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A
SUPERSTIÇÃO DA FORMA
(Renato
Suttana)
Suponhamos
um escritor hipotético que, numa idade precoce, tomasse a decisão
de se tornar escritor. Tocado pela poesia de um modo indefinido e,
sobretudo, bastante obscuro até para ele mesmo, pode-se dizer que, nesse
momento, poucas coisas lhe parecerão seguras. Por mais que se entregue à
leitura e à reflexão, ele se sentirá no entanto incapaz de situá-las
claramente no universo de seus pensamentos. À medida que envelhece, porém
(e à medida que envelhece na perseverança), ele se dá conta de que uma
grande parte dessas perguntas ficará para sempre sem resposta.
Principalmente – para a sua melancolia – ele se dá conta de que,
entre todas as perguntas que se sente capaz de formular, aquelas que ficarão
sem resposta serão, sempre, as mais importantes. Ele as compreende como mais importantes, e isso a um tal ponto
que com o tempo lhe vem a sensação de que envelheceram com ele. Ou ele é que
envelheceu com elas, pois a sensação implica a certeza de que, com o
passar dos anos, suas dúvidas e indecisões não se modificaram nem evoluíram
significativamente. Apenas adquiriram um certo peso – esse peso que advém
da falsa impressão, ocasionada pelo fato de que alguma coisa resistiu,
inexplicavelmente, à passagem do tempo. A ilusão, portanto, do peso não
pode ser mais que a decorrência de uma falsa impressão. Surge da
excessiva consideração que se costuma ter para com o tempo. O peso que
gera é o peso de tudo aquilo que, não se desfazendo no tempo, com o passar
do tempo dá a impressão (verdadeira ou falsa) de ter se tornado
fundamental. (Assim se formam as questões fundamentais e as grandes
perguntas: elas nada mais são do que a projeção da impossibilidade no
tempo, e se tornam mais relevantes na exata medida em que for maior o nosso
esforço de responder a elas, mas, igualmente, em que for mesquinha a nossa
capacidade de responder a elas.)
Entre
tudo o que é capaz de constatar, deixa-o mais desolado a suspeita de não
ser suficientemente dotado de talento para a literatura. Constata que,
desejando escrever (de modo que isso toma para ele a falsa aparência de uma
necessidade), não se sente devidamente aparelhado. A solução que lhe
parece mais razoável é dedicar-se, então, a um exercício constante, a um
aprendizado tenaz, mediante o qual acredita virá a adquirir o cabedal de
conhecimentos indispensáveis à tarefa do escritor. Esforça-se e erra, e
é desnecessário apontar as razões por que erra. Seu pensamento se
converte em ação, e seu maior erro é supor que o exercício e a aquisição
da técnica ou do conhecimento possam transformá-lo num escritor. Como
suspeitamos, o equívoco e o erro caracterizam o modo como esse escritor se
encaminha para a literatura, ao compreendê-la como uma forma de
“atividade”. Ele acredita na técnica, ele deposita nela uma esperança
e pensa poder realizá-la na medida em que se assenhoreie de um certo
volume de conhecimentos. Ele não sabe, decerto, que tipo de técnica deverá
adquirir, nem faz uma idéia precisa do que esteja em questão adquirir. Com
efeito, ele se lança em sua demanda da técnica com a inocência feliz de
uma criança. Ele se acerca do que não conhece com a mesma inocência de um
menino; e nisso é comparável a um menino que, nada sabendo a respeito de
um determinado herói nacional, se pusesse a ler diligentemente todos os
livros de uma biblioteca, sem se dar conta, por exemplo, de que autores
diferentes poderão ter opiniões diferentes sobre esse herói, ou mesmo
sequer suspeitando de que, num universo de contingências, possam existir
coisas tais como pontos de vista dessemelhantes ou idéias contraditórias
acerca de um mesmo assunto.
Assim
ele se torna, sem o perceber, de uma vez para sempre, num eterno aprendiz da
técnica supersticiosamente divinizada. Ele não só deposita na idéia de
que pode adquirir o saber necessário à realização literária uma enorme
esperança, como também passa a lhe dedicar um respeito indevido. Esse
pequeno escritor depõe na técnica a esperança de se tornar o que já é e
também a de se realizar para além do próprio limite da técnica. Ele
julga ser necessário não apenas adquirir todo o domínio indispensável
para ser o que não tem garantia nenhuma de já estar sendo, como julga ser
necessário ultrapassar esse domínio, tornando-se escritor para além da técnica
dominada. Com tudo isso, a técnica deve aparecer para ele como um caminho a
ser percorrido e, logo em seguida, como um caminho a ser abandonado. De modo
paradoxal é como se ele devesse chegar não aonde o caminho o levasse, mas
aonde o caminho não o conduzisse. Colocada a serviço do que não pode
prover (ou seja, de uma literatura que deve ser original, no sentido de que
não pode ser meramente uma realização da capacidade técnica por si
mesma), a técnica se converte numa espécie de preconceito. E o preconceito
passa a dominar, como um pólo magnético, todo o campo das interpretações
que esse escritor produzirá a respeito de seu possível (ou impossível)
talento, de sua capacidade para se tornar o que já é. Perguntaríamos,
talvez, que tipo de idéia ele faz do talento, ou se é capaz de se dar
consciência de que veio lidando, durante todos esses anos, com uma cisão
que punha em confronto não o possível e o impossível, mas a técnica e o
talento como realidades conflitantes. (O modo como ele contornou ou formulou
essas questões forneceria um veio bastante instrutivo de reflexões sobre
os laços que ligam um escritor à sua literatura, bem como sobre os equívocos
a que esses laços conduzem.)
No
entanto o efeito mais curioso dessa concepção de técnica é uma concepção
paralela de forma literária, que se produz no limite mesmo do preconceito.
Não podendo interpretar a forma como um dom gratuito da literatura – que
se sustenta a si mesma sobre andaimes feitos de ar –, ele procura
interpretá-la como elemento exterior, fragmentário, privado de qualquer
sentido de necessidade. A compreensão da forma, fundada numa experiência
duvidosa e caótica de leitura, não se liga a uma “história”, em que a
forma se fecha sobre si própria e se torna imprestável para tudo o mais.
É, antes, a concepção da forma como resultado de um domínio no âmbito
da técnica, de uma destreza no manejo de um quimérico “código” literário,
que ele crê em condições de sustentar sozinho (ou quase sozinho) toda a
realização literária.
Vale
a pena examinar alguns aspectos dessa concepção de forma em suas conseqüências
para o pensamento do escritor. Primeiramente ele desenraíza a forma,
separando-a daquilo que ela contém. Por causa de seu preconceito, ele não
vê que a forma já é a realização literária, que não existe uma divisão
entre a “forma” como entidade independente e auto-suficiente e a realização
literária como subproduto de um domínio adquirido no âmbito da técnica.
Para o nosso escritor, realizar certas escolhas, selecionando meios e metas,
já é tão arbitrário quanto escolher entre as formas que julga estarem
disponíveis no plano das possibilidades de escolha. No campo da métrica,
para se ter um exemplo, ele não verá diferença nenhuma de qualidade entre
um verso de seis sílabas e um verso de sete ou de oito ou outro qualquer.
Desde que se estabelecem essas opções formais como puras opções formais
(em plena e confusa disponibilidade), escolher uma delas dependerá apenas
de uma circunstância nada clara do estado de espírito ou do acaso. Numa
hipótese má, a escolha se subordinará ao mero desejo do exercício
virtuosístico. Cedo ou tarde a contumácia acabará por ensinar alguma
coisa a esse escritor. Sendo infinita a sua disposição ao aprendizado,
mais cedo ou mais tarde ele aprenderá que existem diferenças não só
entre as formas compreendidas como entidades, mas também entre os vários
modos de realização formal que se lhe apresentam como modelos. Sobretudo
ele aprenderá que o que tende a tomar como modelo não é o resultado de
formas coordenadas de modo arbitrário sobre um espaço neutro de
possibilidades, mas, sim, antes de tudo, a realização concreta de um gesto
que antecede a forma pensada como forma e que a sustenta no fundo,
tornando-a “possível” do ponto de vista da realização. Obviamente o
caminho que leva a essa constatação é bastante árduo,
e o ponto de chegada não se situa no final, uma vez que se pode dizer que
ele é o próprio caminho. Tal constatação, no entanto, pode ser bastante
desencorajadora para o escritor.
Seja
como for, se atingiu esse ponto (em que a realização – já realizada –
lhe parece completamente impossível), ele disporá, bem ou mal, de uma
obra. E que maravilhosa transformação não se processou em seu espírito,
desde que ele, sem abdicar de uma superstição, logrou convertê-la em
realização que põe em evidência o seu talento, embora não o possa pôr
em evidência para ele próprio! A partir do instante em que se dá conta de
que já não é possível aspirar a um nível qualquer de realização (pelo
simples fato de que a obra consome de tal maneira o modelo que não resta
dele, nela, senão uma sombra empalidecida), não lhe resta alternativa a não
ser produzir a sua própria obra. Entretanto o abismo é imenso entre
o escritor “inábil” do início – a quem falta sequer um conhecimento
de si mesmo que o previna de tentar percorrer caminhos que estão além de
suas forças – e o escritor de agora, com a sua consciência melancólica
dos erros cometidos e das impossibilidades a que se deve resignar. Como
pensar essa distância e tudo o que nela se acha implicado? Não há,
talvez, nenhuma diferença qualitativa no preconceito com que ainda procura
acercar-se de sua própria idéia de “forma” literária. Mas pode-se
notar, nele, senão uma segurança maior no trato com o literário, pelo
menos uma resignação maior àquilo que, a despeito dele mesmo, se impôs
à obra como um reflexo dele mesmo. Ou, antes, nessa etapa, ele não tem
outra opção senão ser o que é, e ser o que é perante a obra, que não
é nada mais que ele mesmo aprimorando-se no domínio infinito da forma.
Pode
ser que aqui se corra o risco de uma distorção. O movimento que faz da
obra uma realidade tal que consome a técnica em sua dinâmica interna faz
ainda que se torne impossível perquirir na sua intimidade sobre o esforço
do trabalho que a trouxe ao mundo. Todavia essa realidade é visível no
tempo, está inserida no tempo, e se pode buscar nela (pelo menos se pode
desejar semelhante coisa) a marca do tempo, que a abriu em seu seio como
absoluta “novidade” e que a fecha de repente em seu mistério profundo,
fazendo-a tão velha que nos espantamos de que ainda possamos interessar-nos
por ela. O escritor, na altura em que se encontra, desconfia de que o que
sempre buscou já tenha sido realizado, mas no íntimo ele desconfia também
de que o realizou por caminhos transversos, à revelia de si mesmo. Os traços
de uma destreza técnica adquirida ao longo dos anos parecem invisíveis ou
absolutamente superficiais na obra realizada. Com efeito, a própria obra
realizada não lhe parece encontrar-se onde ele pensa poder encontrá-la.
Antes, essa mudança de posição falseia também a realidade da obra,
esvaziando a técnica, coagulando-a na superfície, e entregando a obra –
ao olhar do escritor – a uma espécie de exasperadora invisibilidade, como
se nada de fato tivesse sido realizado. A superstição da técnica
sobrevive, transposta apenas para uma outra dimensão. O escritor se vê um
pouco mais sábio, um pouco mais hábil – mas lhe falta sempre alguma
coisa, quer dizer, precisamente aquela confirmação que viesse unir a técnica
e a verdade da obra numa unidade indissolúvel, garantindo-lhe que não foi
em vão o ingente esforço despendido. Mas aqui ele nada pode fazer senão
surpreender-se e iludir-se com o pensamento de que noutras circunstâncias,
numa outra realidade, teria sido um escritor vitorioso.
É
possível que, vez por outra, ele se deixe tomar por uma imensa desolação.
Pode ser que, às vezes, um sentimento lhe venha de infinita repugnância.
Ele poderia imaginar que, abandonando tudo, que, desistindo de si próprio e
de sua obra, lhe viesse uma certa paz. Mas ele já se envolveu demais com o
assunto, já se comprometeu demais e não quer abrir mão de nada, porque não
saberia o que fazer de si próprio depois. Atravessado entre duas realidades
– entre a idéia de ter uma obra e a idéia de que essa obra não existe
–, ele conta apenas com o tempo para continuar “insistindo”. Na
verdade, é como se admitíssemos que ele “conhece” demais esse assunto
para ser um mero principiante (para se entregar à pura alegria do
amadorismo); porém ele sabe muito pouco sobre tudo o mais para que se possa
realizar plenamente, naquela dimensão em que a técnica já se encontra
superada. Ele não é nem o que fez de si mesmo, por meio do estudo e do
trabalho, nem a sua metade indolente ou inepta, a única em condições de
lançá-lo de novo – e de novo sempre – em direção à literatura. Suas
opções, sejam quais forem, não parecem exprimir-se por esses termos. Pelo
contrário, elas parecem situar-se (caso existam) num outro lugar, onde
esses termos não geram mais do que ilusões.
junho
de 1998
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