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Wassily Kandinsky

 

SEQUÊNCIA DAS PALAVRAS DE NATAL

 

(Nicolau Saião)

 

 

ALEGRIA (RETÁBULO DA ALEGRIA de Juan Solano)

 

Do lado esquerdo o tom é de azul escuro  com

pequenas recorrências de negro sfumato e leves

pontos de branco de zinco: como pombos ou

cegonhas passando na noite   simplesmente

aflorando o seu primeiro sinal de céu ou

madrugada.

 

Depois, no centro, uma figura cerrando sua

dimensão  seu único e secreto

perfil de traços marcados   os traços mais pesados

de vermelho sanguíneo   onde

o amarelo de espanha, o terra de siena se confrontam

com rasgões simulados de tinta desfeita.

 

Essa a alegria, o quadrado

de cartão ardente   acinzentado um pouco nas

pontas   a penumbra

que com as mãos se edificou e

freme   estremece e se une ao que criado foi    seu

 

transfigurado rosto para séculos e séculos de piedade.

 

 

 

EFEMERIDADE

 

Pequena    pousada sobre

um muro

 

um silencio de água

de vidro fosco

de risco de unha

de sopro nessa manhã

de amor

 

ou de viagem

voltando

sem ódio ou

mágoa

Apenas gesto

contra a luz

 

Apenas um dedo

correndo sobre a

pele

minuto

hora enorme

 

de caminho e

regresso

tão distante.

 

Afago nem sequer

esboçado

mas tão cheio.

 

E tão sem nada.

 

 

 

VOAR

 

Não o vôo mas a

sombra

O sinal posto sobre o ar

a dor do vento naquela voz

que cresce

nessas nuvens perdendo-se na terra.

Não a

súbita asa de um

rosto

erguido entre árvores

e montes

como figuras agora contra o tempo

que adeja sobre os ramos

– essa febre como uma chuva errante –

mão que não paira

mas se recorda e vibra

num esvoaçar

tenaz

 

Ave exacta no mundo

– sua serena hora –

e agora já na lonjura

 

perdida e solitária.

 

 

 

CIDADE

 

E ele pensou: hoje serei uma cidade

e depois serei uma árvore nessa cidade

e depois  ainda  um esquecimento

numa rua e num recanto de um pátio.

 

E quando essa cidade tiver figuras

de pessoas e de animais

pôr-lhe-ei ainda mais figuras

que se olharão entre elas e se reconhecerão

 

E desaparecerão pouco a pouco

 

para que fique apenas uma amargura

e muitos risos desconhecidos

 

 

 

MAGNÓLIA

 

Naquela terra não havia magnólias. À beira dos caminhos

nos jardins e nos pequenos vasos de flores dentro das casas

as mulheres e os vendedores de flores cultivavam aspidistras

rosas-chá, malmequeres e pequenos bolbos de tulipas vermelhas.

Um namorado, certa vez, colocou na botoeira um girassol.

Meninas dos colégios assustavam-se e, correndo pelos parques

faziam esvoaçar contra a luz candente da tarde pequenas flores campestres.

 

Então, um dia, apareceu na cidade um hortelão

que num pequeno cesto tinha um pano multicolor

sobre algo que não se conhecia.

 

Uma jovem destacou-se de entre os demais e disse-lhe

qualquer coisa em voz sumida. E o hortelão

olhou-a longamente.

E depois principiou a andar devagarinho.

E na rua começou a espalhar-se uma penumbra que de repente

todos perceberam que iria doravante ficar ali para sempre.

 

 

 

ÁGUA

 

De corpo

Onde acabas e recomeças

De terra

Onde é teu o perfil incompleto

De fogo e ar

Onde exultas e te revolves

Do que dentro existe e cessa

Do que de fora brota

 

Daquilo que nunca te encontrará

Do que é pequeno e amplia o mundo

Do que jamais se perdeu

 

Do que se sabe e repousa

Do que não se encontrou

 

Do que morre

Do que é silêncio e claridade

Do que é mais que um sangue

 

Um puro momento feito

Entre ti e o teu reflexo inerte.

 

 

 

RESISTÊNCIA

 

Não apenas a música

mas o som

o ruído que envolve

o oculto grito

 

Não o nome somente

mas vestígio

o timbre recordado de seu

espaço

 

Não apenas figura

mas silêncio

silhueta ou contorno

na memória

 

Não o medo ou o azougue

sobre esta carne morta

 

Mas um vívido traço

ainda que incompleto

 

Mas singeleza como

um corpo inconformado.

 

 

 

MADRUGADA

 

No interior a polpa: um nó convulsamente

preso na carne feita para amar

No exterior partículas

tão exactas e puras como um dia. No depois das paredes

nesse ar que se dissipa

nesse negrume fixo e já disperso

– para sempre encontrado –

o clarão que nos une e já nos leva

entre as horas e os tempos, entre vozes que findam.

 

A cor o mundo o nome

eternamente nossos.

 

 

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