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Nicolau Saião

 

POEMAS

 

(Adelmo Oliveira)

 

 

PRÓLOGO

 

Abro a boca das palavras

Sou a fala

Sou o grito

Sou um eco de silêncio do infinito

que perturba a razão deste enigma

 

Abro a boca das palavras

Sou a voz de um planeta aflito

– De carne

– De osso

– De espírito

 

Espelhos do corpo e da alma

Sou um código que multiplica

estrelas andarilhas

 

Abro a boca das palavras

Sou mais treva que dia - sou o mito

Sou a multidão que delira

neste imenso palco que gira

entre a volúpia dos sonhos

o terror das máscaras

e o trânsito das coisas vazias

Sou na paisagem veloz

um comboio de vagões

atrás da fantasia

 

Mas

sentimentos são vísceras

– De cada paixão

– De cada amor

– De cada cicatriz

saltam milhões de travessias

E nem é preciso acordar no céu

os dragões da lua

E nem é preciso carregar na mão

uma flor

 

Sentimentos são vísceras

– Se caio sobre um lençol de espumas

– me crucifico

– Se mais eu grito - a eternidade me confina

 

Enquanto a noite abrir a porteira dos dias

e pensa o coração

O verso nunca termina

– Da imaginação

nasce o ritmo e a melodia

Poesia – matriz dos sonhos e dos delírios

– Cálice derramado de vinho

na fronteira da página vazia

 

Abro a boca das palavras

– Acima ou abaixo dos anéis de Saturno

Do telescópio à periferia

Sentimentos são vísceras

– Trapézio que a emoção trepida

sobre um fio de lâmina

Que equilibra – que equilibra

o impulso trágico da vida

 

Praia da Aleluia, 19-12-06

 

 

 

Estilete

 

 Os outros

      tomaram as minhas mãos

      e escreveram por mim

      as palavras que nunca proferi

 

Os outros

      furtaram os meus sapatos

      e caminharam por lugares

      onde nunca andei

 

Os outros

      apontaram a minha cabeça

      e publicaram delitos

      que jamais cometi

 

Os outros

      cavaleiros da arma branca

      arremeteram um punhal  estilete maligno

      para estiolar o coração

 

Os outros

      ah! os outros são os que por mim passaram

      e nem sequer viram

      a noite morrer de manhã

      nos quintais da minha casa

 

 

 

Soneto da última estação (Mitologia marinha)

 

Esta que vem do mar por entre os ventos,

Sacudindo as espumas dos cabelos,

Vem molhada de azul nos pensamentos,

Seu corpo oculta a ilha dos segredos.

 

Vem e dança ao andar sobre as areias

Úmidas sob os passos e os desejos,

Onde as ancas são ondas em cadeias

Infinitas de luz contra os espelhos.

 

Nem precisa de flor nem de perfume,

Ela é a própria essência do ciúme,

Feita de mito e se fazendo estrela.

 

Vem – dança – e passa aos fogos do verão

– Fantasia da última estação.

Explodiu na vertigem da beleza.

 

 

 

MEU NATAL DE SEMPRE

 

Ficou na sombra a casa onde morei

As árvores do quintal, a ventania

E eu, ainda pequeno me recordo

Quanto chorei, quando cantar devia

 

Ficou no céu o tempo que sonhei

– Sapato de verniz dependurado

Num saco bem vazio de esperança

– Meu barco se perdeu em águas negras

 

Não finjo o sonho em que me sustentei

No portal da janela de meu quarto

– As bolas de borracha coloridas

– Revólver de brincar de detetive

 

Meus irmãos já tiveram as mesmas coisas

Meus amigos também o que não tive

– A vida da presente todo dia

– A dor que sinto agora não sentia.

 

Ficou no rosto o traço que não tinha

– A solidão que sopra lá de fora

Multiplico os minutos pelas horas

E tenho as mesmas horas repartidas

 

Ganho então um presente de lembranças

– Uma flor na lapela e meu cansaço

Costuro mágoas e as transformo em ânsias

E corto a fantasia em mil pedaços

 

 

 

SONETO ANTIGO DA PAIXÃO

 

Cheguei depois de mim – era a viagem

Os pássaros do medo – o fel dos dias

O enigma encarcerado – as travessias

de silêncio no vulto desta imagem

 

toda sombria friamente lívida

caindo no mistério – Esta paisagem

noturna sob a lua era a miragem

de espectros pelo grito que partia

 

transverso da garganta do meu peito

– guitarras que choravam – Contrafeito

me enredei no delírio da ilusão

 

que apunhalava a dor desta perfídia

ágrafa da manhã – então morri

– Vi minha alma sangrando de paixão

 

 

 

FRAGMENTOS  DE UMA CANÇÃO QUE MORRIA

 

A efígie apocalíptica do Caos

Dançava no meu cérebro sombrio

Augusto dos Anjos

 

Whith suth name as “Nevermore”

Edgar Alan Poe

 

Altino Soares

– O Rio do Ouro secou

Um galho de pau d´arco arriou

                        à beira do caminho

– Aquela estrada antiga não chegou

                        até o Morro da Velha

 

Meu pai dizia

– Menino

            as estrelas variaram no céu

            as veredas já cruzaram o destino

Ainda ontem

            o relâmpago incendiou o boqueirão do dia

Reduzindo escarpas de pedra

            em torrão de cinzas

Noite de breu

            um cargueiro rangia

            nas curvas molhadas dos trilhos

Assustando o medo de assombração

Nos esconderijos das Grotas da Guia

 

Altino Soares

O zabelê na tarde cantou onde eu não existia

Longe

            nas travessias do pensamento

 

Espíritos da maldição rondavam o Sítio da Finada Gutarda

Onde cães ferozes

            em vão

            latiam contra a palidez da lua

 

De repente

            na Serra do Tombador

            um espantalho jogou os braços pelo vento

– Um grito partiu ferido

            gelado

            da vertigem das alturas

E caiu

            de queda súbita

            Num poço escuro

                        de águas mortas

 

Depois

Depois

            O silêncio escondeu a solidão

                        atrás do Morro da Velha

 

(Os espectros são mentiras da realidade

– A luz da visão confundiu os espelhos

Um gesto se fez retrato de memória

– A fantasia interpretou a ilusão)

 

Altino Soares

– O Rio do Ouro secou

O zabelê na tarde cantou onde eu não existia

– A loucura riu de mim

Aquela estrada antiga não chegou

            até o Morro da Velha

 

 

 

NOTURNO

 

Para Jeovah de Carvalho

 

Na minha cama de menino verde

Na minha cama de menino verde

Deitado em coberto de antigo dorme bem

Pelas coisas que via nos olhos do passado

Aquele apito surdo de trem

Vinha montado com esporas agudas de medo

 

Aquele apito surdo

era um pregão da noite

Dentro

            gelado

                        sombras negras do inverno

Aquele apito surdo de fogo

                                                e de foice

– Fantasma parado na estação ferroviária do leste

Dentro da noite breu

Vinha montado com esporas agudas de medo

 

Na minha cama de menino verde

Na minha cama de menino verde

Aquele apito surdo da noite

Chamou a cidade para dentro do peito

A ventania de pátinas sacudia ou uivos do telhado

E a maldição apagou as últimas estrelas

Que não via

                        dentro da alma e do abismo

Aquele grito de máquinas a ranger de aflito

Vinha montado com esporas agudas de medo

 

O trem queria partir

                                    e não partia

Era alguém que partia

e não sabia

 

Ruídos de patas de gato

Unhavam as sensações do mistério

 

O trem fugia de mim

                        e não partia

Era alguém que partia

e não existia

Talvez um dragão de visões de lua

Encrespando o cabelo das rodas do tempo

Aquele apito noturno do mundo

Vinha montado com esporas agudas do medo

 

Na minha cama de menino verde

Na minha cama de menino verde

 

 

 

DEVER DE CASA

 

Eu sou um velho ator sem palco e sem platéia

Que traz no cais do peito antigas ilusões

E do pouco que sabe interpreta lições

De palhaço que alegra os meninos da aldeia

 

Basta o dia raiar pelas bandas da aurora

– Levanta – bate a porta – e vai ganhar a rua

– Tropeça no silêncio em que flutua a Lua

– Restos de solidão caminhando lá fora

 

Esqueço a dor – o espelho – as marcas do meu rosto

– Produtos do salário em que se paga imposto

Cobrado pelo tempo e pelas fantasias

 

Andarilho do vento atravessando o acaso

Deixo a tarde no céu – o meu relógio atraso

E assim faço de mim a profissão dos dias

 

 

 

Nota biográfica

 

Adelmo José de Oliveira nasceu em 13 de maio de 1934, na cidade de Itabuna, na Bahia. Em 1962, sob um júri formado por nomes de expressão da literatura brasileira, como Manuel Bandeira, Austregésilo de Athayde, José Carlos Lisboa e Pio de Los Casares, recebeu o Prêmio Nacional Luis de Góngora com ensaio “Góngora e o Sofrimento da Linguagem”. Formado em Direito pela Universidade Federal da Bahia, 1966, participou do Movimento Cultural baiano escrevendo estudos, ensaios e poesias para os principais jornais e revistas de Salvador.

 

Publicou entre outros títulos: Canto da Hora Indefinida, 1960; Três Poemas, 1966; O Som dos Cavalos Selvagens, 1971; Cântico Para o Deus dos Ventos e das Águas, 1987; Espelho das Horas, 1991; O Canto Mínimo, 2000, (Antologia Poética) Poemas da Vertigem, 2005. Participou de várias Antologias Poéticas editadas na Bahia, no Sul do País e no Exterior. Exerceu atividade política contra a Ditadura Militar, sendo preso por duas vezes e torturado. Foi eleito Deputado Estadual à Assembléia Legislativa do Estado  da Bahia pelo antigo MDB em 1978.

 

 

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