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DAS
CAMPANHAS POLÍTICAS DE MINHA TERRA DESCRITAS COMO UM FILME DE
HORROR
(Renato
Suttana)
Uma
situação corriqueira em filmes de horror é aquela em que os
mortos, ressurgidos dos túmulos e tomados por não se sabe que
impulsos de retaliação contra os vivos, retornam ao mundo para
assombrá-los ou persegui-los em sua vida diária. E não se pergunte o que vieram fazer
de novo neste lugar em que perderam a sua vez. A resposta será, por
certo, quase sempre, que retornaram para resolver alguma questão
inconclusa, saldar alguma pendência de ordem moral ou material que
o fato absoluto de estarem mortos não basta para saldar. Pensaríamos
até que, qualquer que seja a questão, é de vivos, sempre, que se
trata e que os mortos só comparecem lá como figuras excêntricas,
que dão ao enredo aquele toque de pitoresco sem o qual enredo
nenhum se mantém de pé. Muitas vezes, os mortos retornarão para
aumentar as populações do além-túmulo – o que depõe a favor
da hipótese de que nós mesmos, apegados demais a este mundo, o
achamos atrativo demais para que deixemos em paz os que se foram, e
então fazemos a máquina girar. Só não podemos é imaginar que
retornem para contemplar a paisagem – o que não renderia enredo
nenhum – ou para respirar o ar poluído de alguma metrópole – o
que não honraria a inteligência dos mortos –, até porque a idéia
do retorno à vida é, ela também, interessante demais para que a
passemos por alto. E nós somos seres inquietos por natureza,
bulideiros natos que não deixam em paz nenhuma idéia, muito menos
a de que os mortos deveriam ficar onde estão.
Outra
situação em que se pode ver os mortos ressurgirem dos túmulos –
ou, pelo menos, se pode ter a impressão de que ressurgem –
acontece com freqüência nas campanhas políticas do interior
brasileiro.
Figuras que, durante quatro ou mais anos, pareciam ter sumido de
nossas vistas ressurgem de seus nichos, como fantasmas despertos,
recobram vida e põem-se a caminhar pelas ruas, assombrando aqueles
que julgaram tê-los esquecido. Então não tinham desaparecido por
completo? Não é verdade que depois do último fracasso político
tinham desistido de vez de perseguir a assim chamada coisa pública,
deixando-a em paz como mágicos aposentados que se retiram do palco?
Grande ilusão de nossa parte! A coisa pública gera mais obsessões
do que somos capazes de conceber. E não é costume desistir-se dela
assim tão facilmente. Os mortos-vivos eleitorais – é a regra
–, à maneira do que acontece nos filmes, voltarão para assombrá-la,
dando a impressão de que uma parte deles ficou presa a ela e que
só poderá ser libertada com uma segunda morte. Quem é aquele que
vai pela rua todo empertigado, como se tivesse chegado de vez a uma
conclusão sobre o importante papel que tem a desempenhar no
concerto do mundo? E aquele outro, que víamos com regularidade nos
corredores da repartição, mas do qual nos esquecemos completamente
e de quem não nos lembraríamos de modo algum se não fosse época
de campanha e, pior ainda, de campanha bem-sucedida, que levou de
novo o seu candidato ao posto político mais cobiçado do município?
De onde surgem quando ressurgem para mover as acirradas contendas
que costumam anteceder a posse de prefeitos e vereadores nas
prefeituras e câmaras de cidades interioranas, como B. e outras,
cujo número de habitantes parece pequeno demais para semelhante fervor?
Em
si mesmos, se olhados de perto, esses fantasmas não têm nenhum
interesse. No entanto é estudando o seu comportamento que
descobrimos o que podem vir a significar para a compreensão de
alguma coisa dos processos eleitorais de província, em seus
aspectos mais representativos. Não queremos ser tendenciosos, mas,
de certo modo, não podemos deixar de admitir que o comportamento do
que ousaremos chamar de morto-vivo eleitoral típico do interior tem
qualquer coisa de cíclico, e acrescentaríamos: de espasmódico ou
de ciclotímico. Isso porque tal comportamento, em determinadas épocas, costuma manifestar-se como o mais extrovertido dos
comportamentos, isto é, em épocas favoráveis, nas quais podemos
detectá-lo em figuras que, noutras circunstâncias, podem (e de
fato o fazem com incrível freqüência) aparecer-nos como
verdadeiros ícones de timidez. O ciclotímico eleitoral é tímido,
introvertido e quase invisível em épocas que não sejam de eleição,
levando-nos a crer que a suspeita de que seja capaz de desaparecer
completamente no ar, ou de tornar-se invisível –
embora se trate apenas de um equívoco de nossa parte – não é
apenas uma ilusão. Mas em épocas de eleição esse comportamento
se converte em seu contrário, e é então que o descobriremos
ativo, agressivo, verdadeiramente arrogante, como se os ares da
ocasião exercessem sobre ele uma influência transformadora. De
criatura recolhida e esquiva, muda-se de repente num ser buliçoso,
de trato difícil a não ser para os seus correligionários,
adquirindo as características daquilo que poderíamos chamar de
Indivíduo Público – engrenagem básica das máquinas eleitorais
brasileiras.
Em
sua fase “noturna”, isto é, naquela em que se pode dizer que o
indivíduo está em baixa, o morto-vivo eleitoral tende a se
diluir na multidão, mergulhando num anonimato do qual só o tira a
recordação de que pertence à máquina política local. Se essa
recordação não ocorre a ninguém, então não há salvação: o
morto-vivo desaparecerá por completo, deixando de freqüentar
nossos pensamentos, ou se transformará num indivíduo comum, sem
atributos que nos estimulem a gastar com ele mais que cinco minutos
de nossa atenção. Se ele tiver uma profissão, pode ser que o
vejamos de outra maneira; que, esquecendo seus compromissos com a
vida política, consigamos até detectar nele uma personalidade,
interpretando-a como a de um indivíduo comum: o comerciante, o
advogado, o farmacêutico, o professor ou quem mais. Mas esse não
é, de modo algum, o morto-vivo eleitoral típico. Um morto-vivo,
para sê-lo na plenitude do termo, em épocas de baixa não deve ter
personalidade e, muito menos, qualquer proeminência na vida
coletiva. A opinião pública não deve formular a seu respeito
nenhuma opinião, bem como não se deve jamais fazer, por exemplo,
perguntas inconvenientes, tais como: o que ele faz para sobreviver
nas épocas magras (longe, portanto, das benesses do erário) ou,
afinal, o que o levou a se meter em questões de política? Ele deve
ser fluido (do ponto de vista psicológico), sobrevoando nossos
pensamentos como uma sombra discreta, uma associação fugidia à
qual apenas raramente haveremos de retornar. E, mesmo assim, sempre
que nos lembrarmos dele ou sempre que o virmos na rua, havemos de
lembrar que pertence a uma das duas facções políticas que
costumeiramente se digladiam nos municípios brasileiros, como se a
personalidade (que em geral não será senão uma exponenciação da
personalidade do morto-vivo eleitoral) do político eminente (na
esfera municipal) ao qual o seu nome estará ligado o preenchesse de
algum modo. Na fase lunar, o morto-vivo eleitoral é apenas uma possibilidade,
uma eventualidade ou uma sorte de ovo goro de dentro do qual pode
ser que desponte uma ave na próxima eleição, com a ressalva de
que, não sendo propícia a ocasião, o ovo se guarda para a
seguinte, ao contrário dos ovos de verdade, que tendem a apodrecer
caso a ave ou o que quer que contenham não quebre a casca e salte
para a luz.
Já
em sua fase propriamente diurna, não há que discutir: o morto-vivo
eleitoral é uma ave bastante empenachada, um galo de briga cuja
prontidão para o combate não se pode deduzir de seu comportamento
noturno. E que maravilhosa transformação! Basta que a Justiça
Eleitoral estabeleça uma data para o início das campanhas e que
esse dia chegue, para que o morto-vivo se erga do túmulo, arregace
as mangas e se ponha em movimento – e movimento frenético,
diga-se de passagem, que vai desde a organização de comitês
eleitorais até a promoção de eventos os mais ruidosos, tais como
comícios ou batucadas de dar inveja às melhores escolas de samba.
Neste aspecto, eles – os mortos-vivos – adquirem uma energia
realmente admirável, que em nada lembra os modos recolhidos de
outrora: são capazes de agitar no ar, durante toda uma noite, uma
bandeira (presa ou não a um mastro) de qualquer tamanho (oito
metros quadrados de tecido seria o ideal), como também de percorrer
cada rua da cidade montado na carroceria de um caminhão, gritando slogans
os mais estapafúrdios e tanto mais excitantes quanto mais estapafúrdios.
Arrebata-os o frenesi de retornarem à vida? O morto-vivo eleitoral
é capaz de dispor de uma energia que só se compara à dos
mortos-vivos do cinema, embora sem a lentidão de movimentos ou o
aspecto catatônico destes últimos. Diríamos mesmo que a lentidão
e a catatonia são reservadas para as épocas de marasmo: nas ocasiões
de alta, ou nas épocas de campanha, essas tendências se invertem.
E ei-lo a despertar e a canalizar as energias adormecidas de seus
correligionários e do público – energias que serão tanto mais
intensas quanto mais intensas forem aquelas de que o morto-vivo
puder apropriar-se (suas ou adquiridas por meio de algum sortilégio
de que não fazemos idéia) ou sacar de suas próprias usinas
interiores.
Mas
seria inadequado supor que ele disponha, de fato, de qualquer coisa
como uma fonte pessoal de energia. Antes, pode-se dizer que, como um
punhado de pólvora, é a época mesma que o acende, ou melhor: que
a época oferece a centelha e que tal centelha incendeia a sua pólvora
íntima. Seria ele capaz de produzir sua pólvora? Se algum mérito
se deve reconhecer-lhe, é a capacidade não tanto de produzi-la,
mas de buscá-la no exterior e de armazená-la para as ocasiões
oportunas, bem como se pode pensar que tal pólvora se acumule mais
quanto mais longo for o período de hibernação a que se vir
obrigado. E o que o obriga a hibernar é o fato de que sua facção
raramente se mantém por muito tempo no poder, sendo freqüentemente
forçada a revezar com a facção opositora. Essa é, talvez, uma
das razões pelas quais o comportamento do morto-vivo eleitoral
adquire certo nervosismo: vendo-se constantemente ameaçado de
despejo, ele vive em estado de sobressalto, como um inquilino que
passou tempo demais sem pagar o aluguel. Quanto a isso, pode-se até
dizer, sem injustiça, que o morto-vivo eleitoral é um sujeito que
vive de aproveitar ao máximo cada segundo que lhe cabe de vida. E
vida aqui significa, evidentemente, vida de além-túmulo. Ele não
só converterá, ao extremo do esgotamento, em gestos de
campanha toda a energia armazenada (o que talvez o incapacite depois
para as ações políticas proveitosas ou conseqüentes), como
ainda, em seguida, encontrará forças, em caso de vitória, para as
comemorações. Com uma diligência extraordinária, ele estará
presente a todos os eventos de campanha, desde as reuniões de
rotina para formulação de estratégias, até os grandes e
estrepitosos comícios nos quais, não raro, não se pejará de
falar ao microfone. Não só manterá em pleno funcionamento, pelo
período que durar a campanha, o comitê onde se distribuem pôsteres
e panfletos do seu candidato, do qual será o mais assíduo freqüentador,
como ainda não faltará ao dia em que seu candidato for declarado
prefeito da cidade – ocasião que parece resumir todo o sentido da
existência do morto-vivo eleitoral.
Este
é apenas um corolário da atitude usual do morto-vivo eleitoral de
província, que é capaz de muito mais quando seu coração e sua
mente se deixam invadir pelo que ele invariavelmente confunde com um
imoderado fervor pelo seu candidato. Mas seria mesmo uma pólvora o
que ele acumula por dentro ou se trataria de algo menos explosivo,
embora facilmente inflamável – uma palha, digamos, que quatro ou
mais anos de baixa tendem a amontoar dentro dele, como num celeiro
repleto? Nesse caso, nada mais natural do que, em ocasião
apropriada, atear fogo ao monte, até para que não se avolume
demais ou atinja alturas perigosas. Além do que, isso explicaria
certas idiossincrasias de caráter próprias do morto-vivo
eleitoral, como aquele período de aparente depressão que costuma
acometê-lo após uma campanha, mesmo vitoriosa, na qual
aparentemente esbanjou mais energia do que o suporíamos capaz (para
não falarmos da indispensável festa de comemoração, que parece,
esta sim, exauri-lo até a última gota). Nesse período, pode ser
que ele recaia na antiga melancolia, que regresse, nem que seja por
um instante, à pasmaceira usual. Trata-se do momento em que o incêndio
ameaça recuar, retroceder sobre si mesmo, antes de atingir o seu
ponto culminante. Esperemos, porém, a assim chamada festa da posse
e veremos do que ele é capaz realmente. Se é palha ou pólvora o
que se acumula nele nas épocas de silêncio, assistiremos ao incêndio
– incêndio que se prolongará pelo tempo que durar o período de
alta, quatro, oito, doze anos, conforme disponha a sorte eleitoral.
Só não poderemos pensar é que ele permaneça inerte, qualquer que
seja a circunstância, pois, do mesmo modo que os mortos-vivos de
nossos pesadelos, é o ressurgir que lhe infunde ânimo, como
se uma lei de eterno retorno movesse os cordões de seu destino.
Hoje
em dia, algumas determinações legais que têm surgido, visando a
tornar obrigatória a exigência de realização de concursos para
contratação de funcionários públicos, ou a surpreendente lei da
responsabilidade fiscal, que proíbe os prefeitos de assumirem dívidas
públicas que não possam ser pagas dentro do prazo de seus
mandatos, ameaçam impor obstáculos a esse eterno retorno. O que
pensará o morto-vivo eleitoral de tudo isso? Estará contente com
as novas regras ou as considerará apenas como um transtorno momentâneo,
ou um capricho da justiça, que facilmente se pode contornar por
meio de mecanismos que só ele mesmo conhece? De certo modo, às
vezes é possível imaginar que o que o leva a se erguer do túmulo
não chega a ser, sempre, o interesse pecuniário imediato. Uma
outra coisa, mais impalpável, que muitos chamam pitorescamente de
“paixão” política parece movê-lo. Pode ser. (Pensemos numa
cidade como B., com seus poucos milhares de habitantes, sua fábrica
de cimento, suas empresas de mineração, que geram razoável
arrecadação de impostos para os cofres públicos todos os
meses...) Essa outra coisa é que é indescritível, misteriosa como
o próprio fato de que o comportamento dos mortos-vivos eleitorais
se apresente assim, marcado por oscilações que vão da euforia às
longas fases de desânimo, algo muito menos acessível à razão do
que podemos imaginar. Influenciam, seja como for, o que quer que
seja a opinião pública das cidades que assombram e exercem nela um
papel político relevante? Ou devemos pensar também que, de um modo
ou de outro, por meio de sua voz e seu comportamento, adquire
expressão um modo de pensar e de se comportar do homem comum,
muitas vezes alheio às disputas políticas, que por ser alheio a
elas delega ao homem político (no caso, o morto-vivo eleitoral) a
tarefa de expressá-los, enquanto em seu silêncio ele apenas
referenda o que quer que seja a vida política das cidades do
interior?
Qualquer
que seja a resposta, delegando a eles a tarefa de realizar o que a
falta de tempo, o excesso de escrúpulos ou a simples pusilanimidade
nos impedem de empreender, nós os transformamos em porta-vozes de
nossas aspirações inconscientes. Somos todos nós, no fundo,
mortos-vivos que ainda não despertaram e que adormecem
indefinidamente em sua fase noturna, incapazes de acordar para o
frenesi do dia claro? Provavelmente, o fato de que os mortos-vivos
adquiram relevância na vida política local revela que essa relevância
foi usurpada e que, como acontece nos filmes, a vida que
vivem se alimenta de outras, muito embora esse alimentar-se
raramente seja
sentido como tal.
(In
Adendos e Espinhos -
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