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Nicolau Saião, Mariana 2 (arte digital)

 

A QUEDA QUE AS UNIVERSIDADES TÊM PELOS POETAS MORTOS

 

(Renato Suttana)

 

Quem desejasse obter algum conhecimento sobre a poesia brasileira atual e consultasse uma dessas revistas que as universidades publicam – e nos referimos em especial às grandes universidades – chegaria a uma conclusão bastante exata: a poesia brasileira atual simplesmente não existe. Essa não seria, evidentemente, uma constatação alarmante para quem não se preocupa com o assunto, desde que certas questões de suposto interesse coletivo (se é que se trata de tal) parecem exercer apelo sobre uma parte muito pequena da população, mas para esse leitor pode ser que a coisa gerasse alguma dúvida. A julgar pelo que as universidades publicam efetivamente acerca da poesia contemporânea do Brasil (na eventualidade, é claro, de que ela exista), poderia concluir que se enganou a respeito do tema e que a expressão não nomeia nada de preciso, a não ser que se pensasse que a poesia contemporânea seja escrita por gente como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Jorge de Lima – o que poucos estariam dispostos a admitir.

 

Em se tratando de poetas vivos, então, as coisas se afiguram ainda mais desanimadoras. Além de não existirem no sentido mais específico do termo, também não deixam um rastro que, futuramente, venha provar que a impressão de que não existiam se deveu a um equivoco ou a um desvio de perspectiva (ou, quando menos, a uma certa pressa em avaliar a situação). Flutuam por aí, como balões de gás, e, como tais, não podem ser capturados nem domesticados por ninguém – muito menos pelas grandes universidades, que têm coisas mais importantes a fazer do que penhorar o seu tempo e o seu prestígio na perseguição de fantasmas. E, se alguém dissesse que o interesse pela poesia (que, por incrível que pareça, nos dias de hoje ainda persiste – mesmo enfraquecido – nas universidades) só conserva a sua atualidade e o seu frescor em decorrência da improvável lenda de que existem poetas vivos e qualquer coisa como uma poesia contemporânea, pode ser que fôssemos obrigados a retrucar que tal idéia não passa de um equívoco. Argumentaríamos que a poesia que interessa às universidades nada tem a ver com estar vivo ou morto (quem a pratica) e que o interesse por ela advém de uma invenção de caráter arqueológico. Conclui-se, absolutamente, que há uma poesia a estudar ou a venerar, não se tratando necessariamente de uma arte praticada por vivos – o que, aliás, se colocado em questão, só geraria constrangimentos nesses veneráveis santuários do saber. Poetas vivos costumam não só ser pessoas desinteressantes e inconvenientes (em mais de um sentido), como também nos transmitem não raro uma sensação de insegurança mesclada ao desconforto. É como se, em presença deles, não tivéssemos garantia nenhuma de que no próximo minuto continuarão a ser os gênios pelos quais os tomamos, para não falar das criaturas vivas e capazes de escrever poesia que deveriam ser e que todos esperam que sejam.

 

Justifica-se, pois, que as universidades tenham um fraco pelos mortos. Além disso, há o fato de que, em sua atenção aos mortos, em seu respeito quase religioso por eles, parece repugnar aos meios acadêmicos a idéia de que os autores de livros possam estar por perto, sujeitos a qualquer momento a entrarem por aquela porta e a pedirem que compremos os seus livros ou que, pior, os patrocinemos. Isto, sim, seria uma afronta e quem sabe até um desrespeito – não só à memória dos mortos venerados mas também à seriedade e à sisudez que devem imperar nesses ambientes circunspectos. No mais, os poetas comprovadamente vivos trazem o inconveniente de que suas obras, quaisquer que sejam elas, estão sujeitas a flutuações de valor (pois o valor sempre estará em questão) que dependerão demais do que se diga da próxima obra-prima (ou do próximo desastre) que sejam capazes de perpetrar. Pouco importa que sejam convidados a comparecer nas universidades e a se expor diante de platéias curiosas, que os olham com a estranheza com que olhariam um texugo ou um rinoceronte. Expostos sobre tablados, eles parecem frágeis demais, ou enfadonhos demais, ou engraçados demais, ou simplesmente humanos demais para que possamos conceber qualquer possibilidade de ligar suas figuras às obras ou às obras de que os imaginamos inventores. Caso conheçamos uma ou duas dessas obras, pode até ser que nos permitamos alguma condescendência, muito porque não se pode querer perfeição em tempo integral. Mas, se não lhes conhecemos obra nenhuma, então a catástrofe será inevitável: não poderemos fazer delas (dessas obras hipotéticas), por antecipação, senão a pior idéia possível – a qual nos levará à conclusão de que jamais compraremos qualquer livro que tenha saído da pena desses autores. (Eis um alerta a ser dado a todo poeta vivo: que ele leve sempre em conta o quanto a sua imagem pública pode influir sobre a vendagem de seus livros.)

 

Essas observações, provavelmente, explicam em parte a aversão que as universidades (e aversão que será tanto maior quanto maior e mais renomada for a universidade em questão) nutrem pelos poetas vivos. Mas há outros motivos, como, por exemplo, o pensamento de que as universidades quase sempre organizam seus projetos da mesma maneira como produtores de cinema organizam os deles: pensando no público alvo e, conseqüentemente, no retorno dos investimentos. Não há lógica, portanto, se olharmos por esse ângulo, em investir dinheiro – o que envolve verbas públicas, agências de fomento (estas, mais que todos, terrivelmente alérgicas a poetas vivos!), bolsas de estudo, salários de professores, grupos de pesquisa – para estudar coisas como as obras de desconhecidos que, provavelmente, não teriam custado, para virem ao mundo, uma centésima parte de todo o dinheiro que se gastará para estudá-las. E o que dizer da imagem desses poetas quando exposta publicamente ou para uma platéia que, quando muito, se dignará a conceder-lhes um bocejo logo que pronunciarem a primeira palavra? Como atores desconhecidos, figuras tais não atraem, acreditamos, um mínimo sequer do interesse algo espetacular que se espera dos escritores (do qual só alguns sabem dar mostras!) – façanhudos praticantes de uma atividade que, nos meios estudantis, teria muito mais prestígio do que o de que goza atualmente, não fosse o inconveniente de por lá aparecerem os poetas com os seus livros.

 

Um leitor mais ingênuo poderia perguntar se, neste particular, não seria mais proveitoso, em vez de investir recursos em congressos e pesquisas, bem como em tudo o mais que envolve o estudo das obras dos escritores, simplesmente investir algum trocado na publicação das mesmas. Perguntando-o, no entanto, apenas demonstraria, de sua parte, um imenso despreparo para lidar com as realidades práticas da vida. Que a obra de Rimbaud não lhe tenha rendido, talvez – em termos financeiros –, quando vivo, um milésimo de tudo o que já se gastou para estudá-la ou para exaltá-la em todos os meios de comunicação (e não só nas publicações acadêmicas) apenas comprova que Rimbaud (tal como outros que hoje desfrutam de equivalente prestígio no mundo das letras) viveu na época errada – que é a época em que todos os poetas vivem. Por outros termos, o que aconteceu a Rimbaud comprova que teria feito melhor se apenas tivesse sido um fantasma de si mesmo, enquanto sua obra vinha a público pela primeira vez, não podendo nascer, infelizmente, como obra póstuma de antemão (desde que ele estava vivo quando a escreveu) – mas isso constituiria uma impossibilidade em que sequer vale a pena cogitarmos.

 

Há dificuldade, por certo, em estabelecer que tipo de relações existe entre os poetas vivos e os poetas mortos, e pode ser que não devêssemos mencionar esse assunto. No entanto não se pode negar que, por mais que o interesse se concentre nos mortos, se constata, quanto a estes, uma espécie de dependência frente aos vivos – dependência da qual só tomamos consciência quando reconhecemos que, de algum modo, é dos vivos que os mortos se alimentam (embora, para as universidades, os mortos tenham precedência sobre os vivos). Não se trata de ajudar os mortos, que não podem mais se defender, nem de cultivar a memória deles num mundo que a cada dia tende a se esquecer mais rapidamente das coisas do passado. A dependência dos mortos em relação aos vivos provém de uma espécie de mito popular, de uma crença a respeito da poesia que nenhum erudito jamais alcançará desmascarar. Essa crença diz que a poesia, estando viva, ainda é praticada por alguém, e que o fato de nos interessarmos por ela depende da idéia de que, nos dias de hoje, ainda exista gente capaz de praticá-la. Ou é só um equívoco de nossa parte? É preciso ser cauteloso neste ponto. Pensemos, apenas, que nada é tão interessante a ponto de que se deva passar uma eternidade a lucubrar a seu respeito – podendo muito bem ser este o caso da poesia (e talvez as universidades tenham chegado cedo a essa conclusão). Mas, se supusermos o contrário, então teríamos de concluir que uma imensa injustiça está a ser praticada contra os poetas vivos, dos quais dependem, para existir, muito mais coisas do que estamos acostumados a crer, e aos quais portanto deveria ser paga alguma retribuição.

 

O certo é que as universidades têm os seus motivos para preferirem os mortos, assim como certos críticos têm os deles para preferirem alguns autores em detrimento de outros, bem como o público os dele para preferir certos escritores pelos quais as universidades não se interessam. Mas pensemos, ao menos, que um dia alguma coisa poderia ser feita para evitar o embaraço que causa, digamos, o fato de que um poeta se dirija a uma universidade e peça dinheiro para publicar um livro, e que em resposta lhe seja proposto, em vez de escrever o próprio livro, fazer um estudo sobre outro poeta, menos interessante do que ele talvez, mas que não seja ele o poeta a ser estudado (ou que não chegue ao desplante de pedir financiamento para estudar a sua própria obra, o que já seria demais!). Com um pouco de diálogo, chegaríamos a um acordo, e pode ser que os poetas vivos encontrassem nem que fosse um cantinho para se aninharem no interior das grandes universidades, e que essas não os enxotassem de lá, mas os deixassem ficar.

 

Seria um mundo em que o nosso leitor curioso e perguntador se sentiria mais confortado, concluindo, em sua indefectível ingenuidade, que ainda existe alguma lógica no processo da realidade.

 

(In Adendos e Espinhos - livro eletrônico)

 

 

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