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                  A
                  MORTE ALADA 
                   
                  
                   
                  (H.
                  P. Lovecraft)
                  
                   
                   
                  
                   
                  O
                  Orange Hotel fica na High Street, próximo à estação
                  ferroviária, em Bloemfontein, na África do Sul. Num domingo,
                  a 24 de janeiro de 1932, quatro homens estremeciam de terror
                  num dos quartos em seu terceiro piso. Um deles era George C.
                  Titteridge, proprietário do hotel; outro era o guarda de polícia
                  Ian De Witt, da Delegacia Central; o terceiro era Johannes
                  Bogaert, o juiz investigador local; o quarto, e aparentemente
                  o menos perturbado do grupo, era o doutor Cornelius Van Keulen,
                  o médico legal. 
                   
                  
                   
                  Sobre
                  o piso, incomodamente evidente em meio ao intenso calor do verão,
                  jazia o corpo de um homem morto; mas não era disso que os
                  quatro tinham medo. Seus olhares vagavam da mesa, sobre a qual
                  havia uma curiosa mixórdia de coisas, para o teto logo acima,
                  ao longo de cuja suave brancura uma série de caracteres
                  grandes e hesitantes tinham de algum modo sido garranchados a
                  tinta; e vez ou outra o doutor Van Keulen olhava furtivamente
                  para um surrado livro encapado em couro, para as palavras
                  rabiscadas no teto e para uma mosca morta de aspecto peculiar
                  que flutuava numa garrafa de amônia sobre a mesa. Também
                  sobre a mesa estavam um tinteiro aberto, uma caneta e uma
                  almofada para escrita, uma valise de médico, uma garrafa de
                  ácido clorídrico e um copo contendo um quarto de óxido de
                  manganês preto. 
                   
                  
                   
                  O
                  livro encapado em couro era o diário do morto e deixava claro
                  que o nome Frederick N. Mason, da Mining Properties, Toronto,
                  Canadá, assinado no registro do hotel, era falso. Havia
                  outras coisas, coisas terríveis, que a partir dele se
                  tornavam claras também; e ainda outras que ele apenas sugeria
                  de modo horrível, sem as deixar claras ou sequer torná-las
                  inteiramente críveis. Era a meia suspeita dos quatro homens,
                  fecundada por vidas inteiras que passaram junto aos segredos
                  sombrios da África nativa, que os fazia tremer tão
                  violentamente, a despeito do calor causticante de janeiro. 
                   
                  
                   
                  Tratava-se
                  de um caderno pequeno, e todas as entradas apareciam numa
                  caligrafia bonita, a qual, entretanto, se tornava descuidada e
                  nervosa à medida que se aproximava do fim. Consistia de uma série
                  de apontamentos soltos, irregularmente espaçados no princípio,
                  mas que finalmente se tornavam cotidianos. Chamá-lo de diário
                  não seria inteiramente correto, pois recobria a crônica de
                  apenas um setor das atividades do autor. O doutor Van Keulen
                  reconheceu o nome do morto no momento em que virou a capa,
                  pois se tratava de um eminente membro de sua própria profissão
                  que tinha estado amplamente ligado aos assuntos africanos. Num
                  outro momento, ficou horrorizado ao descobrir seu nome ligado
                  a um crime covarde não solucionado oficialmente, que tinha
                  freqüentado os jornais há uns quatro meses. E quanto mais
                  lia mais se aprofundavam seu horror, seu pasmo, sua aversão e
                  seu pânico. 
                   
                  
                   
                  Aqui,
                  em essência, está o texto que o doutor leu em voz alta
                  naquele quarto sinistro e perturbador, enquanto os três
                  homens à sua volta perdiam o fôlego, se remexiam em suas
                  cadeiras e disparavam olhadelas medrosas para o teto, para a
                  mesa, para as coisas que estavam no chão, bem como entre si
                  mesmos: 
                   
                  
                   
                  DIÁRIO
                  DE THOMAS SLAUENWITE – MÉDICO 
                   
                  
                   
                  Comovente
                  punição de Henry Sargent Moore, Ph.D., do Brooklyn, Nova
                  Iorque, professor de Biologia dos Invertebrados na
                  Universidade de Colúmbia, Nova Iorque, N.Y. Preparada para
                  ser lida após minha morte, pela satisfação de tornar pública
                  a realização de minha vingança, a qual, de outro modo,
                  poderá nunca vir a ser creditada a mim, caso obtenha sucesso. 
                   
                  
                   
                  5
                  de janeiro de 1929 – Estou agora plenamente resolvido a
                  matar o doutor Henry Moore, e um incidente recente me mostrou
                  como o farei. Doravante, seguirei uma linha de ação
                  consistente; daí o começo deste diário. 
                    
                  Não
                  há muita necessidade de repetir as circunstâncias que me
                  levaram em tal direção, pois a parte informada do público
                  está familiarizada com todos os fatos relevantes. Nasci em
                  Trenton, Nova Jérsei, em 12 de abril de 1885, e sou filho do
                  doutor Paul Slauenwite, que antes esteve em Pretoria, no
                  Transvaal, na África do Sul. Estudando medicina em consonância
                  com uma tradição familiar, fui conduzido por meu pai (que
                  morreu em 1916, enquanto eu servia na França num regimento
                  sul-africano) a me especializar em febres africanas; e, após
                  me formar pela Colúmbia, dediquei bastante tempo a pesquisas
                  que me levaram de Durban, em Natal, até o próprio equador. 
                   
                  
                   
                  Em
                  Mombaça, trabalhei em minha teoria sobre a transmissão e o
                  desenvolvimento da febre remitente, ajudado apenas em parte
                  pelas anotações do último médico do governo, Sir Norman
                  Sloane, as quais encontrei na casa em que vivi. Quando
                  publiquei minhas conclusões, tornei-me de súbito uma
                  autoridade famosa. Falaram-me acerca da probabilidade de uma
                  posição quase suprema no serviço de saúde sul-africano e
                  até mesmo de uma comenda, na eventualidade de que eu me
                  tornasse cidadão naturalizado, e em função disso dei alguns
                  passos indispensáveis. 
                   
                  
                   
                  Então
                  sobreveio o incidente pelo qual estou prestes a matar Henry
                  Moore. Esse homem, meu colega de estudos e amigo durante
                  anos na América e na África, deliberou minar minhas
                  pretensões quanto à teoria, alegando que Sir Norman Sloane
                  me antecipara em todos os detalhes essenciais e dando a
                  entender que eu teria encontrado mais papéis dele do que
                  declarara em meus escritos. Para corroborar essa acusação
                  absurda, ele trouxe à luz certas cartas pessoais de Sir
                  Norman que de fato mostravam que o velho já teria percorrido
                  meu caminho e que publicaria seus resultados, não fosse pela
                  sua morte repentina. Tudo isso eu poderia admitir com alguma mágoa.
                  O que não podia desculpar era a suspeita invejosa de que
                  havia roubado a teoria dos papéis de Sir Norman. O governo
                  inglês, sensível demais, ignorou essas difamações, mas
                  retirou a prometida indicação e a comenda, sob justificativa
                  de que minha teoria, embora original em parte, não era de
                  fato nova. 
                   
                  
                   
                  Percebi
                  que minha carreira na África fora bruscamente interrompida, não
                  obstante tivesse apostado todas as minhas esperanças nela, ao
                  ponto mesmo de desistir da cidadania americana. Uma frieza
                  tocante em relação à minha pessoa se manifestou no governo
                  de Mombaça, principalmente entre os que tinham conhecido Sir
                  Norman. Foi então que resolvi acertar contas com Moore, mais
                  cedo ou mais tarde, conquanto não fizesse idéia de como. Ele
                  invejara minha prematura celebridade e tirara partido de sua
                  antiga correspondência com Sir Norman para me arruinar. Tudo
                  isso vindo de um amigo em quem eu mesmo suscitara o interesse
                  pela África, a quem orientara e inspirara, até que
                  adquirisse sua fama atual como autoridade em entomologia
                  africana. Mesmo agora, decerto, não vou negar que suas
                  conquistas tenham sido profundas. Eu o ajudei, e em troca ele me
                  arruinou. Agora, algum dia, o destruirei. 
                   
                  
                   
                  Quando
                  vi que perdia espaço em Mombaça, solicitei uma transferência
                  para o interior, para M’gonga, onde permaneço atualmente,
                  apenas a cinqüenta milhas da fronteira com Uganda. Trata-se
                  de um entreposto para comércio de algodão e marfim, com
                  somente oito homens brancos, além de mim. Um lugar bestial,
                  quase na linha do equador, cheio de todo tipo de febres que a
                  humanidade já conheceu. Serpentes venenosas e insetos por
                  toda parte, e negros portadores de doenças de que ninguém
                  ouve falar fora do ambiente médico. No entanto meu trabalho não
                  é difícil, e tenho tempo de sobra para pensar no que fazer
                  com Henry Moore. Diverte-me dar aos seus Dípteros da África
                  Central e Meridional um lugar proeminente em minha
                  estante. Suponho que seja realmente um manual padrão,
                  usado em Colúmbia, em Harvard e em Winsconsin, porém
                  minhas próprias sugestões é que são de fato responsáveis
                  por metade de seus pontos fortes. 
                   
                  
                   
                  Na
                  semana passada encontrei aquilo que me decidiu sobre o modo de
                  acabar com Moore. Um grupo enviado de Uganda trouxe um negro
                  acometido por uma doença que ainda não posso diagnosticar. O
                  homem parecia letárgico, com uma temperatura muito baixa, e
                  se contorcia de um modo peculiar. A maioria dos outros tinha
                  medo dele, dizendo que estava sob algum tipo de feitiçaria;
                  no entanto Gobo, o intérprete, disse que ele fora picado por
                  um inseto. Qual fosse, não posso imaginar, pois há apenas
                  uma ligeira ferroada no braço. É de um vermelho brilhante,
                  porém com uma auréola arroxeada ao redor. De aparência
                  espectral, não me espanto de que os rapazes a atribuam à
                  magia negra. Parecem ter visto casos semelhantes em outros
                  tempos e dizem que, com efeito, não há nada a fazer. 
                   
                  
                   
                  O
                  velho N’Kora, um dos nativos de Oromo a trabalhar no posto,
                  sugere que possa ser a mordida de uma mosca-diabo, que faz com
                  que suas vítimas se esgotem e morram, para então tomar posse
                  de sua alma e de sua personalidade, se esta ainda estiver viva, voando por aí com todos os seus gostos, aversões e com
                  sua consciência. Uma curiosa lenda, e não sei de inseto
                  mortal o suficiente com o qual relacioná-la. Dei a esse negro
                  doente (cujo nome é Mevana) uma boa dose de quinino e extraí
                  uma amostra de seu sangue para exame, mas não obtive
                  progresso. Existirá, certamente, algum germe estranho
                  envolvido, mas não posso identificá-lo sequer remotamente. A
                  coisa mais próxima é o bacilo que se encontra em bois,
                  cavalos e cachorros picados pela tsé-tsé; porém moscas tsé-tsé
                  não infectam seres humanos, e estamos muito ao norte para
                  encontrá-las por aqui. 
                   
                  
                   
                  Entretanto
                  o importante é que me decidi sobre como matar Moore. Se esta
                  região interior tem insetos tão venenosos como os nativos
                  afirmam, providenciarei para que receba um suprimento deles de
                  uma fonte insuspeita, e com muitas garantias de que são
                  inofensivos. Certo de que ele negligenciará toda cautela
                  quanto ao estudo de uma espécie desconhecida, e então
                  veremos como a natureza segue seu curso! Não será difícil
                  achar um inseto que tanto amedronta os negros. Primeiro,
                  observar o que acontece ao pobre Mevana, e então encontrar
                  meus próprios emissários mortais. 
                   
                  
                   
                  7
                  de janeiro – Mevana não melhorou, embora eu lhe tenha
                  aplicado todas as antitoxinas que conheço. Tem acessos de
                  tremor, nos quais o ouvimos arengar medrosamente sobre o modo
                  como sua alma passará, quando ele morrer, para o inseto que o
                  picou; mas entre os acessos permanece numa espécie de
                  semiestupor. Pulsação cardíaca ainda forte, de modo que
                  poderei ajudá-lo. Tentarei, pois ele provavelmente pode me
                  guiar melhor do que qualquer outro até a região onde foi
                  picado. 
                   
                  
                   
                  Enquanto
                  isso, escreverei ao doutor Lincoln, meu antecessor por aqui,
                  pois Allen, o administrador chefe, diz que ele tinha um
                  profundo conhecimento das doenças locais. Ele deverá saber
                  sobre a mosca-diabo, se é que algum branco sabe. Está em
                  Nairobi atualmente, e um mensageiro negro deverá me trazer
                  uma resposta dentro de uma semana, usando a ferrovia para a
                  metade do trajeto. 
                   
                  
                   
                  10
                  de janeiro – Paciente estável, mas encontrei o que queria!
                  Foi num antigo volume dos registros locais de saúde que eu
                  tinha estado a percorrer com diligência enquanto esperava por
                  notícias de Lincoln. Trinta anos atrás teria ocorrido uma
                  epidemia que matou milhares de nativos em Uganda, e fora
                  definitivamente atribuída a uma rara mosca chamada Glossina
                  palpalis, um tipo de primo da Glossina norsitans
                  ou tsé-tsé. Vive nos arbustos às margens de lagos e rios e
                  se alimenta do sangue de crocodilos, antílopes e grandes mamíferos.
                  Quando esses animais portam o germe da tripanossomíase, ou
                  doença-do-sono, ela o adquire, desenvolvendo agudo poder de
                  infecção num período de trinta e um dias. Então, durante
                  setenta e cinco dias, passa a representar morte certa para
                  qualquer um ou qualquer coisa que venha a picar. 
                   
                  
                   
                  Sem
                  dúvida, essa deve ser a mosca-diabo de que falam os negros.
                  Agora sei o que estou buscando. Espero que Mevana se levante.
                  Devo receber notícias de Lincoln em quatro ou cinco dias; é
                  grande a sua reputação em lidar com coisas desse tipo. Meu
                  problema maior será passar as moscas a Moore sem que ele as
                  reconheça. Com sua maldita aplicação acadêmica, não seria
                  difícil que ele já as conhecesse desde que houvesse
                  registros a respeito. 
                   
                  
                   
                  II 
                   
                  
                   
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                  de janeiro – Acabo de receber notícias de Lincoln, que
                  confirma tudo o que os registros dizem acerca da Glossina
                  palpalis. Ele dispõe de um remédio para a doença-do-sono
                  que obteve sucesso num grande número de casos, desde que
                  ministrado em tempo. Injeções intramusculares contra a infecção.
                  Uma vez que Mevana foi picado há dois meses, não sei que
                  efeito terá; mas Lincoln diz que sabe de casos que se
                  arrastaram por dezoito meses, de modo que eu talvez não
                  esteja tão atrasado. Lincoln enviou um pouco do material, e
                  me apressei a dar a Mevana uma dose reforçada. Em estupor
                  agora. Trouxeram da aldeia a sua primeira esposa, mas ele
                  sequer a reconhece. Caso se recupere, certamente poderá
                  mostrar-me o lugar onde estão as moscas. É um grande caçador
                  de crocodilos, segundo informações, e conhece Uganda
                  com a palma da mão. Vou lhe dar outra injeção amanhã. 
                   
                  
                   
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                  de janeiro – Mevana parece hoje um pouco mais vívido, mas
                  sua pulsação tem se atrasado um pouco. Manterei as injeções,
                  mas evitarei sobrecargas. 
                   
                  
                   
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                  de Janeiro – Melhoras realmente notáveis, hoje. Mevana
                  abriu os olhos e mostrou sinais de efetiva consciência,
                  embora ofuscada, após a injeção. Espero que Moore nada
                  saiba sobre a triparsamida. Há boas chances de que não
                  saiba, desde que nunca se dedicou à medicina. A língua de
                  Mevana parece paralisada, mas creio que isso se corrigirá se
                  eu ao menos conseguir despertá-lo. Até que apreciaria um bom
                  sono eu mesmo, mas não dessa natureza! 
                   
                  
                   
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                  de janeiro – Mevana quase curado! Com mais uma semana, e
                  poderei fazer com que me leve até a selva. Estava amedrontado
                  quando chegou, com medo de que a mosca tomasse sua
                  personalidade depois da morte; mas finalmente se animou,
                  quando lhe contei que ficaria bom. Sua esposa, Ugowe, cuida
                  bem dele agora, de modo que posso descansar um pouco. Então,
                  aos enviados da morte! 
                   
                  
                   
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                  de fevereiro – Mevana está bem agora, e conversei com ele a
                  respeito de caçar moscas. Ele teme aproximar-se do lugar onde
                  elas o picaram, mas estou jogando com sua gratidão. No mais,
                  ele supõe que posso tanto afastar doenças quanto curá-las.
                  Sua coragem envergonharia um homem branco; não há dúvida
                  de que ele irá. Posso me ausentar, dizendo ao administrador
                  chefe que será uma viagem a serviço dos interesses sanitários. 
                   
                  
                   
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                  de março – Em Uganda, finalmente! Tenho cinco rapazes, além
                  de Mevana, mas são todos de Oromo. Não houve como contratar
                  os negros locais, nem convencê-los a se aproximarem da região,
                  depois do que aconteceu com Mevana. Esta selva é um lugar
                  pestilento, fumegante de vapores miasmáticos. Todos os
                  lagos parecem estagnados. Em certo ponto, descobrimos traços
                  de ruínas ciclópicas que fizeram mesmo os oromenses recuar
                  num círculo aberto. Dizem que esses megálitos são mais
                  antigos que o próprio homem e que costumavam servir como
                  abrigo ou posto avançado dos “Pescadores de Fora” – o
                  que quer que isso signifique – e dos deuses malignos Tsathoggwa e
                  Cthulhu. Hoje em dia, diz-se que tenham uma influência
                  malévola e que, de algum modo, estejam conectados com as
                  moscas-diabo. 
                   
                  
                   
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                  de março – Atingimos o lago Mlolo nesta manhã, onde Mevana
                  foi picado. Uma coisa diabólica, coberta por uma crosta verte
                  e repleta de crocodilos. Mevana armou uma pequena arapuca para
                  moscas, feita de arame, usando carne de crocodilo como isca.
                  Possui uma abertura estreita, e uma vez que algum aventureiro
                  penetre não terá condições de sair. São tão estúpidas
                  quanto mortais, e loucas por carne fresca ou uma tigela de
                  sangue. Espero que obtenhamos um bom suprimento. Decidi que
                  preciso fazer experiências com elas, encontrando um modo de
                  alterar sua aparência a um extremo que Moore não as reconheça.
                  Possivelmente poderei cruzá-las com outras espécies, obtendo
                  um híbrido estranho cuja capacidade de infecção não será
                  diminuída. Veremos. Preciso esperar, mas agora não tenho
                  pressa. Quando estiver pronto, farei com que Mevana me traga
                  um pouco de carne infectada para alimentar meus enviados da
                  morte. E, então, ao correio. Não deve haver problemas em
                  captar a infecção, pois este país é um verdadeiro ninho de
                  pestes. 
                   
                  
                   
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                  de março – Sorte. Duas gaiolas cheias. Cinco vigorosos espécimes
                  com asas que cintilam como diamantes. Mevana os está
                  guardando num grande pote com uma tampa segura, e penso que os
                  apanhamos a tempo. Poderemos levá-los a M’gonga sem
                  dificuldades. Estocando carne de crocodilo suficiente para
                  alimentá-los. Sem dúvida, toda ela ou a maior parte se acha
                  infectada. 
                   
                  
                   
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                  de abril – De volta a M’gonga e a trabalhar no laboratório.
                  Solicitei ao doutor Joost, em Pretória, algumas tsé-tsés
                  para experimentos de hibridização. Tal cruzamento, se
                  funcionar, deverá produzir qualquer coisa bem difícil de
                  reconhecer e, ao mesmo tempo, tão mortal quanto as palpalis.
                  Se não der certo, tentarei com outros dípteros do interior,
                  e já mandei pedir ao doutor Vandervelde, em Nyangwe, alguns
                  tipos do Congo. Não terei que mandar Mevana em busca de mais
                  carne corrompida, pois creio que posso manter, por tempo
                  indefinido, culturas em tubo do germe Trypanossoma
                  gambiense, retirado da carne que conseguimos no mês
                  passado. Quando chegar a hora, corromperei alguma carne fresca
                  e alimentarei meus arautos alados com uma boa dose. Então, bon
                  voyage para eles! 
                   
                  
                   
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                  de junho – Minhas tsé-tsés enviadas por Joost chegaram
                  hoje. Gaiolas para criação já estavam prontas há muito, e
                  agora estou fazendo seleções. Pretendo usar raios
                  ultravioletas para acelerar o ciclo vital. Por sorte, disponho
                  do aparato necessário no meu equipamento regular.
                  Naturalmente, não digo a ninguém o que estou fazendo. A
                  ignorância dos poucos homens daqui torna fácil esconder
                  minhas intenções e fingir que estudo espécies existentes
                  com propósitos científicos. 
                   
                  
                   
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                  de junho – O cruzamento é fértil! Grandes depósitos de
                  ovos na última quarta-feira, e agora tenho larvas excelentes.
                  Se os insetos maduros parecem tão estranhos quanto elas, nada
                  mais preciso fazer. Preparando gaiolas separadas e numeradas
                  para os diferentes espécimes. 
                   
                  
                   
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                  de julho – Novos híbridos se formaram! O disfarce é
                  excelente quanto à forma, mas o lustro das asas sugere a palpalis.
                  O tórax possui ligeiras sugestões das listras da tsé-tsé.
                  Discretas variações entre os indivíduos. Tenho-as
                  alimentado com carne corrompida de crocodilo, e depois que a
                  infecciosidade se desenvolver vamos testá-las em alguns dos
                  negros, com ares, é claro, de acidente. Há tantas moscas
                  moderadamente venenosas por aqui que se pode fazer isso com
                  facilidade e sem despertar suspeitas. Libertarei um inseto em
                  minha sala de jantar hermeticamente protegida, quando Batta,
                  meu camareiro, trouxer o café da manhã, mantendo-me em
                  guarda eu mesmo. Quando ela fizer seu trabalho, vou capturá-la
                  ou esmagá-la – uma tarefa simples, devido à conhecida
                  estupidez – ou asfixiá-la enchendo o cômodo de gás clorídrico.
                  Se não der certo da primeira vez, tentarei de novo até que dê.
                  Decerto, terei à mão a triparsamida, para o caso de ser
                  picado – mas tomarei cuidado para não o ser, pois nenhum
                  remédio é garantido. 
                   
                  
                   
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                  de agosto – Infecciosidade amadurecida, e providenciei para
                  que Batta fosse picado de jeito. Apanhei a mosca sobre sua
                  pele, devolvendo-a à gaiola. Amenizei a dor com iodo, e o
                  pobre diabo ainda ficou grato pelo serviço. Esses serão os
                  únicos testes que ousarei fazer por aqui. No entanto, se
                  precisar de outros, levarei alguns espécimes até Ukala e
                  obterei dados adicionais. 
                   
                  
                   
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                  de agosto – Falhei com Gamba, mas recapturei a mosca viva.
                  Batta ainda parece bem, como de costume, e não sente dor nas
                  costas onde foi picado. Esperarei, antes de tentar em Gamba
                  outra vez. 
                   
                  
                   
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                  de agosto – Remessa de insetos por Vandervelde, finalmente.
                  Sete espécies claramente distintas, algumas mais ou menos
                  venenosas. Mantenho-as bem alimentadas para o caso de o
                  cruzamento com a tsé-tsé não funcionar. Algumas delas
                  parecem bem diferentes da palpalis, mas o problema é
                  que podem não produzir um cruzamento fértil com ela. 
                   
                  
                   
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                  de agosto – Atingi Gamba hoje, mas tive de matar a mosca que
                  pousou sobre ele. Ela o mordeu no ombro esquerdo. Tratei a
                  picada, e Gamba ficou tão agradecido quanto Batta. Nenhuma
                  alteração em Batta. 
                   
                  
                   
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                  de agosto – Gamba ainda inalterado, e Batta também. Tenho
                  experimentado com uma nova forma de disfarce para suplementar
                  a hibridização – um tipo de tintura para mudar o brilho
                  denunciador das asas da palpalis. Um matiz azulado
                  seria bom, algo que eu pudesse borrifar sobre todo um enxame
                  de insetos. Iniciarei investigando coisas como o azul-da-prússia
                  e o azul-marinho, sais de ferro e cianogênio. 
                   
                  
                   
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                  de agosto – Batta se queixou de uma dor nas costas hoje. As
                  coisas podem estar em andamento. 
                   
                  
                   
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                  de setembro – Obtive razoável progresso em meus
                  experimentos. Batta exibe sinais de letargia e diz que suas
                  costas doem o tempo todo. Gamba começa a sentir desconforto
                  no ombro mordido. 
                   
                  
                   
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                  de setembro – Batta piorando mais e mais e começando a se
                  amedrontar por causa da picada. Acha que pode ser uma
                  mosca-diabo e me implorou que a matasse, pois me viu colocá-la
                  na gaiola, até que aleguei que ela já tinha morrido há
                  muito. Disse-me que não pretendia que sua alma passasse para
                  ela após sua morte. Dou-lhe injeções de água pura com uma
                  seringa para manter seu moral. Evidentemente a mosca conserva
                  todas as propriedades da palpalis. Gamba abatido também,
                  e repetindo todos os sintomas de Batta. Posso decidir-me e lhe
                  dar uma chance com a triparsamida, para o caso de a mosca
                  provar sua eficiência. No entanto deixarei que Batta
                  prossiga, pois quero ter uma idéia aproximada de quanto tempo
                  um caso leva para terminar. 
                   
                  
                   
                  Experimentos
                  com tintura revelando-se profícuos. Uma forma isomérica de
                  ferro-ciano pode ser dissolvida em álcool e borrifada sobre
                  os insetos com um efeito esplêndido. Ela mancha de azul as
                  asas sem afetar muito o tórax escuro e não se apaga quando
                  abluo os espécimes com água. Com esse disfarce, penso que
                  poderei usar os híbridos atuais da tsé-tsé, sem me
                  incomodar com outros experimentos. Por mais sagaz, Moore não
                  poderia reconhecer uma mosca de asas azuladas com um meio tórax
                  de tsé-tsé. Naturalmente, mantenho todo esse assunto de
                  tingimento sob segredo. Mais tarde, nada deverá me ligar às
                  moscas azuis. 
                   
                  
                   
                  9
                  de outubro – Batta caiu em letargia e se recolheu ao leito.
                  Tenho ministrado triparsamida em Gamba por duas semanas e
                  suponho que se recobrará. 
                    
                  25
                  de outubro – Batta muito por baixo, mas Gamba praticamente
                  bem. 
                   
                  
                   
                  18
                  de novembro – Batta morreu ontem, e uma coisinha aconteceu
                  que me deu um grande estremecimento, em vista das lendas
                  nativas e dos receios do próprio Batta. Quando retornei ao
                  laboratório depois de sua morte, ouvi um zumbido e um bulício
                  singulares na gaiola 12, onde estava a mosca que picara Batta.
                  A criatura parecia frenética, mas se aquietou quando apareci,
                  brilhando sobre a grade de arame e olhando para mim de um modo
                  estranhíssimo. Lançava as patas sobre os olhos, como se
                  estivesse desnorteada. Quando voltei, após ter jantado com
                  Allen, a coisa estava morta. Evidentemente teria enlouquecido
                  e morrido de tanto se chocar contra a gaiola. 
                   
                  
                   
                  Certamente
                  é peculiar que isso tenha ocorrido logo que Batta morreu. Se
                  algum negro o tivesse visto, teria creditado o fato à absorção
                  da alma do pobre diabo. Dentro de pouco tempo colocarei meus híbridos
                  azulados a caminho. O poder de morte dos híbridos parece um
                  pouco maior do que o da palpalis pura, suponho. Batta
                  morreu três meses e oito dias após a infecção – mas,
                  naturalmente, há sempre uma larga margem de incerteza. Quase
                  desejaria ter deixado o caso de Gamba prosseguir. 
                   
                  
                   
                  5
                  de dezembro – Ocupado em planejar o modo como enviarei meus
                  arautos a Moore. Preciso fazer com que pareça terem vindo de
                  algum entomologista desinteressado, o qual teria lido os seus Dípteros
                  da África Central e Meridional e acreditaria que ele se
                  interessasse em estudar esta “espécie nova e não
                  identificada”. Deverá haver também amplas garantias de que
                  a mosca de asas azuis seja inofensiva, como o prova a longa
                  experiência dos nativos. Moore baixará a guarda, e uma das
                  moscas certamente o pegará mais cedo ou mais tarde, embora não
                  se possa dizer quando. 
                   
                  
                   
                  Terei
                  de confiar nas cartas de amigos de Nova Iorque (ainda falam de
                  Moore, de tempos em tempos) para me manter informado acerca
                  dos últimos resultados, embora eu ouse dizer que os jornais
                  anunciarão sua morte. Sobretudo, preciso mostrar agora
                  interesse em seu caso. Enviarei as moscas durante uma viagem,
                  mas não devo ser reconhecido quando o fizer. O melhor plano
                  será tirar umas longas férias no interior, deixar a barba
                  crescer, postar a encomenda em Ukala, passando por lá como um
                  entomologista visitante, e retornar para aqui depois de raspar
                  a barba. 
                   
                  
                   
                  12
                  de abril de 1930 – De volta a M’gonga depois de minha
                  longa viagem. Tudo correu da melhor maneira, com precisão de
                  relógio. Enviei as moscas a Moore sem deixar rastros. Tirei férias
                  natalinas, em 15 de dezembro, e parti de imediato com o
                  material preparado. Providenciei uma excelente embalagem para
                  correio, com espaço bastante para incluir alguma carne de
                  crocodilo contaminada, para a alimentação dos enviados. Até
                  o fim de fevereiro, já tinha barba bastante para me passar
                  por um perfeito Van Dyke. 
                   
                  
                   
                  Apareci
                  em Ukala, a 19 de março, e datilografei uma carta para Moore
                  na máquina do entreposto comercial. Assinei como “Nevil
                  Wayland-Hall”, suposto entomologista de Londres. Penso ter
                  conseguido o tom certo: interesse de parceiro cientista e tudo
                  o mais. Fui artisticamente casual ao enfatizar a “total ausência
                  de periculosidade” dos espécimes. Ninguém suspeitou de
                  nada. Barbeei-me assim que cheguei ao mato, de modo que não
                  se notasse nenhuma irregularidade quando estivesse de volta.
                  Prescindi de carregadores nativos, exceto num pequeno trecho
                  pantanoso. Sou capaz de prodígios com uma simples mochila, e
                  meu senso de direção é bom. Por sorte, estou acostumado a
                  tais viagens. Expliquei minha ausência prolongada, alegando
                  uma ponta de febre e alguns erros de direção enquanto
                  atravessava o mato. 
                   
                  
                   
                  Mas
                  agora vem, psicologicamente, a pior parte – esperar notícias
                  de Moore sem demonstrar ansiedade. Naturalmente, ele pode
                  muito bem escapar às picadas até que o veneno se esgote; mas
                  com o seu estouvamento as chances são de uma para cem contra
                  ele. Não me arrependo de nada. Depois do que me fez, ele
                  merece isso e muito mais. 
                   
                  
                   
                  30
                  de junho de 1930 – Ufa! O primeiro passo foi dado! Acabo de
                  ouvir casualmente de Dyson, da Columbia, que Moore recebeu da
                  África algumas moscas novas, de asas azuis, e que está
                  absolutamente intrigado com elas! Nenhuma palavra sobre
                  picadas; mas, se conheço o jeito relaxado de Moore, como
                  penso conhecer, não tardará a acontecer alguma coisa. 
                   
                  
                   
                  27
                  de agosto de 1930 – Carta de Morton, de Cambridge. Diz que
                  Moore escreveu sobre sentir-se abatido e fala de uma picada de
                  inseto na parte de trás do pescoço – de um curioso espécime
                  novo que recebeu por meados de junho. Terei tido sucesso?
                  Aparentemente Moore não conecta a mordida com sua fraqueza.
                  Se a coisa for de verdade, então Moore foi picado bem dentro
                  do período de infecciosidade dos insetos. 
                   
                  
                   
                  12
                  de setembro de 1930 – Vitória! Outra linha de Dyson diz que
                  Moore se acha num estado alarmante. Ele agora relaciona sua
                  doença com a picada, que recebeu no entardecer de 19 de
                  junho, e está completamente confuso quanto à identidade do
                  inseto. Tem tentado obter contato com o tal “Nevil
                  Wayland-Hall”, que lhe mandou a encomenda. Das cem que lhe
                  enviei, cerca de vinte e cinco parecem ter chegado vivas.
                  Algumas escaparam ao prazo para a mordida, mas várias larvas
                  surgiram de ovos colocados desde o dia da postagem. Ele está,
                  Dyson diz, encubando cuidadosamente essas larvas. Quando
                  amadurecerem, suponho que identificará a hibridização da tsé-tsé
                  palpalis, mas isso de pouco lhe servirá. No entanto se
                  perguntará por que as asas azuis não se transmitem por
                  hereditariedade! 
                   
                  
                   
                  8
                  de novembro de 1930 – Cartas de meia dúzia de amigos falam
                  da séria enfermidade de Moore. A de Dyson chegou hoje. Diz
                  que Moore está absolutamente desnorteado sobre os híbridos
                  que surgiram das larvas e começou a pensar que os pais
                  obtiveram suas asas azuis por algum processo artificial. Passa
                  a maior parte do tempo na cama agora. Nenhuma menção ao uso
                  de triparsamida. 
                   
                  
                   
                  13
                  de fevereiro de 1931 – Contratempos! Moore afunda e parece não
                  conhecer nenhum remédio, mas creio que suspeita de um. Recebi
                  uma carta bastante animada de Morton, no mês passado, que não
                  mencionava Moore; e agora Dyson escreve, algo constrangido,
                  que Moore está elaborando teorias sobre o assunto. Tem
                  procurado “Wayland-Hall”, por meio do telégrafo, em
                  Londres, Ukala, Nairobi, Mombaça e outros lugares; e,
                  naturalmente, nada encontra. Julgo que terá aventado com
                  Dyson acerca do suspeito, mas que Dyson ainda não acredita.
                  Temo que Morton acredite. 
                   
                  
                   
                  Vejo
                  que o melhor é traçar planos para fugir daqui e camuflar
                  minha identidade. Que fim para uma carreira que se iniciou tão
                  bem! Mais um trabalho de Moore; mas agora está pagando por
                  ele adiantado! Creio que retornarei à África do Sul. E,
                  enquanto isso, tratarei discretamente de depositar algum fundo
                  lá a crédito de meu novo eu, “Frederick Nasmyth Mason,
                  de Toronto, Canadá, agente de minerações”. Estabelecerei
                  uma nova assinatura, para identificação. Se nunca tiver de
                  dar esse passo, poderei facilmente transferir de volta os
                  fundos para minha identidade atual. 
                   
                  
                   
                  15
                  de agosto de 1931 – Meio ano já, e ainda o suspense. Dyson
                  e Morton, bem como vários outros amigos, parecem ter
                  parado de me escrever. O doutor James, de São Francisco,
                  recebe vez por outra notícias dos amigos de Moore e diz que
                  Moore se acha num quase contínuo estado de coma. Não tem
                  podido andar desde maio. Enquanto conseguia falar, queixava-se
                  de frio. Agora não consegue falar, embora se pense que ainda
                  tenha relances de consciência. Sua respiração é rápida e
                  curta e pode ser ouvida à distância. Nenhuma questão além
                  do Trypanossoma gambiense lhe interessa agora; mas ele
                  resiste melhor do que os negros por aqui. Três meses e oito
                  dias acabaram com Batta, e aqui está Moore, vivo, mais de um
                  ano após ter sido picado. Ouvi rumores, no mês passado,
                  sobre uma intensa busca por “Wayland-Hall” nos arredores
                  de Ukala. No entanto não acho que haja necessidade de me
                  preocupar, pois não existe absolutamente nada que me ligue a
                  esse negócio. 
                   
                  
                   
                  7
                  de outubro de 1931 – Acabou-se, finalmente! Notícias na Mombasa
                  Gazette. Moore morreu a 20 de setembro, depois de vários
                  acessos de tremor e com uma temperatura largamente abaixo do
                  normal. E foi tudo! Eu disse que o pegaria, e o fiz! O jornal
                  traz um relato de três colunas acerca de sua doença e morte,
                  e sobre a improfícua busca por “Wayland-Hall”.
                  Obviamente, Moore era na África um personagem maior do que
                  pensei. O inseto que o picou foi agora identificado
                  adequadamente, a partir dos espécimes sobreviventes e das
                  larvas desenvolvidas, e a tintura das asas também foi
                  detectada. Notou-se, de modo geral, que as moscas teriam sido
                  preparadas e enviadas com o intuito de matar. Moore, ao que
                  parece, comunicou certas suspeitas a Dyson, mas este último, junto com a polícia, tem mantido segredo, devido à
                  ausência de provas. Todos os inimigos de Moore têm sido
                  observados, e a Associated Press aventa que “uma investigação,
                  possivelmente envolvendo um médico eminente que se acha
                  exterior, se seguirá”. 
                   
                  
                   
                  Uma
                  coisa bem no finalzinho da notícia (sem dúvida a invenção
                  romanesca de algum jornalista menor) me trouxe um curioso
                  estremecimento, em vista das lendas dos negros e do modo como
                  as moscas se tornaram indóceis quando Batta morreu. Parece
                  que um incidente estranho teve lugar na noite em que Moore
                  morreu. Dyson foi despertado pelo zunido de uma mosca de asas
                  azuis, a qual imediatamente voou pela janela, logo
                  antes de a enfermeira telefonar dando notícias da casa de
                  Moore, milhas distante, no Brooklyn. 
                   
                  
                   
                  Mas
                  o que mais me diz respeito é o final africano do caso.
                  Pessoas em Ukala se lembram do estrangeiro barbado que
                  datilografou a carta e mandou o pacote, e os investigadores
                  estão varrendo o país em busca de quaisquer negros que o
                  tenham ajudado. Não empreguei muitos, mas se os oficiais
                  questionarem os nativos que me conduziram através do cinturão
                  da selva N’Kini, terei de explicar mais do que pretendo. Ao
                  que parece, chegou a hora de desaparecer. Portanto, amanhã
                  creio que pedirei demissão e me prepararei para viajar a
                  algum lugar desconhecido. 
                   
                  
                   
                  9
                  de novembro de 1931 – Trabalho duro para manejar minha
                  demissão, mas a liberação veio hoje. Não quis agravar
                  suspeitas arribando imediatamente. Na semana passada ouvi de
                  James alguma coisa sobre a morte de Moore, mas não mais do
                  que viera nos jornais. As pessoas de seu círculo em Nova York
                  se mostram bastante reticentes quanto aos detalhes, embora
                  todos falem de uma investigação. Nenhuma palavra de meus
                  amigos do Leste. Moore deve ter semeado suspeitas perigosas ao
                  seu redor antes de perder a consciência, mas não existe a
                  menor prova que ele pudesse ter aduzido. 
                   
                  
                   
                  Mesmo
                  assim, não quero correr riscos. Na quinta-feira partirei para
                  Mombaça e uma vez lá tomarei um vapor até Durban, descendo
                  pela costa. Depois disso sumirei de vista. Porém logo em
                  seguida o agente de minerações Frederick Nasmyth Mason, de
                  Toronto, aparecerá em Johannesburg. 
                   
                  
                   
                  Seja
                  este o final de meu diário. Se no fim eu não estiver sob
                  suspeita, servirá ao seu propósito original, após minha
                  morte, e revelará o que de outro modo não seria conhecido.
                  Se, por outro lado, tais suspeitas se materializarem e
                  persistirem, confirmará e clarificará as acusações vagas,
                  preenchendo importantes e desconcertantes lacunas.
                  Naturalmente, se o perigo me ameaçar, terei de destruí-lo. 
                   
                  
                   
                  Bem,
                  Moore está morto, como muito bem merecia estar. Agora o
                  doutor Thomas Slauenwite está morto também. E quando o corpo
                  que pertenceu a Thomas Slauenwite estiver
                  morto, o público poderá conhecer este relato. 
                   
                  
                   
                  III 
                   
                  
                   
                  15
                  de Janeiro de 1932 – Um novo ano, e uma relutante reabertura
                  deste diário. Desta vez estou escrevendo unicamente para
                  aliviar meu espírito, pois seria absurdo imaginar que o caso
                  não esteja definitivamente encerrado. Instalei-me no Hotel
                  Vaal, em Johannesburg, sob meu novo nome, e ninguém até
                  agora duvidou de minha identidade. Tive algumas conversas
                  inconclusivas sobre negócios, para reforçar meu papel como
                  agente de mineração, e creio que possa até entrar nesse
                  ramo. Mais tarde irei a Toronto e semearei algumas evidências
                  acerca de meu passado fictício. 
                   
                  
                   
                  Mas
                  o que me preocupa foi um inseto que invadiu meu quarto por
                  volta do meio-dia de hoje. Por certo tenho tido toda sorte de
                  pesadelos com moscas azuis ultimamente, mas esses eram previsíveis
                  em vista de minha permanente tensão nervosa. Esta coisa, porém,
                  era uma verdade da vigília, e estou completamente
                  desorientado a seu respeito. Zumbiu em torno de minha estante
                  por um bom quarto de hora e se esquivou a qualquer tentativa
                  de capturá-la ou de matá-la. A coisa mais inusitada era a
                  sua cor e o seu aspecto, pois tinha asas azuis e era, sob
                  todos os títulos, uma duplicata de meus enviados híbridos da
                  morte. Se poderia ser de fato um deles não tenho a menor idéia.
                  Tive controle sobre todos os híbridos – manchados e não
                  manchados – que não enviei a Moore, e não posso me lembrar
                  de nenhuma evasão. 
                   
                  
                   
                  Seria
                  isso uma completa alucinação? Ou algum dos espécimes que
                  escaparam no Brooklyn quando Moore foi picado poderia ter
                  achado seu caminho de volta para a África? Houve aquela história
                  absurda da mosca que despertou Dyson quando Moore morreu. Mas,
                  afinal, a sobrevivência e o retorno de alguns dos bichos não
                  são de todo impossíveis. É perfeitamente possível que o
                  azul tenha aderido às asas, pois o pigmento que apliquei era
                  tão permanente quanto a tatuagem. Por eliminação, essa
                  pareceria ser a única explicação racional para a coisa,
                  conquanto seja bastante curioso que o bicho tenha chegado a
                  tal extremidade no sul. Possivelmente se tratará de algum
                  instinto inerente ao ramo das tsé-tsés. Afinal, essa parte
                  do grupo pertence à África do Sul. 
                   
                  
                   
                  Preciso
                  me precaver contra picadas. Naturalmente o veneno original (se
                  esta for realmente uma das moscas que escaparam de Moore) se
                  esvaiu eras atrás; mas o exemplar deve ter se alimentado
                  quando retornou da América e pode muito bem ter vindo através
                  da África Central, readquirindo a infecciosidade. Com efeito,
                  é mais provável do que improvável. Para a palpalis
                  metade de sua hereditariedade a levaria de volta a Uganda e a
                  todos os germes da tripanossomíase. Ainda tenho um
                  pouco de triparsamida – não suportaria destruir minha caixa
                  de remédios, por mais incriminadora que seja – mas, desde
                  que comecei a ler sobre o assunto, já não estou mais tão
                  seguro da ação da droga quanto estive no começo. A mesma
                  concede ao indivíduo uma oportunidade de lutar, e certamente
                  salvou Gamba, mas sempre resta uma imensa probabilidade de
                  fracasso. 
                   
                  
                   
                  É
                  diabolicamente estranho que essa mosca tenha entrado bem em
                  meu quarto, de todos os lugares da imensa extensão africana!
                  Parece conduzir ao extremo uma coincidência. Suponho que, se
                  retornar, eu certamente a matarei. Estou surpreso de que me
                  tenha escapado hoje, pois ordinariamente esses tipos são
                  bastante estúpidos e fáceis de apanhar. Seria uma pura ilusão,
                  afinal de contas? Certamente o calor está me afetando nestes
                  últimos tempos, como nunca o fez antes, mesmo lá em Uganda. 
                   
                  
                   
                  16
                  de janeiro – Estarei enlouquecendo? A mosca retornou nesta
                  tarde e agiu de um modo anormal, que me pareceu sem pés nem
                  cabeça. Somente uma ilusão de minha parte poderia explicar o
                  que aquela peste zunidora parecia estar fazendo. Surgiu de
                  lugar nenhum e foi direto para minha estante, fazendo círculos
                  e círculos diante de uma cópia dos Dípteros da África
                  Central e Meridional, de Moore. De vez em quando,
                  coruscava em cima ou atrás do volume, mas no final dardejava
                  em direção a mim e se retirava antes que eu pudesse
                  atingi-la com algum papel dobrado. Nunca se ouviu falar de
                  semelhante esperteza com relação aos dípteros notoriamente
                  estúpidos da África. Por quase meia hora tentei acertar a
                  maldita, mas por fim ela disparou janela a fora, através de
                  um buraco no mosquiteiro que eu não havia notado. Por vezes
                  imaginei que estivesse a zombar de mim, entrando no alcance de
                  minha arma e então, com muita destreza, se esquivando quando
                  eu a atacava. Preciso ter mais controle sobre minha consciência. 
                   
                  
                   
                  17
                  de Janeiro – Ou eu estou louco ou o mundo foi vítima de uma
                  súbita suspensão das leis da probabilidade, conforme as
                  conhecemos. A mosca infame surgiu de algum lugar logo antes do
                  meio-dia e começou a zumbir em torno da cópia dos Dípteros
                  de Moore que está em minha estante. Outra vez tentei
                  apanhá-la, e outra vez a experiência de ontem se repetiu.
                  Finalmente a peste disparou em direção a um tinteiro sobre
                  minha mesa e enfiou nele as patas e o tórax, mantendo limpas
                  as asas. Então voou até o teto e pousou, começando a
                  rastejar e deixando um rastro de tinta. Após algum tempo
                  estremeceu um pouco e fez uma única mancha de tinta,
                  desconectada do rastro. Por último desceu direto até meu
                  rosto e, finalmente, zumbindo, sumiu de vista antes que eu
                  pudesse pegá-la. 
                   
                  
                   
                  Alguma
                  coisa em tudo isso me soou sinistramente monstruosa e anormal,
                  e muito mais do que eu poderia explicar a mim mesmo. Olhado
                  sob diferentes ângulos, o rastro de tinta no teto pareceu-me
                  cada vez mais familiar, e de repente me ocorreu que formava um
                  ponto de interrogação absolutamente perfeito. Que maligno
                  truque poderia ser mais apropriado? Espanto-me de não ter
                  desmaiado. No entanto os ajudantes do hotel não o notaram. Não
                  viram a mosca nesta tarde e neste anoitecer, mas estou
                  mantendo meu tinteiro bem fechado. Penso que o extermínio de
                  Moore esteja me perseguindo e me proporcionando mórbidas
                  alucinações. Talvez não haja mosca nenhuma. 
                   
                  
                   
                  18
                  de janeiro – Em que estranho inferno de pesadelo vivo
                  estarei mergulhado? O que ocorreu hoje é algo que não
                  poderia acontecer normalmente; e, no entanto, um empregado do
                  hotel viu as marcas no teto e admite sua realidade. Por volta
                  das onze da manhã, quando eu trabalhava num manuscrito,
                  alguma coisa se atirou para dentro do tinteiro pela fração
                  de um segundo e relampejou para o alto outra vez, antes que eu
                  pudesse ver o que era. Erguendo os olhos, vi no teto aquela
                  mosca infernal, como tinha visto antes, a rastejar e a traçar
                  uma nova trilha de curvas e volteios. Não havia nada que eu
                  pudesse fazer, mas enrolei um jornal na expectativa de atingir
                  a criatura caso ela se aproximasse o bastante. Depois de ter
                  feito várias voltas no teto, voou para um canto escuro e
                  desapareceu. E quando olhei de novo para o emboço desfigurado
                  notei que a nova trilha de tinta compunha a enorme e inequívoca
                  imagem do algarismo 5. 
                   
                  
                   
                  Por
                  um tempo fiquei quase inconsciente diante de uma onda de
                  inominável ameaça da qual não me dava conta totalmente. Então
                  convoquei toda a minha resolução e tomei uma atitude. Fui até
                  uma loja de materiais químicos e comprei resina e outras
                  coisas necessárias à preparação de uma armadilha pegajosa,
                  e também um tinteiro similar. Retornando ao quarto, enchi o
                  tinteiro com a mistura viscosa e o coloquei aberto no ponto
                  onde estivera o original. Em seguida tentei me concentrar em
                  alguma leitura. Por volta das três horas ouvi de novo o
                  maldito inseto e o vi circulando em torno do tinteiro. Desceu
                  até a superfície viscosa, mas não a tocou; e logo após
                  avançou em minha direção, recuando antes que eu o
                  atingisse. Então foi até à estante e circulou em torno do
                  tratado de Moore. Há alguma coisa de profunda e diabólica no
                  modo como o intruso esvoaça perto desse livro. 
                   
                  
                   
                  A
                  pior parte foi a última. Abandonando o livro de Moore, o
                  inseto voou em direção à janela e começou a se chocar
                  ritmadamente contra a tela de arame. Ouvia-se uma série de
                  batidas e então uma série de igual extensão e depois uma
                  pausa e assim por diante. Alguma coisa nessa performance me
                  manteve paralisado por alguns instantes, mas logo em seguida
                  disparei para a janela e tentei matar aquele bicho nocivo.
                  Como sempre, nenhum resultado. Ele simplesmente voou através
                  do cômodo em direção a uma lâmpada e começou a bater no
                  mesmo ritmo contra o quebra-luz de cartão. Senti um vago
                  desespero e tratei de fechar todas as portas, bem como a
                  janela em cuja tela havia o buraco imperceptível. Pareceu-me
                  bastante necessário matar essa criatura persistente, cujo assédio
                  em breve teria perturbado minha cabeça. Então, contando
                  inconscientemente, comecei a notar que cada série de batidas
                  continha exatos cinco toques. 
                   
                  
                   
                  Cinco
                  – o mesmo número que a coisa tinha traçado a tinta no teto
                  pela manhã! Podia-se conceber alguma conexão? A idéia era
                  maníaca, pois fazia supor um intelecto humano e um
                  conhecimento de escrita por parte da mosca híbrida. Um
                  intelecto humano – não se estaria com isso recuando às
                  mais primitivas lendas dos negros ugandenses? E ainda havia
                  aquela esperteza infernal em ludibriar-me, que contrastava com
                  a estupidez normal da espécie. Quando pus de parte meu jornal
                  dobrado e me sentei, tomado de crescente horror, o inseto
                  esvoaçou zumbindo e desapareceu através de um buraco do
                  teto, por onde o cano do aquecimento subia para o quarto de
                  cima. 
                   
                  
                   
                  A
                  partida não me acalmou, pois minha mente havia disparado numa
                  cadeia de reflexões frenéticas e terríveis. Se essa mosca
                  tivesse uma inteligência humana, de onde viera tal inteligência?
                  Haveria alguma verdade na concepção nativa de que essas
                  criaturas adquiriam a personalidade de suas vítimas após a
                  morte destas últimas? Em caso afirmativo, qual personalidade
                  essa mosca incorporara? Imaginei que fosse uma das que tinham
                  escapado a Moore na época em que fora picado. Seria este o
                  enviado da morte que picara Moore? Se o era, o que queria
                  comigo? O que queria comigo, afinal de contas? Suando
                  frio, lembrei-me das ações da mosca que tinha picado Batta
                  quando Batta morreu. Teria sido sua personalidade substituída
                  por aquela de sua vítima morta? Então havia também aquele
                  relato sensacional da mosca que despertou Dyson quando Moore
                  morreu. Quanto à mosca que me assediava, poderia ocorrer que
                  uma personalidade humana vingativa a estivesse guiando? Como
                  esvoaçava em torno do livro de Moore! Recusei-me a pensar
                  mais além disso. Subitamente comecei a ter certeza de que a
                  criatura estava de fato infectada e do modo mais virulento.
                  Com deliberação maligna, bastante evidente em cada ato seu,
                  teria certamente se carregado de propósito com os bacilos
                  mais mortais de toda a África. Minha mente, completamente
                  abalada, estava agora levando em conta as qualidades humanas
                  da criatura. 
                   
                  
                   
                  Telefonei
                  de imediato para o gerente e pedi que um homem viesse fechar a
                  abertura do cano do radiador e outras possíveis fendas do meu
                  quarto. Falei de estar sendo atormentado por moscas, ao que
                  ele me pareceu inteiramente solícito. Quando o homem veio,
                  mostrei-lhe as marcas de tinta no teto, que ele reconheceu sem
                  dificuldade. Então são reais! A semelhança com um ponto de
                  interrogação e um número cinco o intrigaram e o fascinaram.
                  Por fim, ele bloqueou todos os buracos que conseguiu encontrar
                  e remendou o mosquiteiro da janela. Evidentemente me julgou um
                  tanto excêntrico, até porque nenhum inseto apareceu enquanto
                  ele esteve aqui. Mas estou longe de me incomodar com isso. Até
                  agora a mosca não apareceu por esta noite. Só Deus sabe o
                  que ela é, o que ela quer, e o que será de mim! 
                   
                  
                   
                  19
                  de janeiro – Estou completamente engolfado no horror. A
                  coisa me tocou. Qualquer coisa de monstruosa e demoníaca
                  está em andamento à minha volta, e eu não sou senão uma vítima
                  indefesa. Pela manhã, quando voltei do desjejum, aquele demônio
                  alado do inferno se precipitou para dentro do quarto, voando
                  sobre minha cabeça, e começou a martelar contra a proteção
                  da janela, tal como o fizera ontem. Desta vez, porém cada série
                  de batidas continha apenas quatro pancadas. Corri à janela e
                  tentei capturá-la, mas ela me escapou, como de costume, e
                  voou para o tratado de Moore, sobre o qual esvoaçou com escárnio.
                  Seu aparelhamento vocal é limitado, mas notei que seus
                  zumbidos se produziam em grupos de quatro. 
                   
                  
                   
                  Mas
                  desta vez eu estava louco, com certeza, pois gritei: “Moore,
                  Moore, pelo amor de Deus, o que você quer?” Quando o fiz, a
                  criatura parou subitamente de circular, voou em minha direção
                  e fez um profundo, gracioso mergulho no ar, semelhante a um
                  aceno sugestivo. Pelo menos, pareceu-me ter visto isso,
                  conquanto eu já não confie mais em meus sentidos. 
                   
                  
                   
                  E
                  então o pior aconteceu. Eu deixara minha porta aberta, na
                  esperança de que o monstro saísse, se eu não o pegasse, mas
                  por volta das 11h30 a fechei, concluindo que ele se fora. Então
                  me acomodei para ler. Logo ao meio-dia senti um prurido em
                  minha nuca, mas quando levei a mão não havia nada. Num
                  instante senti cócegas outra vez e, antes que pudesse me
                  mover, aquele fruto inominável do inferno apareceu em meu
                  campo de visão, executou outro daqueles mergulhos zombeteiros
                  e graciosos no ar, e fugiu através do buraco da fechadura,
                  que eu nunca imaginei fosse largo o bastante para a sua
                  passagem. 
                   
                  
                   
                  De
                  que a coisa tinha me tocado eu não podia duvidar. Tocara-me
                  sem me injuriar. E, então, lembrei-me com um súbito arrepio
                  gelado de que Moore tinha sido picado na parte de trás do
                  pescoço, ao meio-dia. Nenhuma invasão desde então,
                  mas já tratei de vedar com papel todos os buracos das
                  fechaduras e manterei um maço de papel enrolado pronto para
                  uso a qualquer momento em que saia ou que entre. 
                   
                  
                   
                  20
                  de janeiro – Não posso ainda crer inteiramente no
                  sobrenatural, entretanto não sinto menos que estou perdido. A
                  questão é demais para mim. Pouco antes do meio-dia de hoje
                  aquele demônio apareceu do lado de fora da janela e
                  repetiu sua operação de bater, mas desta vez em séries de três.
                  Quando fui à janela, ele desapareceu. Ainda tenho resolução
                  bastante para tomar uma última medida defensiva. Removendo
                  ambos os mosquiteiros, lambuzei-os com meu preparado de visgo, o mesmo que usei no tinteiro, por dentro e por fora, e
                  os recoloquei no lugar. Se aquela criatura tentar bater de
                  novo, há de ser pela última vez! 
                   
                  
                   
                  O
                  resto do dia em paz. Posso resistir a esta experiência sem me
                  tornar um maníaco? 
                   
                  
                   
                  21
                  de janeiro – A bordo do trem para Bloemfontein. 
                   
                  
                   
                  Estou
                  destroçado. A coisa me vence. Possui uma inteligência diabólica
                  contra a qual todos os meus recursos são inoperantes.
                  Apareceu do lado de fora da janela nesta manhã, mas não
                  tocou na tela visguenta. Antes, passou rente, sem a tocar,
                  e se pôs a zumbir em círculos – dois por vez,
                  seguidos de uma parada no ar. Depois de várias dessas operações,
                  sumiu de vista por sobre os telhados da cidade. Meus nervos
                  estão a ponto de se partir, pois essas sugestões de números
                  são passíveis de uma horrenda interpretação. Na
                  segunda-feira, a coisa se demorou na imagem do cinco;
                  na terça foi o quatro; na quarta foi o três; e
                  agora, hoje, é o dois. Cinco, quatro, três, dois
                  – que mais pode ser senão uma monstruosa e inconcebível contagem
                  de dias? E com que propósito apenas os poderes malignos
                  do universo poderão dizer! Passei toda a tarde embalando e
                  arrumando meus pertences, e agora tomei o expresso noturno
                  para Bloemfontein. A fuga pode ser inútil, mas o que mais se
                  pode fazer? 
                   
                  
                   
                  22
                  de janeiro – Hospedado no Orange Hotel, em Bloemfontein, um
                  lugar confortável e excelente, mas o horror me seguiu. Fechei
                  todas as portas e as janelas, entupi todos os buracos de
                  fechaduras, investiguei cada pequena frincha, e corri todas as
                  venezianas; mas, pouco antes do meio-dia, ouvi um estalido
                  curto contra um dos mosquiteiros. Esperei – e, depois de uma
                  longa pausa, outro estalido ocorreu. Uma segunda pausa, e mais
                  um estalido. Erguendo a veneziana, avistei a maldita mosca,
                  conforme esperara. Ela descreveu um círculo aberto e lento no
                  ar, e então desapareceu de vista. Senti-me exaurido como um
                  farrapo e tive de me apoiar no sofá. Um! Esse era
                  claramente o conteúdo da verdadeira mensagem do monstro. Uma
                  batida, um círculo. Significaria para mim mais um
                  único dia, antes de algum destino impensável? Eu deveria
                  escapar de novo ou me entrincheirar aqui, fechando
                  hermeticamente todo o quarto? 
                   
                  
                   
                  Depois
                  de uma hora de repouso, senti-me capaz de agir e mandei que me
                  trouxessem um grande provimento de comida enlatada e embalada,
                  e também roupas de mesa e de banho. Amanhã não abrirei, em
                  qualquer circunstância, nenhuma fenda de janela ou de porta.
                  Quando trouxe as toalhas e os lençóis, o negro olhou-me com
                  estranheza, mas não me importa parecer excêntrico agora ou
                  sequer insano. Tenho sido perseguido por forças muito piores
                  que os ridículos dos homens. Ao receber as encomendas,
                  vasculhei cada milímetro quadrado das paredes e vedei mesmo
                  cada abertura microscópica que pude encontrar. Por fim,
                  senti-me em condições de dormir um pouco. 
                   
                  
                   
                  (A
                  caligrafia aqui se torna irregular, nervosa e muito difícil
                  de decifrar.)
                  
                   
                   
                  
                   
                  23
                  de janeiro – Já é quase meio-dia, e sinto que alguma coisa
                  horrível está para acontecer. Não dormi tanto quanto
                  esperava, mesmo não tendo dormido nada no trem na noite
                  anterior. Levantei-me cedo, com dificuldades de me concentrar
                  no que quer que fosse, seja a leitura ou a escrita. Essa
                  contagem lenta e deliberada dos dias é demais para mim. Não
                  sei qual delas enlouqueceu, se a natureza ou se minha cabeça.
                  Até por volta das onze nada fiz senão andar pelo quarto. 
                   
                  
                   
                  Então
                  ouvi um rumor por entre os fardos de alimentos trazidos ontem,
                  e aquela mosca demoníaca se arrastou para fora diante de meus
                  olhos. Agarrei qualquer coisa plana e tentei atingir a coisa,
                  a despeito de meu pânico, mas com o mesmo resultado de
                  sempre. Enquanto eu avançava, aquele horror de asas azuis se
                  retirou, como de costume, para a mesa onde eu empilhara meus
                  livros, e dardejou por um minuto sobre os Dípteros da África
                  Central e Meridional. Então, como eu insistisse, voou em
                  direção ao relógio da cornija e pousou sobre o número 12.
                  Antes que eu pensasse em qualquer movimento, começou a girar
                  sobre o mostrador com lentidão deliberada, seguindo na direção
                  dos ponteiros. Passou sob o ponteiro dos minutos, abaixou-se,
                  ergueu-se, passou sob o ponteiro das horas, e finalmente parou
                  bem em cima do 12. Enquanto permaneceu aí, agitou as asas com
                  um forte zumbido. 
                   
                  
                   
                  Será
                  algum portento desconhecido? Estou ficando tão supersticioso
                  quanto os negros. São agora pouco mais de onze horas. Às
                  doze horas será o fim? Restou-me um último recurso, que me
                  veio à mente em meio ao mais extremo desespero. Lembrando-me
                  de que minha valise de medicamentos contém ambas as substâncias
                  necessárias para produzir gás clorídrico, tomei a decisão
                  de encher o quarto com esse vapor letal, asfixiando a mosca,
                  enquanto me protejo com um lenço embebido em amônia, que
                  amarrarei sobre o rosto. Por sorte, tenho uma boa reserva de
                  amônia. Essa máscara improvisada provavelmente neutralizará
                  as emanações do ácido clorídrico até que o inseto esteja
                  morto ou, pelo menos, indefeso o bastante para ser esmagado.
                  Mas preciso ser rápido. Como posso ter certeza de que o bicho
                  não disparará contra mim antes que eu termine os
                  preparativos? Eu nem deveria me interromper para escrever este
                  diário. 
                   
                  
                   
                  Mais
                  tarde – Ambas as substâncias – ácido clorídrico e
                  dióxido de manganês – sobre a mesa, prontas para misturar.
                  Amarrei o lenço sobre o nariz e a boca e tenho uma garrafa de
                  amônia para mantê-lo encharcado até que o gás clorídrico
                  se dissipe. Fechei ambas as janelas. Mas não me agradam as ações
                  do demônio híbrido. Permanece no relógio, mas se arrasta
                  lentamente do número 12 em direção ao ponteiro dos minutos,
                  que não pára. 
                   
                  
                   
                  Será
                  esta minha última anotação no diário? Seria inútil tentar
                  negar minhas suspeitas. Freqüentemente um grão de verdade
                  bruxuleia por trás das lendas mais fantásticas e selvagens.
                  Trata-se da personalidade de Henry Moore, que tenta me pegar
                  por meio desse demônio de asas azuis? É esta a mosca que o
                  picou e que, em conseqüência, lhe absorveu a personalidade
                  quando ele morreu? Se o for, e se ela me picar, minha própria
                  personalidade substituirá a de Moore, entrando naquele corpo
                  zunidor quando eu mesmo morrer picado em seguida? Talvez,
                  contudo, eu não morra necessariamente se ela me pegar. Sempre
                  existe uma chance com a triparsamida. E eu não me arrependo
                  de nada. Moore tinha de morrer, quaisquer que fossem as conseqüências. 
                    
                  (Pouco
                  mais tarde) 
                   
                  
                   
                  A
                  mosca parou sobre o mostrador do relógio próximo à marca
                  dos 45 minutos. São agora 11h30. Estou saturando o lenço com
                  amônia que apliquei sobre o rosto e mantenho a garrafa à mão
                  para novas aplicações. Esta será a última anotação antes
                  que eu misture o ácido e o manganês para liberar o gás clorídrico.
                  Eu não deveria estar perdendo tempo, mas me aflige a
                  necessidade de colocar tudo no papel. Mas, quanto a este
                  relato, eu já terei perdido minha razão há muito tempo. A
                  mosca parece estar se tornando impaciente, e o ponteiro de
                  minutos se aproxima dela. Agora, ao gás clorídrico... 
                   
                  
                   
                  (Fim
                  do diário)
                  
                   
                   
                  
                   
                  No
                  domingo, dia 24 de janeiro de 1932, após repetidas pancadas
                  na porta do excêntrico ocupante do quarto 203 do Orange
                  Hotel, que não obtiveram resposta, o camareiro negro entrou,
                  usando a chave de reserva, e logo disparou aos gritos pela
                  escada abaixo, a fim de informar o funcionário sobre o que
                  tinha encontrado. O funcionário, após notificar a polícia,
                  chamou o gerente, e este último acompanhou o guarda De Witt,
                  o juiz Bogaert e o doutor Van Keulen até o quarto fatídico. 
                   
                  
                   
                  O
                  ocupante jazia morto sobre o soalho, de face para cima,
                  envolta num lenço que cheirava a amônia. Sobre essa proteção,
                  suas feições exibiam uma expressão de medo extremado, que
                  se transmitiu aos observadores. No dorso do pescoço o doutor
                  Van Keulen descobriu a mordida de algum inseto virulento (vermelha escura, com uma auréola roxa ao redor), que
                  sugeria a tsé-tsé ou qualquer coisa menos inócua. Um exame
                  indicou que a morte deveria ter sido causada mais por parada
                  cardíaca, resultante de pânico, do que pela mordida,
                  conquanto uma autópsia posterior mostrou que o germe da
                  tripanossomíase fora introduzido no organismo. 
                   
                  
                   
                  Sobre
                  a mesa havia diversos objetos: um velho caderno de notas
                  encapado em couro, contendo o diário, conforme descrito, uma
                  caneta, um bloco de anotações, um tinteiro aberto, uma
                  valise de medicamentos com as iniciais T. S. gravadas
                  em ouro, frascos de amônia e de ácido clorídrico, e um copo
                  contendo mais ou menos um quarto de dióxido de manganês
                  escuro. A garrafa de amônia exigiu uma segunda olhada, pois
                  que parecia haver nela alguma coisa a mais além do fluido.
                  Examinando de perto, o investigador Bogaert percebeu que o
                  estranho ocupante era uma mosca. 
                   
                  
                   
                  Parecia
                  tratar-se de algum híbrido com vagas filiações da tsé-tsé,
                  mas as asas, exibindo um pálido azul, a despeito da ação
                  forte da amônia, eram completamente intrigantes. Alguma
                  coisa nela trouxe ao doutor Van Keulen a vaga recordação de
                  uma notícia lida em jornal, recordação que o diário
                  logo confirmaria. Suas partes inferiores pareciam ter sido
                  manchadas com tinta, tão intensamente que nem a amônia as
                  empalidecera. Provavelmente teria caído no tinteiro alguma
                  vez, embora as asas parecessem intactas. Mas como teria
                  penetrado através do gargalo estreito da garrafa de amônia?
                  Era como se a criatura tivesse entrado deliberadamente para
                  cometer suicídio! 
                   
                  
                   
                  Mas
                  o mais estranho foi o que o guarda De Witt descobriu no forro
                  do teto, enquanto seus olhos vagueavam pelo cômodo com
                  curiosidade. Ao seu grito, os outros três seguiram seu olhar,
                  até mesmo o doutor Van Keulen, que permanecera por um
                  instante a tamborilar os dedos na capa de couro do livro, com
                  uma expressão que misturava horror, fascínio e
                  incredulidade. O que havia no teto era uma série de trêmulos
                  e erradios traços feitos a tinta, tais como se produzidos
                  pelo arrastar-se de algum inseto encharcado. Imediatamente
                  todos pensaram nas manchas da mosca que estava na garrafa de
                  amônia. 
                    
                  Mas
                  esses não eram traços ordinários. Mesmo num primeiro
                  relance se percebia neles alguma coisa de assombrosamente
                  familiar, e uma inspeção mais atenta fez os quatro
                  observadores engasgarem de espanto. O juiz Bogaert
                  instintivamente procurou no quarto por algum instrumento ou
                  empilhamento de mobília que indicassem terem sido aquelas
                  manchas hesitantes produzidas por um agente humano. Nada
                  encontrando, retornou seu olhar espantado e aterrorizado para
                  o alto. 
                    
                  Fora
                  de qualquer dúvida, aquelas manchas de tinta formavam letras
                  específicas do alfabeto, letras coerentemente arranjadas
                  na forma de palavras em inglês. O médico foi o primeiro a
                  distingui-las com clareza, e os outros perderam o fôlego
                  ouvindo-o recitar a mensagem de teor insano que fora, de modo
                  tão incrível, rabiscada num lugar onde nenhuma mão humana
                  alcançaria: 
                   
                  
                   
                  “VEJAM
                  MEU DIÁRIO – ELA ME PEGOU PRIMEIRO – MORRI – ENTÃO
                  PERCEBI QUE ESTAVA NELA – OS NEGROS ESTÃO CERTOS –
                  ESTRANHAS FORÇAS NA NATUREZA – AGORA AFOGAREI O QUE
                  SOBROU” 
                   
                  
                   
                  Logo
                  em seguida, em meio ao silêncio de perplexidade que
                  sobreveio, o doutor Van Keulen começou a ler em voz alta o diário
                  de capa surrada. 
                    
                  (Tradução
                  de Renato Suttana)
                   
                    
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