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BELEZA
E RELEVÂNCIA SOCIAL DA LITERATURA
(Renato Suttana)
(Páginas de um diário íntimo)
Criar belos poemas deveria ser o ideal de todo poeta.
Escrever poemas que sejam socialmente relevantes ou que
contenham mensagens importantes introduz um elemento de
confusão nesse processo — elemento que faz com
que o ato de escrever seja aquilo que é e aquilo que
almeja ser, tal como se a beleza não fosse razão
suficiente para justificar a existência da poesia.
Trata-se de um tipo de idolatria: como não podemos
definir a beleza ou dizer o que ela é, passamos a
substituí-la por outra coisa, que nos parece visível e
tem pelo menos a vantagem de poder ser comprovada no
universo das coisas concretas. A beleza não pode ser
disputada como uma qualidade palpável dos objetos feitos
pelo homem (embora esteja sempre em disputa), mas a
relevância social das mensagens está sempre em questão:
escrevemos porque temos algo a dizer. Seria muito se
afirmássemos que escrevemos apenas porque queremos dizer
coisas de maneira bela. A questão se concentra,
portanto, em torno do sentido que se atribui ao advérbio
"apenas" nessa asserção. Quem escreve escreve por alguma
razão. Quem escreve apenas porque quer escrever
belamente perde o sentido dessa razão: perde o direito
de escrever.
A literatura pede só que escrevamos, de um modo ou de
outro. Quem escreve por outra razão que apenas escrever
trapaceia diante dela. Mas a trapaça é para muitos
aquilo que há de mais necessário: vamos escrever, seja
como for, porque temos um mundo a salvar — embora
saibamos que, se não escrevermos belamente, a salvação
não acontecerá. E o mundo precisa mesmo ser salvo por
meio de uma bela escrita? Esta é a pergunta a que
ninguém sabe responder. Temos o mundo, temos a
literatura e temos a necessidade das coisas belas, com a
qual o mundo e a vida não sabem o que fazer. Daí talvez
as disputas que se travam todos os dias acerca das
razões que têm os autores para escrever, e o modo às
vezes envergonhado como eles tendem a evocar, sempre, as
urgências do mundo como motivo maior da sua escrita,
mesmo que tais urgências não estejam claras ou não
possam ser dadas claramente — mas importa mesmo que
escrevam.
Mulheres podem invocar, por exemplo, hoje em dia, o fato
de serem mulheres como razão maior para escreverem e
publicarem livros, e outros grupos de indivíduos podem
fazer a mesma coisa. O livro de Carolina de Jesus, que
deixa os críticos embasbacados, expressa uma urgência
social de caráter relevante. Ao lê-lo, o olhar está o
tempo todo passando da sua qualidade literária para a
urgência, como se o lêssemos com a consciência pesada
dos criminosos a quem fosse apresentada a descrição dos
seus malfeitos num tribunal. Raramente paramos para
pensar nas qualidades literárias dessa descrição; e,
quando o fazemos, o sentimento da inadequação se
apresenta de imediato. Tudo se passa como se, de fato,
não pudéssemos falar disso ou, sequer, mencionar a
questão, mas sabemos que ela está lá. Por um momento,
pensaremos que os grandes autores tiveram outras razões
para escrever grandes livros que não foram, apenas,
escrever grandes livros. Mas podemos também suspeitar
que a própria Carolina de Jesus não escreveu senão para
produzir literatura, para dar mais literatura a este
mundo no qual os livros já são um gênero de artefatos
razoavelmente abundantes.
As antologias de textos cujos autores foram selecionados
segundo um critério social — ou seja, como
representantes de determinadas categorias — produzem
curto-circuitos mentais. Não obstante, elas se tornaram
frequentes nos nossos dias. As pessoas querem ouvir as
mensagens, querem se identificar com o que está ali
representado, e pouco se preocupam com literatura ou
qualidades literárias (embora possam se envergonhar ao
ouvirem dizer que se identificam com algum tipo de má
literatura). Isso tende a produzir novos
curto-circuitos, certamente, até porque é apenas por
razões literárias que aqueles autores foram reunidos em
tais publicações.
Podemos então nos perguntar se a nossa época leva
realmente a sério os empreendimentos a que se lança e se
as trapaças inerentes à literatura (e ao imaginário em
geral) não estão, nela, a se confundir com outra coisa —
essa outra coisa que nos impede de nomear claramente os
objetos, porque a nomeação não nos convém. É preciso,
pois, refletir sobre o caráter duplicado da trapaça.
Essa atitude pode nos ensinar um pouco mais acerca dos
fenômenos aqui referidos, e nos ajudará a compreender a
sua natureza.
5-7-2021
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