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Giorgio Morandi

 

Poemas de Jorge Luis Borges (2)

 

 

 

A UM POETA MENOR DA ANTOLOGIA

 

Onde está a memória dos dias,

que foram teus na terra e teceram

fortuna e mágoa, e foram para ti o universo?

 

O rio numerável dos anos

os perdeu: foste uma palavra num índice.

 

A outros deram  glória interminável os deuses,

inscrições e exergos e monumentos e historiadores pontuais;

de ti somente sabemos, obscuro amigo,

que ouviste o rouxinol numa tarde.

 

Entre os asfódelos da sombra, a tua sombra vã

pensará que os deuses foram avaros.

 

Porém os dias são uma rede de misérias triviais –

e haverá sorte melhor do que ser a cinza

de que se faz o olvido?

 

Sobre outros lançaram os deuses

a inexorável luz da glória, que mira as entranhas e enumera as fendas –

da glória, que acaba por fazer murchar a rosa que venera;

contigo foram mais piedosos, irmão.

 

No êxtase de um entardecer que não será uma noite,

ouves a voz do rouxinol de Teócrito.

 

 

 

 

A UM GATO

 

Os espelhos não são mais silenciosos,

nem mais furtiva a aurora aventureira:

eras, à luz da lua, essa pantera

que ao longe divisamos, temerosos.

Por obra indecifrável de um decreto

divino, te buscamos baldamente;

mais remoto que o Ganges ou o poente,

a solidão é tua, e o mais secreto.

Teu lombo condescende à vagarosa

carícia de uma mão. Tens admitido,

desde essa eternidade que é já olvido,

o amor de minha mão tão receosa.

Em outro tempo estás: és dom, suponho,

de um âmbito cerrado como um sonho.

 

 

 

 

AO TRISTE

 

Eis aqui o que foi: a rude espada

do saxão e sua métrica de ferro,

os oceanos e as ilhas do desterro,

o filho de Laertes, a dourada

lua do persa e intérminos jardins

que há na filosofia ou que há na história,

os ouros tumulares da memória,

e na sombra o perfume dos jasmins.

E nada disso importa. O resignado

exercício do verso não te salva,

nem as águas do sonho, nem a estrela

que na noite arrasada esquece a alva.

Somente uma mulher é teu cuidado:

igual a tantas outras, mas é ela.

 

 

 

 

ARTE POÉTICA

 

Olhar o rio feito de tempo e água,

e recordar que o tempo é outro rio,

saber que nos perdemos como o rio

e que passam os rostos como a água.

 

Descobrir que a vigília é outro sonho

que sonha não sonhar; sentir que a morte

que teme nossa carne é essa morte

de cada noite, que se chama sonho.

 

No breve dia ou no ano ver um símbolo

dos dias do homem e também seus anos,

e o longo ultraje converter dos anos

num rumor, numa música e num símbolo:

 

ver o sonho na morte, ver no ocaso

um ouro triste – tal é a poesia,

que é imortal e pobre. A poesia

retorna como a aurora ou como o ocaso.

 

Às vezes, pelas tardes, uma cara

nos mira desde o fundo de um espelho:

a arte deve ser como esse espelho

que nos revela nossa própria cara.

 

Contam que Ulisses, farto de prodígios,

chorou de amor ao divisar sua Ítaca

humilde e verde. A arte é essa Ítaca,

de verde eternidade, e não prodígios.

 

Também é como um rio interminável

que passa e fica, e é o cristal de um mesmo

Heráclito inconstante, que é o mesmo

e é outro, como o rio interminável.

 

 

 

 

SUSANA BOMBAL

 

Alta na tarde, altiva e elogiada,

cruza o casto jardim e está no exato

brilho do instante irreversível, puro,

que este jardim nos dá e a alta imagem

silenciosa. Vejo-a aqui e agora,

mas a vejo também por um antigo

crepúsculo de Ur e dos caldeus,

ou descendo as escadas, devagar,

de um templo que é o inumerável pó

do planeta e que foi pedra e soberba,

ou decifrando o mágico alfabeto

das estrelas por outras latitudes,

ou aspirando a rosa na Inglaterra.

Está onde haja música, no leve

azul, talvez no hexâmetro do grego,

em nossas solitudes que a procuram,

no claro espelho d’água de uma fonte,

no mármore do tempo, numa espada,

ou na serenidade de um terraço

que divisa poentes e jardins.

E, por detrás dos mitos e das máscaras,

a alma, que está só.

 

 

 

 

AS COISAS

 

A bengala, as moedas, o chaveiro,

a fechadura dócil, as tardias

notas que não lerão os poucos dias

que me restam, o naipe, o tabuleiro,

um livro e dentro dele a emurchecida

violeta, monumento de uma tarde

por certo inesquecível já esquecida,

o rubro espelho ocidental em que arde

uma aurora ilusória. Quantas coisas,

atlas, limas, umbrais, taças e cravos

nos servem como tácitos escravos –

cegas e estranhamente sigilosas.

Durarão muito mais que nosso olvido,

não saberão quando tivermos ido.

 

 

(Traduções de Renato Suttana)

 

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