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Max Ernst

 

ABJURAÇÕES DA TECNOLOGIA

 

(Renato Suttana)

 

Ninguém teria coragem de negar, hoje em dia, que os computadores são ferramentas de grande utilidade nas vidas das pessoas, mesmo daquelas que nunca viram um. E essa utilidade, ao que parece, não advém tanto dos serviços que eles prestam, mas dos que eles ainda podem vir a prestar, tais como resolver o transtorno das filas dos bancos ou dos supermercados, bem como outros transtornos que assombram a vida moderna e que, certamente, algumas cabeças já andarão por aí preocupadas em resolver. Se esses transtornos só existem porque existem os computadores ou qualquer outra coisa que necessite deles para funcionar, isso é assunto para muito bate-boca. Para os entusiastas, não haveria que discutir: qualquer que seja o futuro do mundo, ele surge de um chip eletrônico e atravessa uma fibra óptica. Entretanto, se olharmos de perto, veremos que não é tão simples assim. O próprio fato de que existam chips eletrônicos e fibras ópticas já é motivo de grande aborrecimento, e não só porque muita gente não sabe ainda o que é isso, mas porque um dia teremos de aprender ou, pelo menos, teremos de tropeçar neles – nos chips e nas fibras ópticas – em algum momento de nossas vidas, sendo os resultados de tal tropeção (que pode vir a ser uma cabeçada, a depender do modo como se tente passar) bastante imprevisíveis. Podemos imaginar, ao menos, que sobreviveremos ao confronto – se é que se trata de um?

 

Muita gente dorme tranqüila, calculando que, qualquer que seja a época em que tenhamos de nos haver com semelhantes maravilhas, essa época está distante o suficiente para ainda permitir uma boa noite de sono. Só aqueles que não podem ir para a cama sem antes terem resolvido em seus cérebros todas as questões – mesmo as que não têm solução – é que se preocupam. Para esses, o futuro (qualquer que seja ele) já está à porta, a bater e a pedir passagem, como se diz na linguagem da propaganda. Se os computadores existem – podemos pensar – e se existem pessoas que usam computadores, então alguma coisa de muito preocupante deve estar a caminho. Basta ir a um banco, para se ter uma idéia. Quem nunca teve oportunidade de ver alguém se atrapalhar todo diante de uma daquelas máquinas que os bancos deixam à disposição das pessoas, para que realizem tarefas de interesse pessoal que, antigamente, havia sempre um funcionário para realizar por elas? Então, pelo menos nesse setor, uma conclusão bastante exata se poderia tirar. Ali onde a tecnologia se insinuou para resolver um problema da vida diária, um novo problema surgiu. E as filas em que antigamente se tinha de gastar o tempo até que o funcionário consultasse fichários e fizesse anotações em papeletas hoje se transformaram em filas em que se tem de aguardar até que o funcionário digite imensos códigos diante de uma tela de computador, que parece capaz de prover tudo menos velocidade, acrescidas de filas em que se tem de aguardar até que as pessoas comecem a entender o que quer que seja a lógica das máquinas ou, o que é um triste consolo, até que desistam e cedam seu lugar ao próximo interessado. Em todos os casos, como em certas leis da ciência, o volume de problemas cresce numa proporção direta com o das soluções, num equilíbrio perfeito, enquanto continuamos a patinar (nós também) numa esperança feliz de que isso um dia venha a ser diferente.

 

Houve um tempo em que as coisas não eram assim. Viagens, por exemplo, fosse de uma cidade para a outra dentro de um mesmo país ou de um país para o país vizinho, tinham de ser feitas com paciência e planejadas com alguma antecipação. Usava-se até, para expressar o fastio e o longo desconforto dessas aventuras, a expressão “em lombo de cavalo”, que já dizia tudo a respeito de viajar naqueles tempos. Atravessar o país em lombo de cavalo (ou de outros bichos da mesma família) tomava o aspecto de uma experiência mística: quem se dispunha a fazê-lo precisaria ter consciência daquilo em que estava se metendo, porque uma vez começada a viagem tão cedo não haveria como terminá-la. Comparadas às facilidades atuais, essas verdadeiras jornadas (expressão que as define bem, embora imperfeitamente) chegam a nos parecer coisa de sonho. E mal podemos imaginar que, para conquistar os seus impérios, um César ou um Alexandre tiveram de o fazer em lombo de cavalo. De Roma aos cafundós da Gália, ou de Atenas às fímbrias do deserto da Mongólia? Não havia outro modo – e dizem que Gengis Khan até dormia sobre o lombo do seu. Eram tempos, também, em que a paciência parecia ser tanto maior e mais bem distribuída quanto maiores fossem as distâncias a atravessar, e ninguém jamais sonharia em ir de Londres a Constantinopla em menos de vinte e quatro horas. Vivia-se melhor dessa maneira? Provavelmente não, mas pelo menos havia mais tempo para apreciar a paisagem, o que não é possível nos nossos dias, a não ser muito imperfeitamente, espiando da janela de um avião ou de um automóvel, como quem procura a barraca de cebolas enquanto a feira vai sendo desmontada. Se antigamente, antes de percorrer os dois mil quilômetros que separam duas cidades, um indivíduo tinha de saber muito bem o que estava indo fazer em seu lugar de destino, hoje é possível sair pela manhã, não fazer nada lá ou mudar de idéia e ainda retornar para o almoço. Cresceram as vantagens? De certo modo, pelo menos neste aspecto, a tecnologia traz uma vantagem que ninguém negará: as facilidades de locomoção proporcionam mais tempo livre para quem viaja – tempo que pode ser empregado planejando outras viagens, conforme também acontece em outros setores da vida.

 

Uma pessoa que compra uma máquina moderna de processar alimentos sabe exatamente o que quer: livrar-se do incômodo e do aborrecimento de ter de fazer tudo manualmente. E o que fará em seguida, depois que o incômodo tiver sido contornado? Seria injusto, acreditamos, pensar que se utilize tal máquina apenas para atrofiar as próprias habilidades motoras. (Evidentemente já existem máquinas que ajudam a recuperar capacidades que outras máquinas nos fizeram perder, como as esteiras elétricas que permitem praticar um tipo de exercício físico que o automóvel ou mesmo os processadores de alimentos nos dispensam de praticar, mas isto seria outro assunto.) A idéia é que o tempo economizado seja empregado em atividades mais interessantes ou até mesmo em nenhuma atividade. Neste caso, poderíamos pensar, numa hipótese ruim, que os desenvolvedores de tecnologia estão mesmo empenhados em nos colocar de frente para o tédio da vida. Se não for isso, ajudando-nos a poupar tempo, ajudam-nos a poupá-lo para que o empreguemos naquelas ocupações que realmente importam – as quais, por certo, não se reduzirão apenas a utilizar outras máquinas ou a gozar das comodidades que só essas máquinas proporcionam. Como se nos dissessem: “Agora que pouparam tempo, aprendam a utilizá-lo em alguma coisa”, nos dão uma espécie de responsabilidade didática diante da vida que só mesmo quem aprendeu a ganhar tempo com um processador de alimentos saberá o que é. Fazem-nos compreender que, muito mais do que passar o tempo inteiramente ocupados, podemos passá-lo oscilando entre ocupações ou tentando descobrir quais aquelas que nos interessam e que por sua vez nos obrigarão depois a encontrar algum modo de poupar tempo para nos dedicarmos a elas.

 

Evidentemente, um indivíduo que tiver de enfrentar uma boa fila em alguma agência bancária terá bastante tempo para pensar em tudo isso, a não ser que esteja por demais ocupado realizando cálculos mentais ou falando a um telefone celular. Neste ponto, as inovações tecnológicas revelam um de seus aspectos peculiares. Ao mesmo tempo em que nos propõem a possibilidade de sairmos à caça de uma felicidade cuja promessa é sempre renovada a cada novo mecanismo, processo ou simples avanço técnico que se põe à nossa disposição nas prateleiras de uma loja, têm também a capacidade de elidi-la sutilmente, lançando-a para diante como um balão de ar que se torna mais difícil de pegar quanto maior e mais cheio vai ficando. Impondo um novo tipo de relação da consciência com o tempo, forçam-nos sobretudo a descobrir que esse tempo se tornou cada vez mais impalpável, mais fluido e escorregadio, e que sem dúvida precisamos de muitas máquinas para mantê-lo sob controle. Nos dias de hoje, não é somente a novidade que importa, ou o problema que venha a resolver, mas a nossa capacidade de nos adaptarmos a ela, de a introduzirmos em nossas vidas. Podemos ficar indiferentes? Quem já tiver alguma vez pensado nessa possibilidade – da indiferença – terá experimentado a seguinte sensação: a de que ficamos para trás, de que somos logrados, de algum modo, em nosso mais que humano direito de participar. Brincar com aquele jogo eletrônico, correr naquele carro ou assistir a um filme qualquer naquele aparelho de televisão – quem se pode privar de tudo isso sem um sentimento de logro? Como crianças soltas num parque de diversões, que querem subir em todos os brinquedos e ser atiradas de cá para lá até mesmo naqueles mais apavorantes, não podemos ficar inertes. A necessidade e a urgência de agarrar uma nesga de tempo estarão sempre em nossos calcanhares – e serão tão mais prementes quanto mais fluido e esquivo for aquilo que se quiser agarrar.

 

Não estamos a propor que o melhor seria voltar aos fichários manuais ou às velhas máquinas de escrever, como fazem os nostálgicos dos bons tempos, dos quais não há razão nenhuma para sentir saudades. A nostalgia aqui significaria apenas rendição, e se trata de caminhar para diante, com a testa erguida e os olhos fixos no futuro, sem temer as surpresas. Por que ter medo do que só veio para ajudar? Ora, muita gente pensaria que, dadas as desvantagens de um mundo cada vez mais infestado de máquinas, o melhor seria ficarmos onde estamos, sem desejarmos mais do que já temos. Os mais pessimistas até diriam que não está distante o tempo em que, saturados de maquinismos e processos, nos tornaremos tão ineptos e ineficazes que teremos de conceder a eles – aos maquinismos – título de cidadania e carteira de identidade. Isso é tema para filmes de ficção científica. De nossa parte, pensaríamos apenas que, se o que a tecnologia nos tira está numa proporção direta com aquilo que nos dá, o medo do futuro não é senão um subproduto, que muito bem poderia ser tratado com remédios e ansiolíticos. Afinal, não está aí um vasto campo para pesquisas e espetaculares inovações com as quais ainda sequer chegamos a sonhar?

 

Um futuro em que realmente se poderia viver não deveria se anunciado apenas por coisas como antidepressivos, mas deveria suprir nossas ansiedades, resolvendo para nós problemas até hoje insolucionados, como o de saber qual a proporção real que existe entre o tempo gasto numa ligação telefônica e o custo dela, ou por que as comodidades do correio eletrônico trouxeram em seu rastro a proliferação da propaganda espúria, dos vírus de computador e das mensagens anônimas. Isso nos ajudaria a compreender que o tempo que a tecnologia nos ajuda a poupar é, de fato, um tempo que poupamos e, não, apenas, uma mera ficção. E ficaríamos confortados em pensar que, no fim, todo esse esforço da paciência, dos nervos e do cérebro valeu a pena. Seria um futuro em que o entusiasmo pela novidade traria, de fato, algum benefício para quem sempre – e honestamente – se entusiasmou com ela e por ela torceu.

 

dezembro/2005

 

(Leia também Adendos e Espinhos - livro de crônicas de Renato Suttana)

 

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