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Nicolau Saião

 

BÊNÇÃO

 

(Charles Baudelaire)

 

Quando, por decisão das potências supremas,

o Poeta vem ter a este mundo turbado,

sua mãe, espantada, entre queixas blasfemas,

ergue os punhos a Deus, que a escuta consternado:

 

“Ah! que antes eu parisse um ninho de serpentes,

a ter de alimentar tamanha derrisão!

Maldita a noite dos prazeres complacentes,

em que gerou meu ventre a minha expiação.

 

Desde que me escolheste entre todas as fêmeas

para ser o pesar do meu triste marido,

e eu não posso lançar para as chamas extremas,

qual bilhete de amor, esse monstro aborrido,

 

hei de fazer voltar teu ódio e teu rancor

sobre o instrumento vil das tuas maldições

e torcer de tal modo essa árvore de horror

que não possa expelir seus infectos botões!”

 

Sua ira ela rumina assim – espuma amara –

e, sem compreender os desígnios eternos,

ao fundo da Geena ela mesma prepara

o fogo que há de arder para os crimes maternos.

 

E, sob a proteção de um Anjo invisível,

embriaga-se do sol o Infante deserdado,

e no que bebe e no que come acha, aprazível,

o gosto da ambrosia e o néctar encarnado.

 

Dá ao vento seu canto e à nuvem seu refrão,

e se embriaga a cantar da cruz o atroz caminho;

e o Espírito que o segue em peregrinação

chora de o ver feliz tal como um passarinho.

 

Os que ele quer amar o observam com receio

ou, antes, a temer sua tranqüilidade,

querem ver quem extrai um pranto do seu seio,

num ensaio de mágoa e de ferocidade.

 

Ao pão e ao vinho destinados à sua boca

vão misturando a cinza e os escarros devassos;

desdenham, com hipocrisia, o que ele toca

e acusam-se de ter posto os pés nos seus passos.

 

Sua mulher pregoa às praças, aos postigos:

“Se, por me achar tão bela, intenta me adorar,

tomarei o métier dos ídolos antigos

e, tal como eles, vou fazer-me redourar;

 

me fartarei de nardo, e de incenso, e de mirra,

e de genuflexões, e de viandas, de vinhos,

para saber se posso a um peito que me admira

usurpar, a sorrir, os preitos mais divinos!

 

E quando eu me cansar destas farsas impias,

sobre ele pousarei a fraca e forte mão,

e as minhas unhas, como as unhas das harpias,

hão de abrir um caminho até seu coração.

 

Como um jovem pardal que treme e que palpita,

seu rubro coração arrancarei também

e, por saciar a minha fera favorita,

o lançarei depois à terra com desdém!”

 

Para o céu onde avista um trono de esplendor,

sereno, o Poeta eleva os braços piedosos

e do espírito seu o amplíssimo fulgor

das multidões lhe vela os aspectos furiosos:

 

 “Sede benigno, ó Deus, que dais o sofrimento,

por divino remédio à nossa sujidade,

que como se o melhor e mais puro alimento

os fortes vai nutrir no êxtase e santidade!

 

Bem sei que reservais um lugar para o Poeta

entre as fileiras das mais santas Legiões,

e o convidais também para essa eterna festa

dos Tronos, das Virtudes e Dominações.

 

Bem sei que só a dor é a nobreza perfeita,

que nunca morderão nem terra nem infernos;

que minha mística coroa há de ser feita

com a imposição de todo o tempo e os universos.

 

Mas da ancestral Palmira as jóias ofuscantes,

os ignotos metais, as pérolas do mar,

criadas por vossa mão, não seriam bastantes

a esse belo diadema, esplêndido, sem par;

 

pois se fará da luz mais pura e do fulgor

tirado ao santo lar primevo e luminoso,

do qual olhos mortais, com todo o seu esplendor,

não são mais que um espelho obscuro e lacrimoso!”

 

(Tradução de Renato Suttana)

 

 

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