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Pablo Picasso

 

MUNDO E MISTÉRIO NA POESIA DE ADÉLIA PRADO

 

“A ópera não é bufa,

é só um não-saber rasgado de clarões.”

(Adélia Prado)

 

Num de seus poemas, Adélia Prado escreveu que a poesia – uma espécie de insatisfatória salvação – não é mais do que a face de Deus “atingida da brutalidade das coisas”. Muitos são os momentos em que o poético (como quer que o compreendamos) é caracterizado assim, por frases curtas e oraculares, nessa obra a que se poderia aplicar o que Manoel de Barros emitiu acerca do poeta: inviável e “aberto aos desentendimentos como um rosto”. Entretanto seria inútil procurar, ali, por definições ou caracterizações mais precisas do que seja o poeta ou quais sejam os seus métodos. Para além das iluminações fugazes, não raro desconcertantes, o que se diz na poesia se faz acompanhar por um vasto silêncio em relação a si mesmo e àquilo que nos dá a conhecer. Tanto o poético quanto a poesia aparecem mergulhados em obscuridade. Residem eles nos limites de todo o dizível? De certo modo, talvez não possam – nem o admitam – ser compreendidos como o resultado de uma “maneira” peculiar de se lidar com as palavras. Mais do que de uma forma, o “modo poético” nos põe no encalço de um sortilégio que não se identifica nem mesmo com o que poderíamos chamar de uma “transcendência”. Limitando, antes, com o mistério, compartilha com ele a faculdade de se revelar no momento mesmo em que se obnubila. A poesia se deixa, então, carregar de uma negatividade que proíbe, até certo ponto, e frustra toda intenção de definir:

 

A poesia me pega com sua roda dentada,

me força a escutar imóvel

o seu discurso esdrúxulo.

Me abraça detrás do muro, levanta

a saia pra eu ver, amorosa e doida.

(...)

 

Para se identificar um “modo”, seria indispensável que a poesia se permitisse portar algumas marcas – algo como um estigma central – ou que fosse seduzida por um tipo qualquer de prioridade. E nisto reside uma de suas feições mais desorientadoras: trata-se, até onde podemos pensar, de uma poética destituída de “ênfases”, entendendo-se por “ênfase” qualquer sinal relevante (uma mensagem ou uma preocupação didática) de que nos pudéssemos valer para falar a seu respeito e relacioná-la, recorrendo a uma tradição, com um conjunto de idéias idôneas que esclarecessem o que tem a dizer. Quanto a esse aspecto, a poesia de Adélia Prado não parece disposta a permitir facilidades; antes, oculta seus eixos mais salientes, privando-nos até desses andaimes onde poderíamos ancorar nossas expectativas. Preocupam-nos as formas, a ordem, o engajamento nas causas respeitáveis do mundo, com suas exigências de clareza e determinação? As insatisfações da forma (que evidentemente existirão na obra) não parecem interessá-la senão num grau decepcionantemente relativo. Os veneráveis tormentos de uma engenharia do verso – que têm ecoado, desde sempre, como a palavra mais autorizada daqueles que nunca desistiram de salvar a poesia dos desastres a que a sujeitam os acasos da inspiração – não lhe imprimem acentos dramáticos à voz: “Qualquer coisa é a casa da poesia”, dirá. Nem mesmo a sedução de uma voz prestigiosa, bafejada pelo sopro das musas, que lhe daria um lugar no mundo e diria aos homens que devem respeitá-la e deixar-se orientar por ela, tem sobre o poeta qualquer ascendência. Ao contrário, se a poesia revela o que quer que seja de um convívio com a divindade (“De vez em quando Deus me tira a poesia”, lamenta-se em certa ocasião), pode às vezes converter-se em secura, numa ausência fatal de sentido que desgasta a voz do poeta e dá o mundo como indistinção: “Olho pedra, vejo pedra mesmo. / O mundo cheio de departamentos / não é a bola bonita caminhando solta no espaço”.

 

Contudo, pode ser que soem apressadas essas tentativas de apreender tão cedo os sinais de identificação. Se é necessário que nos orientemos, precisamos contentar-nos, no começo, com algumas marcas – a que não atribuiremos o caráter das ênfases –, que se apresentam mais claramente na superfície. Destituída de prioridades centrais, a obra é ainda assim um universo onde preocupações singulares, da estirpe mesma das obsessões, se coagulam. Que preocupações podemos identificar? Primeiramente, diríamos que a poesia em questão tem sido, maciçamente, desde suas primeiras manifestações, uma poesia voltada para aquilo que chamaremos de “cotidiano”, isto é, para o mundo das coisas que, incapazes também de ênfase, representam para tantos o lado menos heróico da existência. Nesse aspecto, a poesia enfrenta o peso da rotina e da banalidade do viver. Se o poeta escreve um livro, é necessário que o livro que ele escreve apareça colocado em meio aos símbolos disso que, desde os clássicos, tem sido visto como o menos poético dos mundos e de que só o poético nos alivia: “Eu primo na minha obra porque é tudo que tenho. / Na casa de três cômodos, de terreirinho escorrido, / a vida é ruim, a alma fica gemendo: ô vida”. A presença incômoda das coisas consome então as energias do dizer. Mas que coisas podem ser essas senão aquelas que o poema nos deu a ver com seu poder de fascínio? Falemos, apenas, de uma voz que, após ter se avizinhado dos mais altos cumes da transcendência, se percebe terrena e mergulha nas impregnações do terreno:

 

Hoje acordei normal, como se fosse fazer treze anos.

Fui cedo catar coisas no lixo, cavucar abacaxis apodrecidos,

atrás de um veio são, como quem cata ouro.

Que tem isso a ver com santidade?

Mas se não tiver me morro,

porque não entendo outro ar menos grosso

que este onde meu nariz se apóia.

Os santos me chamam com assobios vertiginosos,

se penso que vou é porque é maior meu olho que a barriga;

dou um passo de medroso, outro de temerário.

(...)

 

Não se descobre aí nenhuma virtude. O poeta que diz o que a Musa lhe inspira diz igualmente as coisas baixas do mundo. Se é inspirado, como os santos, ou se ambiciona a profundidade das visões místicas, é também, antes de tudo, o cidadão ordinário, que realiza a tarefa em pleno campo do ordinário – cidadão cuja palavra é promíscua das palavras de seus semelhantes, as quais, por sua vez, não podem reivindicar estatutos honoríficos. Fala em meio aos alvoroços do imponderável, com uma voz de mulher que, do lar à teologia, do espaço doméstico aos arrebatamentos do sagrado, retorna sempre, por uma força que se assemelha à gravidade, ao seu lugar de origem, num percurso difícil em que se exprime toda a consciência de que o existir se realiza ao rés-do-chão. Se alguma transcendência se concede – palavra incômoda, talvez, em se tratando de tal poesia –, e há de haver transcendência, ela deverá revelar-se por meio da mesma voz, e não de outra, ou não se revelará de modo algum. Esse movimento, no que diz respeito a uma poética do “cotidiano”, perpassa, até onde podemos pensar, toda a poesia de Adélia Prado e se constitui para ela numa fonte de matéria-prima:

 

(...) Não compreendo nada. Só Vos desejo

e meu desejo é como se eu miasse por Vós.

A florinha do mentrasto é tão sem galas

que minha carne se eriça, erotizada.

Existis, ó Deus, porque a beleza existe,

esta que vi primeiro com meus olhos mortais.

Parecerá blasfemo. Mas não chamam sagrado

o livro em que Jó fez imprimir suas dores,

amaldiçoando o dia do seu nascimento?

Por que não o meu, que o abençôo

e acho o degredo bom,

os penedos belos,

as poucas flores dádivas?

 

Tornou-se um lugar-comum da crítica dizer que a poesia de nossos dias é fascinada pelas palavras que não sejam “poéticas”. Mas como estabelecer com segurança essa separação? Ao que tudo indica, tal atitude não é senão o fruto da pressa ou da ligeireza com que, devido a uma certa fascinação formalista da crítica, se têm interpretado alguns indícios que, ainda mal compreendidos, aparecem com excessiva transparência a olhos que se adestraram a procurá-los. Numa outra instância, eles se afiguram por demais obscuros. Assim, se devemos falar de obscuridades (concebendo o termo numa acepção bastante radical), devemos dizer que a poesia de Adélia Prado os tem revelado para nós, em blocos maciços que nos conduzem à estupefação. Porém, se chega até esse ponto, não nos dá em seguida nenhuma chave, nem mesmo nos consola com a promessa da resposta. Postular uma distinção entre o “poético” e o seu oposto seria ceder ainda à pretensão de identificar as ênfases possíveis: e é neste ponto que nossos parâmetros nos escapam. A poesia do “cotidiano”, imersa no fluxo das coisas, não quer permanecer como tal. Ela aponta, ao mesmo tempo em que nos encaminha, para o alto, para uma instância que não se descreve nos termos da mística nem do cotidiano. O “cotidiano”, sem permitir que o superemos em direção à transcendência, é dito numa linguagem que é a mesma com que se designam as aspirações ao sublime e ao sagrado, como se esse fosse o corolário de todo apego ao trivial: “Minha maior grandeza é perguntar: haverá consolo? / Num dedal cabem minha fé, minha vida e meu medo maior que é viajar de ônibus”. A poesia do cotidiano não se descarrega de sua matéria.

 

Afastemos, porém, a tentação que poderia nos assaltar de teorizar sobre uma possível poética de “choques”, ao falarmos sobre a obra de Adélia Prado. Qualquer choque constituiria, considerando tais imbricações, num fracasso e teria de ser relegado à zona indistinta do silêncio. O “cotidiano” de que se fala (para insistirmos na questão) exige as palavras mais claras, e essas palavras não estão lá para impressionar. Esse fato é que torna ainda mais difícil localizar qualquer “núcleo” central em sua mensagem (caso ele exista e possa ser encontrado), fundando-se na poética do cotidiano. Fica em nossas mãos, apenas, após a tentativa, uma dupla e mais profunda obscuridade: que fazer diante de uma poesia que elide o tempo todo nossas pretensões de falar a seu respeito (ou seja, de enfrentar sua complexidade munidos apenas de certos princípios abstratos da crítica)? Com o risco do desvio, o que se pode supor é que a poesia de Adélia Prado, desde seus primeiros momentos, tem se defrontado com a necessidade de se abrir às questões de uma transcendência que se deve buscar no seio do próprio cotidiano. E aqui entrevemos uma conseqüência do que temos a dizer acerca de uma poética da cotidianidade na obra: essa poética não está bem situada, nem o poderá ser enquanto não acrescentarmos um terceiro elemento. Afirmaremos mesmo que, se a olharmos apressadamente, seremos conduzidos ao equívoco, supondo que o transcendente está ali meramente superposto ao trivial. Essa poética tem o seu outro lado numa violenta aspiração ao sagrado, que se constitui por assim dizer no seu negativo. Mas isso não é tudo, nem responde ao todo da questão. Com efeito, para avançar, teríamos de supor que os dois lados – cotidiano e sagrado – são uma única e mesma coisa, manifestando-se de um modo complexo a que, usando uma expressão da autora, se pode chamar de o “modo poético”; quanto a ele, ouçamos a própria poesia:

 

O que sei de ressurreição começa aqui,

em ruas que os homens fizeram e nelas passam

carregando sacolas, bolsinhas presas no cinto

onde guardam seus óculos.

(...) Sou o mais pobre.

Com incompreensível alegria, como um fardo,

carrego a consciência de um dom

que põe negrinhos e pessoas pálidas

ornados e cintilantes.

Poesia sois Vós, ó Deus.

Eu busco Vos servir.

 

Percebe-se que a superposição de instâncias gera dificuldades que a crítica ainda não pode dimensionar. Se Deus é poesia, só o é porque é possível pensá-lo como manifestação de Si em meio ao mais trivial da existência. Porém não nos iludamos quanto a essa promiscuidade: não estamos pensando em nenhuma forma de manifestação do divino como “epifania” no seio da vida cotidiana (conquanto não seja difícil conceber tal possibilidade). Trata-se, segundo cremos, de aceitar o cotidiano – com todo o seu lastro de sufocante imanência –, como possibilidade de manifestação ou como espaço em que a intromissão do sagrado se dá na forma da linguagem e dos símbolos do cotidiano, sem ter o seu próprio espaço de privilégios: “Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente. / Não me falou em amor. / Essa palavra de luxo”. Atentemos, quanto a isso, para os momentos em que o poeta permite que sua voz seja invadida por essas formas esquálidas da religiosidade popular, carregadas de jaculatórias, lugares-comuns e tudo o mais que, não obstante a imersão no vulgar, são ainda indícios do transcendente: “Santo Antônio, / procurai para mim a carteira perdida, / vós que estais desafadigado, / gozando junto de Deus a recompensa dos justos”. Tal porosidade da poesia ao imediato poderia talvez enganar ou decepcionar o leitor preocupado com os vastos dilemas da salvação. Afinal, não é o poético uma linguagem que, apesar de tudo, deve respeitar seus compromissos com o sublime? Não se trata de um dizer que, à mercê de tão iminente risco, se acha o tempo todo ameaçado de deterioração e, sobretudo, de esvaziamento, caso se exponha, sem os devidos filtros, ao que só poderia significar a sua derrota?

 

Exploremos, por um instante, essa obscura dialética. Em princípio, diríamos que, se os dois elementos estão presentes na poesia de Adélia Prado, nem sempre se deverá supor que se manifestem em formatos regulares ou que se tornem imediatamente patentes e mensuráveis para a interpretação desavisada. Pelo contrário, vemo-los assumir uma variedade de formas que, além de os tornar polivalentes, faz com que seja possível percorrer, sem estabelecer prioridades específicas (conforme o que se disse acerca da ausência de “ênfases”), uma vasta gama de experiências cujo solo comum é do princípio ao fim o cotidiano. Assim é que a poesia se desdobra para acolher algumas determinações de ordem biográfica, social ou filosófica, as quais, na menos evidente das hipóteses, servem sempre para situar o indivíduo em meio às suas coordenadas existenciais:

 

Eu quero amor feinho.

Amor feinho não olha um pro outro.

Uma vez encontrado é igual a fé,

não teologa mais.

Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo

e filhos tem os quantos haja.

Tudo que não fala, faz.

(...)

 

Neste ponto, para se ter uma idéia, o livro Bagagem, o primeiro publicado por Adélia Prado, tem seus poemas distribuídos em quatro grandes seções. Essas seções se configuram segundo um variado mapa existencial, que se divide entre as coordenadas da “poesia”, do “amor” e da “memória”, além daquela “alfândega”, de sentido mais escorregadio mas nem por isso menos sugestivo (pensemos num contraponto com o título do livro). O cotidiano é, sumariamente descrito, o espaço próprio das vivências imediatas, recebendo freqüentemente a carga do trivial, que é a polaridade “terrena” das ofegantes aspirações ao sublime:

 

CONFEITO

Quero comer bolo de noiva,

puro açúcar, puro amor carnal

disfarçado de corações e sininhos:

um branco, outro cor-de-rosa,

um branco, outro cor-de-rosa.

 

O que há para ver em semelhantes manifestações da “trivialidade”? Provavelmente, elas se perderão se não nos ativermos àquilo que nelas se patenteia como sendo um grito silencioso, que é o próprio fato de que nelas se incorpora uma forma qualquer do sublime. Entre as irrecusáveis evidências do dia-a-dia, insinuam-se por seu turno as determinações do imponderável, o pólo oposto de uma dialética (para nos valermos, provisoriamente, desse esquematismo) que os põe em contato e os faz interpenetrar-se. E que formatos podem assumir essas determinações? Por um lado, devemos admitir que não se manifestam, na complexa teologia de Adélia Prado, com nenhuma independência verificável; quer dizer: que as próprias determinações do que estamos denominando de “transcendente” (por mera convenção, admitimos, uma vez que tantas coisas nos proíbem de recorrer aos esquemas) só podem surgir na medida em que se dão a ver como sinais da “trivialidade”. Sejam as aparições da beleza, sejam as do eterno, ou da memória ou do bem – tomadas como idéias “puras” do pensamento – nenhuma delas tem corpo se não as expressa alguma forma da imanência (o elemento “cotidiano” da vida): “Comia, achando gostoso, / me oferecendo corriqueiro, todavia / inopinado perguntou / (ou perguntou comum como das outras vezes?): / como será a ressurreição da carne?”. E é de tal modo que se gera o mais estranho paradoxo dessa poesia: nada poderá ser belo ou eterno ou simplesmente bom se não for também, numa contrapartida, cotidiano, trivial e efêmero. Do mesmo modo, se o invertêssemos, poderíamos dizer: nada que seja trivial ou cotidiano o poderá ser inteiramente se não for eterno, belo e bom num grau transcendente, conforme nos dão a ver passagens como a seguinte:

 

Igreja é o melhor lugar. (...)

Tudo lá fica seguro e doce,

tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita. (...)

Lá as coisas dilacerantes sentam-se

ao lado deste humaníssimo fato

que é fazer flores de papel

e nos admiramos como tudo é crível. (...)

Lugar sagrado, eletricidade

que eu passeio sem medo.

Se eu pisar,

o amor de Deus me mata.

 

Só por esse meio é que chegaremos a compreender certos sinais que a poesia nos dirige e alcançaremos interpretar fragmentos que, de tão claros, nos oferecem a máxima obscuridade. Vejam-se os três versos deste “Solar”, de uma surpreendente e incômoda luminosidade:

 

Minha mãe cozinhava exatamente:

arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.

Mas cantava.

 

Alcançamos um ponto que exige de nós redobrada atenção. Se a poesia se permite superpor o sagrado ao profano ou fazer com que o próprio sagrado se manifeste como profano (ou que o profano se dê a ver como sagrado), poderemos entrever um de seus aspectos mais secretos e, talvez, mais perturbadores. Diremos, quanto a ele, que a poesia de Adélia Prado se desenvolve, desde seu início, não tanto como manifestação de uma coisa ou de outra – seja do sagrado ou do trivial –, mas do superior mistério que as enlaça e justapõe. Isto é, ela “traz à luz” o mistério em si, em sua forma mais pura, que o poeta experimenta a cada passo com inquietude e espanto: “Meus seios se cumpriram / e as moitas onde existo / são pura sarça ardente de memória”. O conceito de mistério parece constituir-se, se pudermos falar assim, numa espécie de centro ou possibilidade singular de aproximação que a poesia nos oferece. Mas devemos entendê-lo sem recorrer ainda aqui à suposição das ênfases, pois, ao que parece, o poeta não fala dele, não o enuncia abertamente e antes apenas o menciona – quando o faz – em situações muito ocasionais ao longo da obra, que mal o revelam como presença atuante: “Ó mistério, mistério / suspenso no madeiro / o corpo humano do Deus” ; “... mistério que me abate e me corrói...”; “... odoroso mistério”. O mistério é dado a viver, portanto, é “encenado”, de certa forma, e permanece ao final como um ponto extremo da trajetória – ponto que seria tanto uma origem quanto um sorvedouro: “O espírito de Deus é misericordioso, / vai desertar de mim pra eu poder descansar, / vai me deixar dormir”. Tais seqüências nos instruem sobre um certo modo de o mistério se manifestar na poesia, o qual se pode entrever no uso de expressões como “embora”, “apesar de”, etc., que afetam também os domínios da forma: “Ninguém entenderá bem o que digo / e é bom que seja assim para que os poemas não desapareçam / e se façam necessários como o ar”. Ora, e de que forma se trata senão de uma forma que, para além de toda formalização, reflete os limites do dizível e, em sua esteira, da própria interpretação?

 

O mistério da poesia talvez corresponda ao paradoxo de uma incorporação do sublime no âmbito do trivial, mas dele não poderemos falar abertamente sem desgastá-lo. Para os pensadores do existencialismo, com os quais Adélia Prado se identifica em mais de um ponto, a transcendência não se confunde com o sagrado. Uma vez que a linguagem se compromete com os usos imediatos da vida, os próprios métodos da metafísica, sejam eles proféticos ou teológicos, não podem levar ao transcendente. Eles tendem a objetivar, sob a forma de verdades universalmente catalogadas, o que só toma realidade e fornece “certeza” no instante existencial, aquele em que o ser se entremostra como evidência e obscuridade. Em nossa descrição, que nos concerne mais de perto, preferimos aproximar o sagrado e o transcendente, concebendo a aproximação como forma primária de estabelecer um contraponto com a poética do “cotidiano”. No entanto reconhecemos que, quanto às possibilidades de descrição, o elemento “mistério” se ilumina mais (embora apenas parcialmente) quando o descrevemos à luz da doutrina existencial. Trata-se de uma poesia existencial? Em sua apresentação da filosofia de Karl Jaspers, Régis Jolivet comentou que, quanto à transcendência, nenhuma verificação empírica pode levar-nos a ela, “que nunca é uma coisa, nem mesmo, como por vezes se imagina, um ser hipotético que estivesse no limite do dado como seu fundamento supremo”. Essa atitude, segundo Jolivet, tenderia a reduzir a transcendência, “materializando-a, a um Em-si desprovido ao mesmo tempo de certeza e de verdadeira transcendência” e, por conseguinte, fora do verdadeiro mistério:

 

Tudo nos mostra, uma vez mais, que qualquer tentativa para demonstrar a existência da Transcendência é ilusória: nenhuma prova objetiva, nenhum argumento sólido pode levar à demonstração que se procura. Não há demonstração possível e eficaz da existência do Transcendente, quer se trate de demonstração fundada nas categorias da razão quer de demonstração tirada dos dados de uma revelação sobrenatural.

 

O transcendente é, pois, no pensamento de Jaspers, tal como o descreve Jolivet, aquilo de que não se pode falar sem se incorrer numa defasagem. Na poesia, por seu turno, o fundamento abismal é revelado mais como o mistério em si, como o seu modo de atuar sobre o mundo das coisas e das palavras. Por outros termos, é como se o poeta, olhando para o mundo à sua volta, nos dissesse, após uma constatação, que não importa o que sejamos ou onde estejamos, estaremos sempre expostos ao grande abalo da descoberta: todas as coisas constituem um ensino, e de todas as coisas extraímos o sumo desse indizível que é, na acepção existencial, algo como um “não-saber absoluto”, o qual, na linguagem de Jolivet, deve renovar a ultrapassagem constante de qualquer pensamento distinto, “naturalmente objetivante”, no sentido de que não se pensa “alguma coisa” mas também não se pensa “um nada de ser” em direção ao fundamento. Tal atitude nos sujeita ao perigo, mas, se a filosofia a enfrenta, a poesia nos leva até lá, guiando-nos pela mão a profundidades que põem o ser em questão e o dão a ver como desvelamento: “Amor feinho é bom porque não fica velho. / Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é: / eu sou homem você é mulher. / Amor feinho não tem ilusão, / o que ele tem é esperança: eu quero amor feinho”. Se a realidade é espessa, opaca sob qualquer ângulo por que a olhemos (e a isso nos expõem de modo verdadeiramente brutal os poemas de Adélia Prado), a própria opacidade – no limiar do mistério – se constitui numa revelação. Assim sendo: “... as palavras só contam o que se sabe”, porque só dizem o que podem dizer, mas quem pronunciar: “Deus é um espírito de paz”, esse estará repetindo “um menino de sete anos, que acrescentou: / eu tenho medo é de dia; de noite, não, / porque é claro”. A obscuridade diurna pode nos ofuscar porque o excesso de claridade tangencia as fronteiras do obscuro, tal como no seio das experiências cotidianas estamos sujeitos a cada instante às intromissões do sagrado e do religioso.

 

Discorrendo sobre as perplexidades do mundo tecnológico do segundo pós-guerra, Gabriel Marcel defendeu que a palavra “mistério” indica alguma coisa que está para lá das técnicas e das palavras do discurso, não se tratando, por certo, de “uma verdade abstrata que se reduz a fórmulas transmissíveis”. Essas fórmulas, que tendem a se tornar vitoriosas no mundo contemporâneo e podem ser veiculadas pelos diversos meios, não devolvem ao homem a sua consciência de indivíduo, pois que “o único recurso é transcendente” e implica “apelar, já não direi talvez a uma potência, mas a uma ordem do espírito que é a ordem da graça”, proclamando que “não pertencemos inteiramente a este mundo das coisas ao qual pretendem nos assimilar” (em francês no original). Tendem, ademais, a aprisionar o homem para aquém de si mesmo e daquilo que, mesmo no seio da rotina ou do imediato, lhe está reservado como uma revelação, que exigirá dele uma abertura para a escuta. No âmbito da poesia, existe a possibilidade de que as palavras nos tragam sempre de volta a um solo em que nosso ser se encontra com o ser do mundo e descobre que, afinal, o ser do mundo é aquele do qual nunca nos afastamos. A ameaça do silêncio será ainda repelida com o pensamento de que, na dilaceração, o mistério, por menos que nos dê garantias, é uma salvaguarda. O poeta pode falar, conquanto o faça nos limites do que as palavras provêem – mas e daí, se a tentativa de dizer é irmã gêmea do mais impenetrável emudecimento?

 

Se a consciência do transcendente nos faz desejar a distância, também nos leva a pensar que, apesar de tudo, o Homem – caso ele exista como realidade efetiva do mundo – só pode existir como homem, isto é, materializando-se, como o teria pensado Kierkegaard, ao evocar os nossos compromissos com o eterno, numa realidade que corresponde a um encontro entre o intemporal e o universo fungível das circunstâncias. Pode ser que, nos dias que seguem, o reconhecimento do universal como presença atuante no mundo se tenha tornado mais difícil. O fragmento e a descontinuidade ameaçam por todos os lados, enclausurando o pensamento em seus labirintos: resta-nos no final a evidência do mundo imediato, com suas formas nítidas e persistentes, de que o pensamento não se desgarra. E não é à toa que num de seus últimos livros de poesia, A faca no peito, Adélia Prado pôs em cena essa sombra materializada, chamando-a de Jonathan, de tão difícil e talvez impossível caracterização. Jonathan, quem quer que seja, faz baixar o mistério até o rés-do-chão da vida diária. Nele, ao seu modo, residem a promessa e a fuga, a realização e o desejo, bem como toda possibilidade de buscar:

 

(...) E a quem servirá a palavra de Isaías

que escreveu para mim o seu oráculo?

“Dêem força aos joelhos vacilantes,

o coxo saltará como um cabrito.”

Hein, Jonathan? Responde.

 

A poesia de Adélia Prado é uma das mais complexas e – por que não dizer? – difíceis que temos conhecido, atribuindo-se sentidos específicos a esses dois adjetivos. Chamamos-lhe complexa porque, ao contrário do que se verifica freqüentemente na poesia moderna, não tende a acolher “prioridades” que permitam classificá-la segundo os padrões usuais da interpretação, aqueles que relacionam autores a tradições e modelos ou que lhes atribuem mensagens de caráter particular. Não porta uma mensagem de cunho social ou militante que nos ajudasse, pelo menos no que diz respeito às evidências de superfície, a dizer que assumiu com este lado das coisas um compromisso unilateral. E chamamos-lhe difícil porque, arrostando perigos cuja dimensão podemos apenas intuir, percorre setores da experiência em poesia que raros se abalançaram a percorrer ou que poucos percorreram com sucesso. A ausência de ênfase – conforme a denominamos – e a manifestação do mistério são provas do que dizemos, sugerindo parâmetros de medida (caso se trate de mensurar) que os termos comuns – forma, mensagem, autor, tradição ou o que mais – circunscrevem só insatisfatoriamente. É isso uma palavra em seu desfavor ou devemos tomá-la positivamente, considerando-a como uma revelação e uma primária tentativa de aproximação?

 

(...) Eu quero a dor do homem na festa de casamento,

seu passo guardado, quando pensou:

a vida é amarga e doce?

Eu quero o que ele viu e aceitou corajoso,

os olhos cheios d’água sob as lentes.

 

Seja como for, e num sentido próprio, essa poesia é ainda um ensino, uma “didática” do ser cujas promessas apenas vislumbramos e cujos dons somos chamados a receber, mesmo se não quiséssemos compor sua apologia. Coloquemo-nos, portanto, à escuta. Ouçamos o rumor que mana do fundo do verbo, no qual a complexidade, o humor e a estranheza se reuniram para fomentar um máximo dom de poesia – aquele que as palavras, nas proximidades do abismo, ainda são capazes de sustentar e traduzir, permitindo ao homem olhar para o fundo com o olho isento e a alma desassombrada.

 

(Artigo publicado em Desafios e perspectivas / [organizado por] O. A. de Souza [et al.]. Guarapuava: Editora UNICENTRO, 2002. p.387-396)

 

 

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