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  POLÍTICA E ESCROQUERIA


(Renato Suttana)


(Páginas de um diário íntimo)

O ambiente político ficou de tal maneira degradado no Brasil dos últimos anos que ler o noticiário da imprensa nos dá a impressão de estarmos a assistir a um espetáculo grotesco, como aqueles de antigamente em que se exibiam deformações físicas de pessoas em picadeiros de circos. O escândalo da compra das vacinas indianas (que parece ser só mais um na pilha de escândalos com que os brasileiros haverão de se deparar nos próximos meses) deveria ser suficiente para que o presidente da República renunciasse. No entanto, o presidente — preso ao cargo por razões que, aparentemente, nada têm a ver com o desejo de governar o país — não parece disposto a fazer isso. Antes, como se a permanência na função fosse para ele, agora, uma questão de sobrevivência pessoal (e certamente o será, se pensarmos no risco que corre de, uma vez destituído dessa alta posição, passar o resto de sua vida lutando contra os processos judiciais que inevitavelmente serão movidos contra a sua pessoa e os seus filhos no futuro), dá sinais de que está disposto a levar o seu mandato até o fim, não obstante a catástrofe que sua má administração da saúde pública durante a pandemia representou para o país.

De certo modo, a permanência no cargo, em circunstância assim tempestuosa, não só desafia como também degrada uma função — a presidência da República — à qual atribuímos um caráter amplamente pedagógico e civilizatório. Dela deveriam emanar as noções mais elevadas de hombridade, moralidade e respeito à coisa pública e aos concidadãos que um indivíduo pode encarnar. Mas, ao que tudo indica, nada disso é representado pela figura humana que atualmente ocupa o cargo e que, antes, parece corporificar bem mais o seu contrário. O homem tanto não pensa em renunciar, é o que sabemos, como, decidido a levar a coisa até o final, se demora no poder mediante negociação de acordos políticos obscuros para os cidadão (envolvendo numerosas trocas de favores, liberação de verbas de orçamento — escassas nesta altura adiantada da quarentena e da crise financeira que atinge o país) e propaganda, como também não se peja de percorrer o país apresentando-se ao povo como candidato à reeleição, a cada dia mais improvável, conforme o mostram as pesquisas. E há quem se entusiasme e leve a coisa a sério — até porque se trata de viver numa democracia —, a julgar pelos números importantes de indivíduos que comparecem a esses eventos de que ele participa, como se, indiferentes à crise, estivessem dispostos a sacrificar tudo (saúde pública, empregos, vidas humanas, etc.) em nome de uma devoção quase religiosa a certos princípios de (suposta) moralidade e tradicionalismo de costumes que alguns não praticam e que ele — o presidente —, na mentalidade dessas pessoas, parece encampar.

É lamentável também observar o modo como seus apoiadores e associados (eleitos para cargos políticos nas últimas ondas moralistas que varreram o cenário brasileiro nos anos recentes) — alguns deles guindados pelas circunstâncias a uma notoriedade que parece tê-los surpreendido e com a qual não sabem agora o que fazer — se apressam a abandonar o barco, à maneira de ratos assustados. Para isso, dizem em público que foram enganados e que estão decepcionados, conforme a regra geral dos oportunismos e casuísmos da política de todos os tempos. Alegando que o presidente que ajudaram a eleger (um político de carreira com mais de 30 anos de estrada) não correspondeu àquilo que se esperava dele, vão se bandeando para algum outro lado ou para uma suposta oposição em que pouco acreditamos, com vistas certamente às próximas eleições — muito embora seja elevado o nível de apoio com que o presidente ainda conta no Parlamento e noutras instâncias da administração, incluindo-se executivos estadual e municipal e boa parte do Judiciário.

Tornamo-nos uma nação de malfeitores? Com certeza não nos tornamos, mas é difícil acreditar que tais figuras (presidente e associados) não tenham algum tipo de representatividade ou que não existam pessoas — e muitas — que com elas se identifiquem. Sempre há, até poque os homens costumam se entusiasmar por sua própria imagem quando a veem refletida num espelho. Então, é possível crer (e não estarei sozinho nisto, pois tenho lido artigos de autores que expressam opinião semelhante) que o presidente se mantém no poder não só porque se assegurou de uma base relativamente sólida de apoio parlamentar, mas sobretudo porque em sua figura se reflete alguma coisa daquilo que somos ou, pelo menos, de certos comportamentos com os quais se identifica o chamado homem comum — ele mesmo tendente a agir como malfeitor em tantas circunstâncias de sua vida, seja no trabalho, no convívio diário com pessoas próximas, seja diante da família e de tudo o mais. Seus apoiadores e associados não são outra coisa. E seus eleitores — aos quais seria abusivo aplicar uma qualificação generalizada, já que sempre é necessário fazer ressalvas — devem sê-lo em grande medida. Isso é o que, suponho, amplamente explica a sua permanência no cargo e o atual estado de coisas.

28-6-2021


 

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