuso. Dizer-se encantado por conhecer outra pessoa ou por ter sido apresentado a ela é, por assim dizer, exagerar na cortesia, e então preferimos o uso de uma interjeição discreta e impessoal, pois dará a entender que ainda queremos ser honestos.

 

A origem do aborrecimento está em que nosso ceticismo tem raízes profundas. E nosso senso de verdade não vai ao extremo de nos forçar a dizer, ao conhecermos alguém, que nos sentimos desencantados com isso – o que seria mais verdadeiro, mas provavelmente soaria menos polido. As interjeições impessoais têm a vantagem de não nos comprometerem, ao mesmo tempo em que salvaguardam nossa consciência. Elevando de repente uma indispensável barreira de bom senso entre nós e o desconhecido, acabam por lisonjear a ambas as partes, pois é provável que do outro lado se esteja a pensar a mesma coisa. E só mesmo por exagero, por um excesso de honestidade que não esconde a descortesia, ousaríamos dizer que por amor do outro chegamos até o ponto de perdermos a cabeça ou a honestidade.

 

Com certeza, isso não implica que já não possamos crer genuinamente no encantamento. Mas crer é uma coisa e encantar-se de fato é outra, muito diferente. Quanto a este aspecto, pode ser que a contigüidade entre as duas idéias ou certa confusão que nos leva a tomar uma pela outra interfiram no caso, conduzindo muita gente a pensar que ao dizer-se encantada em conhecer os outros esteja sendo sincera ou que, pelo menos, esteja a dizer a verdade. A sinceridade, logo se vê, ainda teria de ser provada numa etapa posterior.

 

Cabe suspeitar que, fora de moda, ou irremediavelmente perdida numa região do passado onde as velharias não param de acumular-se, a expressão apenas pode despertar em nós um sentimento de inadequação. E essa inadequação tem a ver, antes de tudo, com o sentimento correlato de que já não nos deixamos encantar – de que isso é coisa de uma época remota.

 

jun./2007

 

(Leia também Adendos e Espinhos - livro de crônicas de Renato Suttana)

 

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