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Jardim de infância (Holney Mendes)

 

CARTA A UMA ESTUDANTE DE LITERATURA

(a propósito de um questionário)

 

(Renato Suttana)

 

 

Prezada ***:

 

Primeiramente, peço-lhe paciência quanto à demora em lhe responder. Nos últimos dias estive envolvido com uma série de ocupações que não me permitiram um momento de folga para me dedicar ao seu questionário. Tenho-o agora sob os olhos e, ainda sem a disponibilidade de tempo desejável para empreender esta resposta de modo satisfatório, aventuro-me a ela, desde já me escusando se por acaso disser alguma coisa que lhe soe obscura ou insuficientemente elaborada.

 

Quanto às ementas das disciplinas, obtive-as também só recentemente, devido a certo atraso por parte da Secretaria do Curso de Letras em providenciá-las para mim, conforme solicitei há algum tempo. E, ainda assim, as que obtive estão ligadas à nova grade curricular (acho que já lhe falei sobre isso), não dizendo respeito senão parcialmente ao que tem sido feito no curso até agora (refiro-me ao campus de G. pois não estou certo quanto ao de I.). Isso quer dizer que a experiência quanto ao que se pretende fazer para os próximos anos está em aberto, existindo, inclusive, a necessidade de se elaborar os programas da nova grade (você verificará que apenas a disciplina de Literatura Brasileira I possui programa elaborado, por ter sido a primeira a ser aplicada neste ano), no que diz respeito à Literatura Brasileira II e à III. Explico-me. Essa grade curricular, até a última alteração (acontecida em 2002), continha aquelas disciplinas de que lhe falei anteriormente (Conto Brasileiro, Poesia Brasileira e Romance Brasileiro). Muito provavelmente, os programas das mesmas serão apenas reformulados (o que quer dizer: alguns aspectos mais relevantes serão preservados, tais como a distribuição do assunto por gêneros, conforme se lê no ementário), para se adaptarem às novas ementas, mas é consenso entre os professores de literatura do Departamento manter uma estrutura curricular mais ou menos parecida com a antiga, ou seja: os conteúdos tradicionais de “formação” da literatura brasileira e temas congêneres, mais o estudo do conto (o que pode parecer arbitrário, mas ainda não tivemos tempo de discutir e encontrar uma solução para o problema), enfeixados em Lit. Bras. I; a poesia estudada em II; e o romance em III. Continua a prevalecer, portanto, como se pode ver, a distribuição segundo os gêneros literários – distribuição sobre a qual poderíamos conversar mais longamente, mas que, acredito, não vem ao caso discutir agora.

 

O objetivo desta carta é contribuir com a pesquisa que você tem feito, respondendo na medida do possível às questões propostas em seu formulário. Mas aqui é preciso que eu me desvie do esperado e tome um caminho próprio de pensamento, começando por refletir não tanto sobre os temas ou o tipo de informações que você intenta obter mediante o uso do questionário, mas sobre a maneira mesma como você o formulou. Primeiramente, eu teria de dizer (com toda a franqueza) que, se você quiser aceitar minha contribuição, terá de aceitar também minha recusa em responder ao questionário. Explico-me: não se trata de rejeitar a sua pesquisa ou o modo como ela é feita, mas de tentar contribuir com ela de outra maneira, partindo de uma experiência minha com o estudo e o ensino da literatura que, se eu tentasse circunscrevê-la aos limites de um formulário, estou certo de que se perderia irremediavelmente. (Pelo menos, estou certo de que sofreria uma defasagem insanável, pois – se você me permite a expressão –, como um “macaco velho” demais e já um tanto calejado não tanto no ensino da literatura – campo no qual minha experiência não é das mais extensas –, mas no estudo e na vivência da mesma, estou certo de que não poderia tentar enquadrar essa experiência em itens de formulário sem o sentimento de estar me enganando a mim mesmo. Trata-se de uma formalidade? Podemos fugir à formalidade? Eis as perguntas que me faço – e para as quais, antecipadamente, peço a sua compreensão.) E o mesmo, acredito, acontecerá com outros profissionais a quem você o dirigir: eles por certo se sentirão como que “constrangidos” diante dessas perguntas – desses itens de perguntas –, e não sei se pelo fato de que sejam feitas de um modo tão “brusco”, tão “direcionado” (perdoe-me também estas expressões), mas nada me tira da cabeça a ideia de que, principalmente, pela razão de que ali se verão, de um modo algo ostensivo, forçados a enquadrar-se numa “moldura” de conceitos que (se não posso falar pelos outros, falarei pelo menos em meu próprio nome) nem sempre será a que eles adotam. Você o considera justo em relação aos entrevistados? E como analisará os resultados, sabendo que sua perspectiva teórica interferirá de algum modo – e não há de ser positivamente, pois ela interfere desde já – sobre as respostas que obtiver?

 

Você talvez argumentará que não é possível conduzir uma pesquisa desse teor sem que existam, a fundamentá-la, alguns pressupostos de teoria e método claramente definidos, e nisso terei de concordar com você. Mas me pergunto ainda se, ao indagar, por exemplo, a um de seus entrevistados, sobre o que é “cânone” literário, você não estará, até certo ponto, intimidando-o, obrigando-o a tomar a sério algo que para ele poderá aparecer apenas como mais um ponto de vista entre outros (no caos dos pontos de vista possíveis) ou, por outros termos, como uma ilusão da teoria que você, na condição de pesquisadora, está a tomar demasiadamente a sério, enquanto para ele a coisa poderá não ter sentido nenhum (estou dizendo isso com a maior honestidade, pois neste estágio de elaboração da pesquisa não podemos nos dar ao luxo de escamotear certas dúvidas). Ora, o que é “cânone” literário e como podemos refletir a sério sobre essa palavra que, hoje em dia, se emprega de um modo o seu tanto ou quanto ostensivo e indiscriminado nos ambientes acadêmicos? Pelo que sei (e talvez com isso esteja a responder a uma de suas perguntas), a acepção que se dá ao termo atualmente, no campo dos estudos literários, é ainda uma novidade que sequer foi notada pelos dicionários. (Não seriam, evidentemente, os dicionários que iriam dar o aval último a uma expressão, mas você compreenderá o que quero dizer.) Você perguntaria: e vem me falar de dicionários? Não são os dicionários também uma outra forma de “canonizar”? Bem, então citemos um deles (o Dicionário Aurélio, que tenho em meu computador em versão eletrônica) e vejamos o que se diz ali a esse respeito:

 

Verbete: cânon

 

1. Regra geral de onde se inferem regras especiais.

2. Relação, catálogo, tabela.

3. Padrão, modelo, norma, regra: Criatura exótica, age sempre fora dos cânones habituais.

4. Arquit. Qualquer das regras da composição (como a simetria, p. ex.), ou dos modelos plásticos que os acadêmicos queriam impor como fontes exclusivas, suficientes e definitivas, de beleza arquitetônica e valor artístico.

5. Lit. Parte central da missa católica.

6. Mús. Cânone (2).

7. Rel. Preceito de direito eclesiástico: “Segundo os cânones, o suicídio é sempre um atentado ao criador” (Machado de Assis).

8. Rel. Decisão de concílio.

9. Rel. Lista de santos canonizados pela Igreja.

10. Rel. Fórmula de orações.

11. Rel. Lista autêntica dos livros considerados como inspirados por israelitas, católicos e protestantes.

 

Fiz questão de citar literalmente e, mesmo que você não queira discutir questões relativas a dicionários, lhe chamarei a atenção para um aspecto. A palavra “cânone”, pelo que eu entendo dela, implica sempre um sujeito que “canoniza” – algum tipo de autoridade que dá o seu referendo e, a partir de um direito que se outorga de referendar (questionemos, então, o direito de referendar), institui a norma, a regra ou a lista do que se deve acolher e valorizar em determinadas situações da vida social: regra geral (acepção 1), relação, catálogo, tabela (acepção 2), padrão, modelo, norma, regra (acepção 3), e assim por diante. No que diz respeito às regras de comportamento (acepção 3), poderíamos dizer que o cânone é uma elaboração mais ou menos anônima, mais ou menos coletiva, cuja autoria não podemos determinar, porquanto não se pode chamar pelos nomes as autoridades que legislam sobre comportamentos e maneiras de ser nesse setor. Mas aqui não estaria em questão o uso metafórico do termo, que se tomado em sentido mais estrito nos conduziria apenas a duas acepções centrais, ou seja: o cânone compreendido como uma lista de coisas (livros, textos, modelos) referendada por uma autoridade (uma associação de técnicos, por exemplo), e o cânone no sentido religioso da palavra, que tem a ver com o cânone da missa, o cânone dos textos sagrados, o panteão dos santos que serão venerados nos altares e situações congêneres? Onde então o cânone da literatura? Que tipo de autoridade dá o seu referendo – caso queiramos levar em conta esse conceito – ao cânone e que tipo de coisas serão listadas nele (autores, obras, estilos, tradições), caso queiramos listá-las? Não seria, nesta acepção – que se deixa trair, repito, por uma conotação metafórica qualquer nunca suficientemente teorizada – um termo impreciso demais para que o utilizemos como base de apoio numa pesquisa por cuja objetividade seria necessário velar?

 

Compreenda-me: não é que eu tenha objeções contra quem acredita em “cânone” ou pretenda empreender estudos a respeito dele. Minhas dúvidas dizem respeito não tanto à sua opção teórica particular, mas ao modo como tal opção está (no caso do formulário) a ser proposta como um tipo qualquer de verdade ou de unanimidade a pessoas que, como eu, podem, em maior ou menor grau, tomá-la como uma outra coisa que não exatamente uma verdade (ou sequer um ponto de vista viável). Neste caso, o que fazer? Há um conflito, portanto, entre a pergunta que você me faz e o tipo de reposta que posso vir a lhe dar – conflito que, no meu entender, perpassa toda a estrutura do seu formulário. Para se ter uma ideia, logo no início, você enuncia da seguinte maneira o objetivo da pesquisa: “Coletar dados para apresentar um diagnóstico sobre a concepção de cânone e o ensino de literatura brasileira, expressos nos currículos e práticas de alguns cursos de Letras do PR”. Não se trata de uma mera postulação, isto é, de uma pressuposição que, se pode vir a satisfazer as pretensões de objetividade e ao pragmatismo característico das agências de fomento ou dos organizadores de cursos de pós-graduação, do ponto de vista dos resultados nada garante, desde que, ao tentar formular uma espécie (qualquer que seja ela) de “diagnóstico” sobre a “concepção de cânone e o ensino de literatura brasileira” conforme aparecem nos currículos e práticas de cursos de Letras do Estado, você poderia muito bem chegar a resultados que simplesmente invalidassem essas premissas? Vê-se, pois, aqui também, que a ideia de cânone é tomada, mais uma vez, demasiadamente a sério. Que garantias você tem de que, orientada por ela, chegará aos objetivos que se propõe – e tem mesmo alguma esperança de que esses objetivos lhe trarão, no final, algo mais do que uma simples lista de autores e obras, algo mais, portanto, do que a possibilidade de enunciar a pergunta: “Por que esses autores e por que essas obras, quando outros autores e outras obras poderiam ser incluídos e estudados nos currículos?” Talvez se tratasse de ir além da pergunta. E existiria a esperança de que, ao refletir sobre semelhante gênero de coisas, você chegasse, de fato, a refletir sobre a literatura (seja ela o que for) de uma maneira mais profunda e mais séria, sem derivar para assuntos que dizem respeito muito mais a autoridades e à burocracia escolar do que a um quê de mais essencial que deveria presidir à elaboração de qualquer pergunta e de qualquer estudo sobre a literatura.

 

Você poderia arguir que esses aspectos – autoridades, burocracia escolar, nomes e sobrenomes – não podem ser alijados do estudo da literatura, pois fazem parte dele de alguma forma, e que o que está em questão é saber até que ponto nossas ideias sobre literatura, nossa maneira de ver e mesmo de estudar a literatura não são mais do que respostas a pressões exercidas por tais instâncias – pressões sem as quais só por ingenuidade suporemos que a literatura possa ser estudada (ou sequer mencionada) em qualquer ambiente que seja. Mas é neste ponto que eu avanço um segundo passo em minha reflexão sobre o seu questionário, sobre o qual gostaria de discorrer mais pormenorizadamente. Um dos assuntos sobre os quais você espera que seus entrevistados falem está associado à ideia mesma de literatura e se enuncia desta maneira: “conceitue literatura” (item 3.1). Evidentemente, você deve estar mais ou menos cônscia de que nenhum professor que tenha certa formação ou, quando menos, certo convívio com questões de teoria literária e que já se tenha engalfinhado com a pergunta quanto ao que da literatura (anterior ao como da didática) não se arriscaria a responder à solicitação sem antes fazer um bom exame de consciência ou uma boa pesquisa a respeito. Seria muito esperar que se aventurasse a esboçar uma conceituação desse teor, que coubesse no limite das vinte e cinco linhas impostas pelo formulário (e eu me dispenso aqui de tecer considerações teóricas não só sobre tal tentativa, como também sobre o objeto que você pede que o entrevistado conceitue) e, mesmo que se abalançasse a tanto, sem o fazer com suficiente dose de ingenuidade ou por simples espírito de solidariedade para com a sua pesquisa. E aí é possível indagar: essa pergunta está bem formulada? Ela não conduz a uma exorbitância ou a uma imprecisão (que tipo de julgamento você fará, caso obtenha “conceitos” de literatura expressos nesse limite de linhas?) cujo efeito menor não seria por certo apenas distorcer os resultados e comprometer a objetividade que você pretende dar à sua pesquisa (pretensão cujo indício é, certamente, o próprio formulário)? Se eu respondesse a você que literatura é uma flor azul que só se abre no Himalaia num determinado período do ano ou que é um “voar fora da asa” (Manoel de Barros), ou que a poesia é uma criatura que “me abraça detrás do muro, levanta / a saia pra eu ver, amorosa e doida” (Adélia Prado), o que você faria com tais respostas? Você as consideraria como sendo da ordem da “poesia” ou da “ficção” ou diria que o padrão das mesmas não se enquadra no padrão da pesquisa, tendo se feito o entrevistado de engraçadinho, enunciando uma espécie de nonsense que o livrou de responder seriamente a uma pergunta a que, no mínimo, não saberia responder, quando deveria ter respondido mais séria e objetivamente? Mas, neste caso, seria preciso admitir que responder “objetivamente” à pergunta ou ter um “conceito” claro de literatura em mente para enunciar é tão mais importante do que simplesmente dizer: “Literatura para mim é o que eu li em livros como os de Manuel Bandeira, Luís de Camões, Fernando Pessoa, Graciliano Ramos, Stephen King, Carlo Emilio Gadda, Paulo Coelho, que sei eu?” E a partir de que ponto de vista o faremos?

 

Considero que esse é o item, por assim dizer, mais “injusto” de seu questionário, e espero ser entendido quando uso tal palavra. Pode ser que a um olho menos desconfiado as coisas parecessem bem ordenadas: primeiro, dirigimos uma pergunta ao interlocutor acerca do objeto, tomando-o de maneira global; em seguida, conduzimos a conversa para o campo teórico pretendido, como se tudo estivesse resolvido, sem nos darmos conta, no meu entender, dos problemas que essa atitude pode acarretar. Quando você me interroga, por exemplo, sobre o que penso ser a literatura (correndo assim o risco de receber qualquer resposta, mesmo as mais “estapafúrdias”), a pergunta que me vem é: que critérios (a não ser os seus próprios critérios de teoria) você poderá aplicar para aquilatar o teor e o sentido das respostas que obterá, senão critérios que sua própria pesquisa se impôs – e impôs a você (e que não são melhores nem piores do que quaisquer outros)? Com efeito, a pergunta retrocede sobre você mesma, como teorizadora, e a interpela diretamente, pois, antes que possamos fazer qualquer indagação acerca desse “objeto” (caso se trate mesmo de um objeto – o que não está garantido em nenhum ponto da pesquisa) –, precisamos ter dele uma ideia: precisamos tomá-lo como uma existência dotada de sentido, e só assim estaremos habilitados a medir, segundo os parâmetros que tal sentido (caso exista) nos forneça, o sentido daquilo que ouviremos dos outros (ou que atribuiremos ao que ouvirmos). A literatura para você é qualquer coisa que se constitui a partir de um “cânone” ou alguma coisa em cuja constituição a ideia de “cânone” tem um papel importante a exercer? Essa talvez seja a pergunta que devêssemos fazer antes de todas as outras. É ela que demonstra, segundo penso, o quanto uma investigação do gênero “pergunta-e-resposta” pode se afigurar “tendenciosa”, na medida em que o recurso ao formulário obriga o interpelado a trilhar um caminho predefinido – caminho que é o do entrevistador, mas que pode não ser o dele (interpelado) exatamente. (É mais ou menos o que acontece em certas entrevistas de televisão, em que os entrevistadores enunciam de antemão, nas perguntas que fazem, as respostas que pretendem ou esperam receber.) Não estou dizendo, é claro, que num sentido estrito sua pesquisa produza o efeito de uma intimidação ou que possa ser entendida desse modo; mas não posso me furtar a uma dúvida quanto aos parâmetros que você usará para interpretar as respostas; e esse é um problema com o qual você terá de se haver quando se lançar à redação do texto da tese.

 

A pergunta seguinte me parece mais razoável, pois aponta para certa consciência que os professores devem ter de sua atuação como divulgadores de “literatura” (embora não saibamos ainda o que seja isso no âmbito da própria pesquisa) em instituições escolares regulamentadas por legislações. Poderíamos, certamente, responder a ela com argumentos de teor humanista: a “literatura” ajuda a educar os homens, ou, como teria dito Terry Eagleton, ajuda a “formar homens melhores” para o que desejavelmente haveria de ser um mundo melhor. Acredito até que esse será o teor mais ou menos velado da maioria das respostas que você obterá, pois que outra certeza senão esta justifica a segurança com que (aparentemente) nos lançamos à tarefa de ensinar literatura ou que outra razão a justifica senão a consciência de que assim, de alguma maneira, estamos a contribuir com a construção desse (impensável) mundo melhor? Mas o caráter humanista do ensino da literatura, tal como a própria ideia de literatura, não está garantido de antemão – ou pelo menos admitamos que não o esteja – ou não está garantido até o ponto de podermos nos firmar nele para adquirirmos a confiança que gostaríamos de adquirir. De certo modo, seria mais razoável pensar que só ensinamos literatura na escola porque existe tal disciplina para ensinar, porque nos formamos em Letras numa universidade e recebemos um diploma que nos habilita a exercer tal função. Seria ilusório pensar que uma consciência mais profunda antecede a tarefa, sabendo-se que muita gente que conhece literatura (digamos, romancistas, contistas, poetas e críticos literários que não são professores), e às vezes muito melhor do que os próprios professores, jamais se preocupou com a conveniência ou a inconveniência de ensiná-la nas escolas. O que há, de fato, em minha opinião, é uma função disponível no universo das profissões, a anteceder qualquer consciência dessa função; e então, quando se pergunta: por que ensinar literatura nas escolas?, nos convencemos de que a resposta deve assumir um teor humanista. Depois, quando já estamos a exercer a função, nos convencemos mais ainda da necessidade de exercê-la – como se não fosse possível pensar uma escola em que não se ensina literatura ou como se, ao concebê-la, um vasto patrimônio da cultura se visse de repente comprometido ou dilapidado. (O risco de autoilusão aqui é evidente demais para que insistamos no assunto.) Tal círculo de ideias e expectativas não patenteia o sentido humanista que damos ao problema? Mas, se eu dissesse que não sei por que se deve ensinar literatura nas escolas fora das expectativas humanistas e humanizantes que temos em relação a esse ensinar ou que simplesmente não sei por que se deve ensinar literatura nas escolas (de minha parte, é bom que sempre haja literatura para ensinar, pois assim sempre terei meu emprego garantido, já que não sei ensinar outra coisa), de que maneira você interpretaria esta resposta? Você me consideraria inconsequente, incapaz de perceber a gravidade do problema e a seriedade com que a ideia de ensinar literatura deve ser encarada em se tratando de uma época como esta, em que certos valores humanos parecem ser dia a dia sobrepujados por conveniências de sentido técnico e tecnológico, que nada têm a ver com humanismo e emancipação humana?

 

A pergunta do item 3.4, em que se quer saber do entrevistado o que ele julga ser um “texto de qualidade”, me parece (se você me permite a liberdade) a pergunta culminante (e não, evidentemente, a mais importante) do conjunto, ou pelo menos a mais reveladora, mas é também – se me permite o termo – a mais “catastrófica”, não estivesse em sintonia com o todo do questionário, que no entanto conduz a ela de um modo quase automático. E é então que, ao tentar responder, retornaremos ao “cânone” e só poderemos dizer: um texto de qualidade é, para mim, um texto que aprendi a entender como sendo de qualidade ou um texto que julgo ser de qualidade (mas há pessoas que não pensam assim e simplesmente ensinam o que lhes mandam ensinar). Mas o que é texto no sentido próprio do termo e por que é que devemos compreender a literatura como sendo um ensino (ou uma experiência didática) de textos no ambiente escolar e não uma experiência que vai além do texto e do cânone? É possível pensar que ensinar literatura é muito mais do que escolher textos ou ensinar a interpretá-los na escola (universidades incluídas), isto é: que o “ensino” da literatura tem qualquer coisa de um rito social, do qual participamos sob a ilusão de que estamos a ensinar o modo como se faz isto ou aquilo, como se interpreta isto ou aquilo ou, piormente, como se deve interpretar isto ou aquilo? Se me recuso a responder a essa pergunta, posso agora me encaminhar em direção àquilo que tem sido meu intuito lhe dizer nesta mensagem desde o início e que servirá como uma conclusão para a mesma, mas também como um ponto de partida ou um tema de reflexão sobre o qual, conforme a sua disposição futura, poderemos depois conversar mais detidamente.

 

Minha opinião é esta: o esforço de pensar a literatura, tomando como ponto de partida noções como a de que a literatura mantém compromissos com as instituições – sejam elas quais forem –, conquanto nos possa conduzir a certas perguntas que nos parecerão centrais, não nos pode (pelo menos é o meu modo de ver) conduzir a nenhuma pergunta central acerca do que seja a própria literatura ou a literatura em si mesma. Certamente muitas pessoas não estarão interessadas em falar ou sequer em refletir sobre isso; mas eu me pergunto se ao agirmos assim não estaremos sendo desonestos com nós mesmos. Por outros termos, não há como fugir à própria consciência – e essa consciência me diz que a literatura, ou o que eu tomo como sendo literatura, não é somente isto que pretendo tomar como sendo literatura, e que ao me deter sobre noções que dizem respeito a “autoridades”, “valores”, “cânone” ou o que seja eu me proíbo imediatamente de penetrar naquele território de profunda incerteza onde a literatura, silenciando sobre tudo o mais, começa a falar com uma voz que só na literatura serei capaz de escutar. Você pergunta: o que é um texto literário de qualidade? Por acaso, acabei de ler um ensaio de Maurice Blanchot sobre Rimbaud, em que há a seguinte passagem: “As Iluminações, a Estação podem nos fazer vislumbrar que esse caminho foi realmente seguido: na medida em que, escrevendo-as, Rimbaud tocou o extremo, ele também ultrapassou a ordem das coisas comunicáveis, e o desconhecido não se aproximou de nós. Existe apenas uma certeza: suas obras são sucessos literários que comoveram os homens e os inspiraram por sua vez, mas em relação ao programa do Vidente ninguém pode decidir se elas representam uma trapaça, um fracasso radical, um engodo cheio de magnificência ou uma tentativa realmente ‘fabulosa’”. Detenho-me, pois, na afirmação (aplicada a Rimbaud, mas que me parece comportar um sentido de generalidade que ultrapassa em muito a sua obra individual) de que a literatura, tendo sido capaz de ultrapassar a ordem das coisas comunicáveis, não é no entanto capaz de fazer com que o desconhecido deixe de sê-lo, que se aproxime de nós ou que perca o que quer que seja do seu poder de fascínio, porque esse desconhecido – se pudéssemos falar assim, mas ainda aqui corremos o risco de sermos traídos pelas palavras – é inerente à voz com que a literatura nos fala, não importando o quão transparente ou reconhecível venha a parecer aquilo que essa voz nos quer dizer.

 

Posso tirar disso qualquer indício que me leve à noção de texto literário de qualidade? Quando me aproximo desse núcleo realmente turbilhonante, dessa zona de indistinção onde o eu e o outro se trocam o tempo inteiro, onde as identidades perdem o dom de se constituir como tais e onde, para me valer ainda uma vez de uma noção de Blanchot, dizer eu já é nada dizer, porque todo eu é sem conteúdo, se converteu num outro que diz sem nada dizer e sem nada saber a respeito de si mesmo ou daquilo que diz, então já nada poderei afirmar a respeito de texto e muito menos de qualidade. Mas, se insistirmos, pode ser que ainda se diga: mas isto é assim, isto já é o cerne da experiência, e a falta de sentido provém da tentativa de traduzi-lo para uma linguagem segunda. A insistência em falar, em dizer mais um pouco quando já não há nada a dizer é que nos atraiçoa. Se a literatura chegou às escolas e se esse fato representa, na melhor das hipóteses, uma tentativa de domesticação da voz (ou uma tentativa de convertê-la em algo de mais familiar, num universo de sentidos no qual nos reconhecemos como nós mesmos e sobre o qual podemos dissertar com certa segurança e certo rigor), seria melhor perguntar pelo que isso tem a ver com literatura ou se a partir disso chegaremos às questões realmente centrais; mas a esse respeito meu ponto de vista é o mais pessimista possível: porque nada nos ensinará, e se insistirmos estaremos apenas nos forçando à mediocridade ou a um tipo de ilusão que não aprofunda nossa compreensão do mundo e nossa experiência interior.

 

Desculpe-me se uso uma linguagem cifrada ou se ela está a parecer cifrada a esta altura. Como lhe disse no começo, minha intenção de contribuir com sua pesquisa esbarra na recusa em me iludir ou em mentir para mim mesmo, e é por isso que sou obrigado a mirar o cerne da questão, pois é só a partir dele – parece-me – que obteremos alguma luz. E ficamos insatisfeitos no final? Para concluir esta carta, eu só poderia acrescentar que à insegurança, à incerteza radical que parece emanar do núcleo da experiência literária (daquilo que chamamos de literatura e que levamos à escola) é sempre preferível qualquer coisa de mais sólido, de mais palpável, que pelo menos ofereça algum consolo às nossas angústias e nos dê a impressão de que estamos a lidar com concretudes e não apenas com fantasmagorias. Falaremos da crítica, falaremos do cânone, avaliaremos os pontos de vista e os julgamentos e nos iludiremos com a noção de que estudar literatura é, de algum modo, “libertar-se”, isto é, garantir no plano das ações concretas, que sempre se encaminham para o futuro, um grau de liberdade individual que justifica socialmente a literatura (e a sua inclusão entre as disciplinas escolares) e nos justifica a nós mesmos como custodiadores de um saber valioso. É de onde vem a noção de que a literatura humaniza, educa, tão conveniente aos tempos atuais, em que a capacidade de cada um de se identificar socialmente parece depender da capacidade de decifrar certos códigos, de dominar certas linguagens prestigiosas entre as quais incluiremos a literatura, sem que esta se possa incluir a si mesma. Mas é a literatura uma linguagem e aquilo que ela diz pode ser interpretado nos termos de um código, de um sistema ou de uma estrutura, ou é uma abrangência total sobre a qual não podemos falar sem o risco de uma traição?

 

Essas perguntas eu as deixo a você. E deixo também meus votos de que conclua bem a pesquisa, de que a leve a bom termo, mas de que o faça, também, de um modo tal que se sinta perdida nela (isto não é um voto de fracasso) – e de que, quando se sentir perdida, lhe venha a consciência (tão indispensável a qualquer empreendimento humano) de que está apenas no ponto de partida. São votos pessimistas de minha parte? Não concebo nenhum estudo da literatura que não seja incerteza e indefinição – e digo-o a você aberta e sinceramente – e para sempre desconfiarei daqueles que têm uma verdade, uma “proposta” ou uma certeza a provar.

 

Espero que não seja esse – o das certezas e definições – o seu caso. Coloco-me, assim, desde já à disposição para qualquer diálogo ou, se for conveniente, para um vasto silêncio germinador, que pode imperar em semelhantes ocasiões (e de cujos perigos não estamos isentos), com a certeza de que de tudo tiramos frutos, mesmo quando o caminho para eles nos parece o menos evidente e o menos encorajador.

 

Envio-lhe meus cumprimentos e meus votos de que a oportunidade de cursar o doutorado lhe seja bastante proveitosa.

 

Cordialmente,

 

R. S.

 

Guarapuava, 11/16 de novembro de 2004.

 

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