CONVICÇÃO E FETICHE
(Renato Suttana)
Chega um momento em que um autor que escreve uma
obra satírica – romance, poema, peça de teatro –
já não sabe mais se aquilo que escreve é uma
caricatura ou um retrato fiel da realidade.
Pensar, por exemplo, que os eleitores de São
Paulo – que fizeram imensas passeatas de
protesto contra a corrupção política nos dois
últimos anos – agora estão propensos (dizem as
pesquisas, mas estas também costumam mentir) a
votar em candidatos contra os quais existem
diversos processos na justiça parece um
contrassenso, mas tem sido a regra no Brasil.
Participar de passeatas, pelo visto, para tais
pessoas, é como ir a jogos de futebol ou a
espetáculos envolvendo atores e músicos famosos:
o indivíduo está ali mais para dizer que aprova
aquilo do que para garantir aos outros, em
público, que estaria disposto a viver ou morrer
por suas convicções. Ir a uma passeata ou
manifestação é, com efeito, para os que pensam
desse modo, expressão que só se usa no passado:
ter ido à manifestação, tal como se, ao
abandonarem o evento, a disposição que tinham
para defender e perseverar naquela causa se
desfizesse, gerando pouco ou nenhum impulso de
continuidade. Há em tudo isso uma tendência a
delegar autoridade e encargos, que se descreve
bem dizendo que o indivíduo que foi à passeata
se sente, mais ou menos, como alguém que “já fez
a sua parte” ou “deu o seu recado”. Cabe agora a
terceiros (sempre incógnitos nos jogos sociais)
realizar ou não aquilo pelo qual se manifestou.
O fato de terem usado camisetas da Seleção
Brasileira de Futebol como vestimenta padrão das
passeatas é muito revelador, e não apenas porque
o histórico de envolvimento em ilícitos da CBF
desautoriza esse simbolismo. No futebol, seja
vencendo ou perdendo, tudo o que temos a fazer
(e podemos fazer) é torcer, cabendo aos outros –
nossos representantes – levar a campo e a cabo
os nossos desejos. Vai nisto uma forte
reminiscência de velhas práticas de xamanismo,
baseadas amplamente no que os estudiosos chamam
de pensamento mágico, no qual o encargo de
realizar as vontades individuais é transferido
para outrem, que o executa com recurso a
intermediários ou fetiches. Se quero atingir uma
pessoa, se quero favorecê-la ou prejudicá-la –
diz essa forma de pensamento –, não a envolvo
diretamente em meus feitiços ou em minhas
práticas, mas me utilizo de representações – uma
mecha de cabelos, uma peça de roupa, uma
fotografia – que farão as vezes da pessoa no ato
mágico. Mais eficaz seria, talvez, tentar
prejudicá-la diretamente em seus negócios ou,
caso a intenção fosse de ajudá-la, dar a ela uma
parte da minha riqueza, o que, segundo os
modelos da modernidade, seria atitude mais
racional e, portanto, mais efetiva para atingir
o meu propósito. Mas não: a pessoa, na
impotência em que se vê mergulhada, devido à
imensa força do jogo social, prefere transferir
o encargo, confiando ao acaso e à sorte a
possibilidade de tornar concreto aquilo que seu
desejo solicita.
Isso não quer dizer, claro, que, embora a
manifestação seja vesga e só possa atingir o seu
alvo por vias indiretas, ela não contenha – como
se viu em São Paulo e em outras cidades do
Brasil – um certo elemento de efetividade.
Torna-se efetiva porque, embora politicamente
desorganizada (e motivada por aspirações de
sentido vago e impreciso até para os próprios
manifestantes), serve para mostrar às pessoas
que elas não estão sozinhas em suas
reivindicações e que, por mais solitárias e
individualistas que sejam, certos pensamentos e
certos conceitos sobre a realidade (mesmo que
falsos) as irmanam. Elas se apresentam ali como
representantes (multiplicados aos milhões) de
certos interesses, desejos e padrões de
pensamento que são, de algum modo, socialmente
relevantes; e esta é, portanto, a razão pela
qual esse tipo de manifestações coletivas (e
aqui me refiro apenas às manifestações de que os
eventos recentes são exemplos maiores) se torna
atraente.
Por outro lado, as passeatas são facilmente
cooptáveis, desde que, não oferecendo
resistência a quem realmente tem o poder de
decisão, podem ser usadas para referendar
escolhas e oferecer justificativas – como se viu
há pouco no processo de cassação do mandato
presidencial, em que uma suposta vontade popular
foi invocada para justificar um processo
político e jurídico (de quebra da ordem
institucional) cuja legalidade tem sido
contestada por muitos. De certo modo, as
manifestações continham um elemento de apoio ao
processo, embora não se possa dizer que
implicassem apoio ao que veio em seguida. Isto
é, não de pode dizer que os manifestantes,
quando foram às ruas, estavam a pedir pelos
diversos desmandos que o governos usurpador vem
cometendo e pelos evidentes prejuízos que sua
falta de planejamento, sua subserviência a
interesses privados ou internacionais, sua
indiferença à opinião das forças opositoras
(apoiada por intelectuais, juristas, jornalistas
e artistas de renome) trarão para a economia
brasileira.
Tais são as consequências do conceito “mágico”
da realidade: mais cedo ou mais tarde os desejos
se realizam, e já sabia o velho Fausto que o
preço pode ser alto. Mas podemos afirmar, de
fato, que as pessoas não queriam ou não tinham
consciência de que aquilo que estava em véspera
de acontecer, caso a deposição da presidenta se
efetivasse, podia não corresponder ao sentido de
suas demandas? Há quem diga que o brasileiro
atual, no seu pacto com Mefistófeles, rasurou o
vocábulo democracia do seu dicionário e escreveu
por cima dele a palavra hipocrisia. Para se ter
uma ideia, o atual prefeito de São Paulo, que
concorre à reeleição, tem sido reconhecido
nacional e internacionalmente como um dos
melhores prefeitos de grandes cidades do mundo.
Não é minha intenção fazer propaganda desse
candidato, mas sei que seu governo foi marcado
por avanços importantes, tais como investimentos
em educação, melhorias no transporte público e
na mobilidade urbana da capital paulista e, por
mais que enfrente oposição por parte da mídia
comprometida com outros candidatos, não há
notícias de escândalos envolvendo a sua
administração. Tudo isso deveria servir, na
ausência de indícios contrários, como prova de
que ele é, de fato, um bom candidato à
prefeitura da cidade; mas o que se verifica é
que – a darmos ouvidos às pesquisas (que
evidentemente podem ser falsas) – outros
candidatos, com o péssimo currículo que têm,
estão em melhor situação do que ele na corrida
pelo cargo. Faz sentido? Existe racionalidade em
pensar que o mesmo povo que saiu às ruas
bradando contra a corrupção e o mau uso do
dinheiro público rejeitará, para assumir a
prefeitura, o candidato que melhor
satisfaz as suas reivindicações?
Ou o pensamento mágico deveria ser rejeitado e
combatido com todas as forças, caso tivéssemos,
mesmo, qualquer compromisso com a realidade e a
verdade da existência a que estamos presos e da
qual não podemos fugir?
26-9-2016
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