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CEGUEIRA ACADÊMICA*
(Renato Suttana)
Qualquer um que tenha alguma experiência
com pesquisa acadêmica deverá ter experimentado, pelo menos uma vez,
a impressão de que produzir conhecimento – conforme a
peculiar expressão utilizada pelas agências de fomento – não é
exatamente produzir novidade e, menos ainda, produzir alguma coisa
que interessa aos ouvidos alheios. Não faz muito, tive
oportunidade de apresentar, num congresso em Ouro Preto, uma
comunicação cujo tema era a obra da escritora paulista Hilda Hilst.
Apresentei-a para uma audiência de cinco estudantes de graduação que por acaso
não conheciam nada da dessa escritora. Evidentemente a comunicação, que
pressupunha, como requisito para ser compreendida, da parte dos
ouvintes um conhecimento prévio da obra de Hilda Hilst, não pôde acontecer
conforme a planejei. Percebendo que pouco
adiantaria discorrer sobre determinado aspecto dessa obra diante de
pessoas que sequer tinham ouvido falar dela, fui obrigado a mudar de
estratégia. Abandonei o tema que me propusera a desenvolver e passei a fazer uma apresentação mais
didática dos escritos da
autora, discorrendo sobre os títulos e o conteúdo de seus livros em
detrimento do comentário que tinha a fazer sobre eles. De certo modo, se o objetivo dos
congressos é, de fato, auxiliar na disseminação do conhecimento e
criar oportunidades de compartilhá-lo, minha tarefa se cumpriu ali,
pois algum serviço prestei às estudantes. Entretanto certo
sentimento de frustração não pôde ser evitado, já que, para fazer o
papel de propagandista da autora ou para falar de assuntos que
poderiam ser facilmente encontrados em orelhas de livros ou na
Internet, eu não precisaria ter ido a Ouro Preto.
A própria expressão que se usa hoje em
dia para designar o tipo de trabalho que se pode realizar no campo
da pesquisa em ambientes acadêmicos – produção de
conhecimento
(ou, pior, produção intelectual) – já denuncia o estado
de coisas a que quero aludir. Uma vez que o saber se torna cada vez
mais passível de quantificação e uma vez que o número tende a
dominar todos os setores da vida profissional (quantidade de dias
trabalhados, quantidade de escritos publicados, quantidade de
eventos freqüentados), não há senão que esperar a frustração. Tendo
a contabilidade invadido todos os recessos da vida mental, e
esforçando-se cada indivíduo para modelar sua carreira e conduzir
suas ações segundo os parâmetros da numerologia dos currículos,
seria difícil esperar que do automatismo – e das esperanças que se
depositam nele – surgisse algo menos que uma monstruosidade.
Seqüestrados, subjugados, submetidos por todos os lados pela lógica
da quantidade, saímos a campo para conquistar um espaço, e
aquilo que conquistamos não vem a ser um retrato do que somos
realmente, mas uma prova de que, de alguma maneira, descobrimos um
modo de lidar com a situação e principalmente de fazê-la trabalhar a
nosso favor. E, se no âmbito das compensações imediatas (sejam elas
de caráter moral ou material) nos sentimos pagos e realizados, isso
nada tem a ver com a idéia de que os nossos atos se tornaram
projeções reais de um modo de ser que, fomentado pela academia,
teria atingido uma consistência qualquer no fluxo do tempo e das
coisas. Pelo contrário: é apenas prova de que ainda estamos longe da
verdade e que há muito por fazer, só não havendo – desde que foi
aberto o dique da numerologia – limites para a insatisfação.
Uma das conseqüências da invasão da
academia pelos números é – conforme o episódio do congresso me
ensinou – o que se poderia chamar de uma perda do senso de
proporções e da capacidade de avaliação fidedigna das coisas. Numa
época em que a produção de mercadorias tende a crescer
vertiginosamente e em que não há nada a que não se possa aplicar um
preço, a universidade e tudo o que se liga a ela não pode ficar
inerte. Aos poucos, aqueles que participam dela imediatamente –
professores, alunos, funcionários – assistem à sua própria
transformação em peças de uma burocracia que os leva para todos os
lados sem que possam, como indivíduos, impor qualquer direção ao seu
destino. E é isso que devemos considerar como sendo o coroamento de
séculos de esforços e de efetiva produção de saber, isto é,
uma grande máquina bem azeitada que funciona à revelia de todos e em
cujo funcionamento depositamos nossa confiança, na expectativa de
que por si só nos levará a bom porto.
Por certo, nunca se pensou tanto, se
ensinou tanto e se escreveu (e publicou) tanto como na época atual,
mas esse pensar, esse ensinar e esse escrever parecem ter gerado
também um volume considerável de produções excrescentes. Tal como
manchas de musgo na superfície de um muro denunciam a presença de
umidade, seria interessante perguntar também se as excrescências
indicam alguma coisa ou se são apenas um subproduto indesejável.
Seria justo pensar que no estágio atual da produção do saber um
acentuado processo de fragmentação e de conversão do conhecimento em
mercadoria vendável se encontra em andamento, e num sentido muito
mais profundo do que aquele que há em dizer que a universidade
apenas espelha (e reproduz) em seu interior o processo mais amplo da
vida no mundo. Se os professores (e demais participantes do teatro
acadêmico) estão aprendendo a cada dia a se tornar competidores e se
estão descobrindo que é preciso, sobretudo, de qualquer maneira,
“derrubar a concorrência”, uma das causas está no modo como a vida
universitária se configura atualmente. E, se não basta apenas dizer
que somos levados de roldão, isso também não nos isenta da
responsabilidade – mas é exatamente a capacidade de arbítrio do
indivíduo que tem sido, pouco a pouco, solapada pelas estruturas do
anonimato e do número.
Aquilo que as produções excrescentes
significam não poderia ser descrito apenas como sendo o sentido
mesmo de existir da academia, desde que as admitimos como
excrescências e não como o objetivo principal da produção. Mas, se
não podemos dizer que elas não têm um sentido, precisamos concordar
que assim mesmo elas apontam para o processo mais amplo de que são
apenas o sintoma, participando dele de uma maneira mais profunda do
que tendemos a crer. Concorrem, por assim dizer, com (qualquer que
seja ele) o objetivo final do processo ou caminham ao seu lado. E
então não seria incorreto dizer que, mesmo excrescentes, elas têm
afinal alguma utilidade. Muita gente hesitaria em concordar que
determinadas pesquisas atuais, incluindo-se teses e trabalhos que
são publicados cotidianamente, possam ter qualquer serventia. Quem
nunca encontrou numa revista algum artigo sobre, digamos, o emprego
da palavra pedra na poesia de Carlos Drummond de Andrade, ou
do termo travessia e equivalentes na obra de João Guimarães
Rosa, ou sobre o tema da intertextualidade e seus correlatos
nos escritos de fulano? Alguém poderia se lançar de ânimo puro à
pesquisa do sentido da palavra seda na poesia de João Cabral
de Melo Neto, sem se dar conta de que o mesmo estudo que se escreve
sobre tal palavra poderia ser escrito também sobre as palavras
lâmina, sol e mar nessa poesia, condenando-se
assim, desde o início, a não chegar a lugar nenhum. Evidentemente
não estou a negar que, estudando esses temas, se possa obter, apesar
de tudo, alguma relevância. Mas essa relevância dependerá muito mais
do talento individual de quem se arrisque ao empreendimento do que
das condições que por acaso o propiciem, sejam elas quais forem. A
academia – que leva fulano ou sicrano a tomar esta ou aquela
iniciativa e a se comportar desta ou daquela maneira diante de sua
própria pretensão ao conhecimento – se encarrega ela mesma de
abençoar ou de descartar o que não faz sentido ou foi produzido
apenas para fins protocolares, e os periódicos estão aí para
comprová-lo. A construção da carreira, porém, muito mais sólida do
que as bases em que se fundamenta, não se comporta do mesmo modo,
sendo preciso, em geral, um golpe de vista muito mais apurado para
se perceber esse fato – e mesmo assim com o risco de que só muito
tardiamente venhamos a percebê-lo.
É claro que, se as coisas ficassem
nisso, não teríamos tanto do que nos queixar, pois, depois de
produzido o perfunctório, o tempo pode muito bem se encarregar de
fazer a triagem. As complicações começam quando do terra-a-terra das
ilusões acadêmicas básicas – a idéia de que a construção do
currículo pessoal patenteia um real mérito do indivíduo e não a sua
simples ambição de ostentar um mérito que futuramente poderia
converter-se em vantagens de carreira – se passa para o jogo mais
agressivo da competição profissional, a ocorrer no ambiente imediato
de trabalho. Neste ponto, a cegueira acadêmica atinge o seu extremo,
impossibilitando-nos de enxergar o momento em que os vários planos –
ambição profissional, mérito intelectual, relevância da atuação
acadêmica – se confundiram. Chamo de cegueira o fato de que a
academia, a viver de uma atividade mental incessante, se torne
muitas vezes no ambiente menos propício ao exercício de qualquer
atividade intelectual que mereça esse nome, ou que se configure como
o ambiente onde a última coisa que se deve fazer é pensar.
Schopenhauer escreveu sobre isso com memorável azedume. Ao assinalar
que, no campo da filosofia, os pensadores verdadeiros “têm pelo
menos uma opinião decisiva [...] sobre cada problema da vida e do
mundo, e assim não precisam indenizar ninguém com frases vazias”,
afirmou que os filósofos de cátedra, “que sempre são vistos
comparando e ponderando opiniões alheias, em vez de se ocupar com as
próprias coisas”, agem como se falassem “de países longínquos, a
respeito dos quais se teria de comparar criticamente os relatos dos
poucos viajantes que lá estiveram, mas não do mundo efetivo
estendido e posto claramente diante deles”. Poderia ser argüido que
o depoimento de Schopenhauer não tem validade neste ponto, pois é
perpassado de um ressentimento pessoal que compromete a objetividade
de sua avaliação. Mas como negar que, qualquer que seja a área, em
sua ambição de produzir a inteligência, a academia se tenha
tornado também num ambiente propício à gestação da vaidade, do
sentimento de competição e, sobretudo, numa incansável máquina de
alentar o mau-caratismo (este último por sua vez muito pouco
disposto a ser corrigido pela simples listagem de títulos ou pela
exposição na Internet de longos currículos que impressionam muito
mais pelo fato de serem longos do que pelo que quer que tenham a
dizer sobre os méritos efetivos de quem se acha neles retratado)?
Não há negar que as exceções são muitas.
E não queremos fazer julgamentos de ordem moral, pelo menos antes de
termos analisado os fatos. Se pudermos nos contentar com a idéia de
que a cegueira acadêmica, conduzindo à perda do senso de proporção,
ajuda a acentuar também o sentimento de impotência individual,
devemos crer que um de seus efeitos é o surgimento de nichos, de
verdadeiras rachaduras no tecido burocrático onde cada um se ajeita
como pode. É no espaço da mais extrema racionalidade que os
procedimentos de acomodação mais parecem pulular. Também não se
trata de dizer que tudo seja acomodação. Entretanto quando, digamos,
um professor se vale de seu título para impor certo tipo de
autoridade a seus alunos (diferente, pois, da autoridade que deveria
emanar naturalmente da relação que se estabelece entre educador e
educando em sala de aula) ou para “aterrorizar” os seus pares ou os
próprios agentes da rotina escolar a partir do suposto prestígio que
lhe concede a detenção do saber, fechando as portas ao diálogo, ou
quando se convence de que o título o torna imune a qualquer crítica
ao seu trabalho, não podemos pensar de outra forma.
Recentemente me dei ao (enorme) trabalho
de participar de um concurso para professor adjunto na área de
literatura promovido por uma universidade pública brasileira. Dentre
os dezenove pontos da ementa, tive de ocupar-me, durante quase dois
meses, de estudos que incluíam, entre outros não menos exaustivos,
os seguintes assuntos (cada um deles vasto o suficiente para em si
mesmo justificar todo um procedimento de concurso): gêneros
literários: linhas de continuidade e ruptura; mimesis e
verossimilhança na narrativa literária moderna; formalismo russo: a
noção de estranhamento; New Criticism: os princípios de
interpretação do poema; estruturalismo: a imanência do texto
literário; prosa e poesia no romance de José de Alencar; a questão
da onisciência no romance de Eça de Queirós; a ambigüidade do
narrador no romance de Machado de Assis; a poesia do cotidiano de
Manuel Bandeira; a heteronímia poética de Fernando Pessoa; lirismo,
ironia e reflexão na poesia de Carlos Drummond de Andrade; forma e
lirismo em João Cabral de Melo Neto; universalidade e regionalismo
no romance de Graciliano Ramos; a moderna narrativa psicológica de
Clarice Lispector; epos e romance em Grande sertão:
veredas de João Guimarães Rosa. Seria, pois, de perguntar se a
uma banca avaliadora composta apenas de três membros – conforme
observei durante as provas – era possível tamanho domínio de saber
ou, pelo menos, um domínio satisfatório de todos esses setores dos
estudos literários, considerando-se que as provas seriam aplicadas a
candidatos que, supostamente, poderiam ter o mesmo grau (ou pouco
menos) de formação acadêmica que os avaliadores. Não se trata de
julgar a capacidade ou incapacidade dos avaliadores para esse
empreendimento, mas não posso deixar de me perguntar se não estaria
em curso ali também um evidente processo de acomodação às
circunstâncias, no qual, sendo impossível sequer reconhecer o tipo
(e o grau) de conhecimento que se queria avaliar, o carro teria de
continuar em movimento assim mesmo, com todos os obstáculos do
percurso, porque no final sempre se chega a algum lugar? Mas não é
exatamente aí que o edifício da racionalidade desmorona,
convertendo-se em solo fértil para o afloramento das injustiças, do
nivelamento por baixo e das adequações nem sempre claras às
circunstâncias?
É de supor que, em situações como essas
(do concurso e outras), dificilmente se poderia avaliar com precisão
um mérito efetivo, qualquer que fosse ele. E, no entanto, não há
nada mais justo do que a própria idéia do concurso público, regida
ela mesma por rigorosas legislações e metodologias, as quais – num
lance de prestidigitação característico da legalidade contemporânea
– estão sempre abertas ao conhecimento de todos. Acontece que,
quando a legalidade se converte em retórica, tanto pode se tornar
vítima (ou refém) de si mesma quanto naufragar num verbalismo sem
objeto, com as acomodações a bater à porta solicitando entrada. Num
complexo de situações em que as questões éticas não podem ser
debatidas, porque simplesmente não existem bases para que o sejam, a
primeira solução é recorrer aos regulamentos e às normas, mas os
regulamentos e as normas já fracassaram há muito tempo. Onde então a
possibilidade do diálogo fundado em premissas que sejam realmente
do conhecimento das partes? Não há dúvida de que a academia tem
aspirado a isso, mas, uma vez entravada, uma vez enleada em mil
obstáculos que brotam da própria tentativa de solucioná-los, só pode
assistir à materialização de seus piores pesadelos – ela que, como
ninguém mais, deveria estar aparelhada para prevê-los ou para nos
ensinar a contorná-los.
Nos dias de hoje, os esforços de
acomodação parecem ter invadido todos os recessos da vida acadêmica.
Passando pelo estudante que plagia um texto da Internet e o
encaminha ao professor como se se tratasse de produção original,
pelas más condições de trabalho oferecidas aos professores
(geralmente chamados “substitutos” ou “colaboradores”) que trabalham
em instituições públicas sem pertencerem ao quadro efetivo de
docentes, pelas regras oficiais de formatação de trabalhos em
publicações que mudam constantemente porque isso estimula a venda de
manuais, pelo pós-graduando que simplesmente “encomenda” uma tese a
um profissional “especializado” em tais serviços, o que se vê é uma
busca generalizada de sobrevivência a qualquer custo, e não tanto
porque se optou pela lei do menor esforço, mas porque o estado de
coisas é propício a tais soluções. Mesmo no âmbito da legislação é
possível detectar o momento em que a solução se reverte em problema,
como no caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais, redigidos num
belo espírito de orientação humanista e emancipatória, mas sem que
se levem em conta as reais condições de produção sobre as quais o
ensino assenta na sociedade atual, a proibir qualquer tentativa de
emancipação do indivíduo. Pode-se legislar no vazio ou fazer com que
a grande máquina que é o ensino, profundamente comprometida com a
crua realidade do mundo moderno, funcione a contra-corrente, levando
à emancipação sem se emancipar ela mesma frente ao que a determina?
Ignorar esses fatos é ignorar essa realidade. E então se corre o
risco – conforme vem acontecendo nos últimos anos com o sistema de
educação brasileira – de mergulhar mais fundo na enchente, sem
qualquer perspectiva de emergir dela ou de estancá-la a curto prazo.
A sensação de que produzir
conhecimento não se dirige hoje a ninguém pode ser apenas um efeito,
e qualquer um sabe que não basta combater o sintoma para se atingir
a raiz da doença. Ora, o termo produzir, no caso, deveria
indicar, pelo menos, alguma forma de integração a qualquer coisa de
mais amplo, configurada no sistema de ensino atual, implicando
também a consciência que temos dessa integração. Mas às vezes nem
isso acontece, como o demonstrou minha experiência do congresso em
Ouro Preto (e outras experiências do mesmo teor) – uma gota de água,
reconheço, num vasto oceano. É possível falar em reforma
universitária, conforme a pauta contemporânea, sem se colocar em
questão a idéia mesma de sistema de ensino ou sistema de produção de
saber que fundamenta, de um modo ou de outro, e portanto dirige
tal reforma? A pergunta, com o que tem de urgente e imperiosa,
deveria, senão trazer pesadelos, ao menos tirar o sono daqueles que
se preocupam com o assunto.
* Publicado originalmente em
Comunicações - Revista do Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Metodista de Piracicaba, v. 12, n. 1, jun. 2005.
p.114-119.
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