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Carlos Martins, A roda do destino

 

DAS CAMPANHAS POLÍTICAS DE MINHA TERRA DESCRITAS COMO UM FILME DE HORROR

 

(Renato Suttana)

 

Uma situação corriqueira em filmes de horror é aquela em que os mortos, ressurgidos dos túmulos e tomados por não se sabe que impulsos de retaliação contra os vivos, retornam ao mundo para assombrá-los ou persegui-los em sua vida diária. E não se pergunte o que vieram fazer de novo neste lugar em que perderam a sua vez. A resposta será, por certo, quase sempre, que retornaram para resolver alguma questão inconclusa, saldar alguma pendência de ordem moral ou material que o fato absoluto de estarem mortos não basta para saldar. Pensaríamos até que, qualquer que seja a questão, é de vivos, sempre, que se trata e que os mortos só comparecem lá como figuras excêntricas, que dão ao enredo aquele toque de pitoresco sem o qual enredo nenhum se mantém de pé. Muitas vezes, os mortos retornarão para aumentar as populações do além-túmulo – o que depõe a favor da hipótese de que nós mesmos, apegados demais a este mundo, o achamos atrativo demais para que deixemos em paz os que se foram, e então fazemos a máquina girar. Só não podemos é imaginar que retornem para contemplar a paisagem – o que não renderia enredo nenhum – ou para respirar o ar poluído de alguma metrópole – o que não honraria a inteligência dos mortos –, até porque a idéia do retorno à vida é, ela também, interessante demais para que a passemos por alto. E nós somos seres inquietos por natureza, bulideiros natos que não deixam em paz nenhuma idéia, muito menos a de que os mortos deveriam ficar onde estão.

 

Outra situação em que se pode ver os mortos ressurgirem dos túmulos – ou, pelo menos, se pode ter a impressão de que ressurgem – acontece com freqüência nas campanhas políticas do interior brasileiro. Figuras que, durante quatro ou mais anos, pareciam ter sumido de nossas vistas ressurgem de seus nichos, como fantasmas despertos, recobram vida e põem-se a caminhar pelas ruas, assombrando aqueles que julgaram tê-los esquecido. Então não tinham desaparecido por completo? Não é verdade que depois do último fracasso político tinham desistido de vez de perseguir a assim chamada coisa pública, deixando-a em paz como mágicos aposentados que se retiram do palco? Grande ilusão de nossa parte! A coisa pública gera mais obsessões do que somos capazes de conceber. E não é costume desistir-se dela assim tão facilmente. Os mortos-vivos eleitorais – é a regra –, à maneira do que acontece nos filmes, voltarão para assombrá-la, dando a impressão de que uma parte deles ficou presa a ela e que só poderá ser libertada com uma segunda morte. Quem é aquele que vai pela rua todo empertigado, como se tivesse chegado de vez a uma conclusão sobre o importante papel que tem a desempenhar no concerto do mundo? E aquele outro, que víamos com regularidade nos corredores da repartição, mas do qual nos esquecemos completamente e de quem não nos lembraríamos de modo algum se não fosse época de campanha e, pior ainda, de campanha bem-sucedida, que levou de novo o seu candidato ao posto político mais cobiçado do município? De onde surgem quando ressurgem para mover as acirradas contendas que costumam anteceder a posse de prefeitos e vereadores nas prefeituras e câmaras de cidades interioranas, como B. e outras, cujo número de habitantes parece pequeno demais para semelhante fervor?

 

Em si mesmos, se olhados de perto, esses fantasmas não têm nenhum interesse. No entanto é estudando o seu comportamento que descobrimos o que podem vir a significar para a compreensão de alguma coisa dos processos eleitorais de província, em seus aspectos mais representativos. Não queremos ser tendenciosos, mas, de certo modo, não podemos deixar de admitir que o comportamento do que ousaremos chamar de morto-vivo eleitoral típico do interior tem qualquer coisa de cíclico, e acrescentaríamos: de espasmódico ou de ciclotímico. Isso porque tal comportamento, em determinadas épocas, costuma manifestar-se como o mais extrovertido dos comportamentos, isto é, em épocas favoráveis, nas quais podemos detectá-lo em figuras que, noutras circunstâncias, podem (e de fato o fazem com incrível freqüência) aparecer-nos como verdadeiros ícones de timidez. O ciclotímico eleitoral é tímido, introvertido e quase invisível em épocas que não sejam de eleição, levando-nos a crer que a suspeita de que seja capaz de desaparecer completamente no ar, ou de tornar-se invisível – embora se trate apenas de um equívoco de nossa parte – não é apenas uma ilusão. Mas em épocas de eleição esse comportamento se converte em seu contrário, e é então que o descobriremos ativo, agressivo, verdadeiramente arrogante, como se os ares da ocasião exercessem sobre ele uma influência transformadora. De criatura recolhida e esquiva, muda-se de repente num ser buliçoso, de trato difícil a não ser para os seus correligionários, adquirindo as características daquilo que poderíamos chamar de Indivíduo Público – engrenagem básica das máquinas eleitorais brasileiras.

 

Em sua fase “noturna”, isto é, naquela em que se pode dizer que o indivíduo está em baixa, o morto-vivo eleitoral tende a se diluir na multidão, mergulhando num anonimato do qual só o tira a recordação de que pertence à máquina política local. Se essa recordação não ocorre a ninguém, então não há salvação: o morto-vivo desaparecerá por completo, deixando de freqüentar nossos pensamentos, ou se transformará num indivíduo comum, sem atributos que nos estimulem a gastar com ele mais que cinco minutos de nossa atenção. Se ele tiver uma profissão, pode ser que o vejamos de outra maneira; que, esquecendo seus compromissos com a vida política, consigamos até detectar nele uma personalidade, interpretando-a como a de um indivíduo comum: o comerciante, o advogado, o farmacêutico, o professor ou quem mais. Mas esse não é, de modo algum, o morto-vivo eleitoral típico. Um morto-vivo, para sê-lo na plenitude do termo, em épocas de baixa não deve ter personalidade e, muito menos, qualquer proeminência na vida coletiva. A opinião pública não deve formular a seu respeito nenhuma opinião, bem como não se deve jamais fazer, por exemplo, perguntas inconvenientes, tais como: o que ele faz para sobreviver nas épocas magras (longe, portanto, das benesses do erário) ou, afinal, o que o levou a se meter em questões de política? Ele deve ser fluido (do ponto de vista psicológico), sobrevoando nossos pensamentos como uma sombra discreta, uma associação fugidia à qual apenas raramente haveremos de retornar. E, mesmo assim, sempre que nos lembrarmos dele ou sempre que o virmos na rua, havemos de lembrar que pertence a uma das duas facções políticas que costumeiramente se digladiam nos municípios brasileiros, como se a personalidade (que em geral não será senão uma exponenciação da personalidade do morto-vivo eleitoral) do político eminente (na esfera municipal) ao qual o seu nome estará ligado o preenchesse de algum modo. Na fase lunar, o morto-vivo eleitoral é apenas uma possibilidade, uma eventualidade ou uma sorte de ovo goro de dentro do qual pode ser que desponte uma ave na próxima eleição, com a ressalva de que, não sendo propícia a ocasião, o ovo se guarda para a seguinte, ao contrário dos ovos de verdade, que tendem a apodrecer caso a ave ou o que quer que contenham não quebre a casca e salte para a luz.

 

Já em sua fase propriamente diurna, não há que discutir: o morto-vivo eleitoral é uma ave bastante empenachada, um galo de briga cuja prontidão para o combate não se pode deduzir de seu comportamento noturno. E que maravilhosa transformação! Basta que a Justiça Eleitoral estabeleça uma data para o início das campanhas e que esse dia chegue, para que o morto-vivo se erga do túmulo, arregace as mangas e se ponha em movimento – e movimento frenético, diga-se de passagem, que vai desde a organização de comitês eleitorais até a promoção de eventos os mais ruidosos, tais como comícios ou batucadas de dar inveja às melhores escolas de samba. Neste aspecto, eles – os mortos-vivos – adquirem uma energia realmente admirável, que em nada lembra os modos recolhidos de outrora: são capazes de agitar no ar, durante toda uma noite, uma bandeira (presa ou não a um mastro) de qualquer tamanho (oito metros quadrados de tecido seria o ideal), como também de percorrer cada rua da cidade montado na carroceria de um caminhão, gritando slogans os mais estapafúrdios e tanto mais excitantes quanto mais estapafúrdios. Arrebata-os o frenesi de retornarem à vida? O morto-vivo eleitoral é capaz de dispor de uma energia que só se compara à dos mortos-vivos do cinema, embora sem a lentidão de movimentos ou o aspecto catatônico destes últimos. Diríamos mesmo que a lentidão e a catatonia são reservadas para as épocas de marasmo: nas ocasiões de alta, ou nas épocas de campanha, essas tendências se invertem. E ei-lo a despertar e a canalizar as energias adormecidas de seus correligionários e do público – energias que serão tanto mais intensas quanto mais intensas forem aquelas de que o morto-vivo puder apropriar-se (suas ou adquiridas por meio de algum sortilégio de que não fazemos idéia) ou sacar de suas próprias usinas interiores.

 

Mas seria inadequado supor que ele disponha, de fato, de qualquer coisa como uma fonte pessoal de energia. Antes, pode-se dizer que, como um punhado de pólvora, é a época mesma que o acende, ou melhor: que a época oferece a centelha e que tal centelha incendeia a sua pólvora íntima. Seria ele capaz de produzir sua pólvora? Se algum mérito se deve reconhecer-lhe, é a capacidade não tanto de produzi-la, mas de buscá-la no exterior e de armazená-la para as ocasiões oportunas, bem como se pode pensar que tal pólvora se acumule mais quanto mais longo for o período de hibernação a que se vir obrigado. E o que o obriga a hibernar é o fato de que sua facção raramente se mantém por muito tempo no poder, sendo freqüentemente forçada a revezar com a facção opositora. Essa é, talvez, uma das razões pelas quais o comportamento do morto-vivo eleitoral adquire certo nervosismo: vendo-se constantemente ameaçado de despejo, ele vive em estado de sobressalto, como um inquilino que passou tempo demais sem pagar o aluguel. Quanto a isso, pode-se até dizer, sem injustiça, que o morto-vivo eleitoral é um sujeito que vive de aproveitar ao máximo cada segundo que lhe cabe de vida. E vida aqui significa, evidentemente, vida de além-túmulo. Ele não só converterá, ao extremo do esgotamento, em gestos de campanha toda a energia armazenada (o que talvez o incapacite depois para as ações políticas proveitosas ou conseqüentes), como ainda, em seguida, encontrará forças, em caso de vitória, para as comemorações. Com uma diligência extraordinária, ele estará presente a todos os eventos de campanha, desde as reuniões de rotina para formulação de estratégias, até os grandes e estrepitosos comícios nos quais, não raro, não se pejará de falar ao microfone. Não só manterá em pleno funcionamento, pelo período que durar a campanha, o comitê onde se distribuem pôsteres e panfletos do seu candidato, do qual será o mais assíduo freqüentador, como ainda não faltará ao dia em que seu candidato for declarado prefeito da cidade – ocasião que parece resumir todo o sentido da existência do morto-vivo eleitoral.

 

Este é apenas um corolário da atitude usual do morto-vivo eleitoral de província, que é capaz de muito mais quando seu coração e sua mente se deixam invadir pelo que ele invariavelmente confunde com um imoderado fervor pelo seu candidato. Mas seria mesmo uma pólvora o que ele acumula por dentro ou se trataria de algo menos explosivo, embora facilmente inflamável – uma palha, digamos, que quatro ou mais anos de baixa tendem a amontoar dentro dele, como num celeiro repleto? Nesse caso, nada mais natural do que, em ocasião apropriada, atear fogo ao monte, até para que não se avolume demais ou atinja alturas perigosas. Além do que, isso explicaria certas idiossincrasias de caráter próprias do morto-vivo eleitoral, como aquele período de aparente depressão que costuma acometê-lo após uma campanha, mesmo vitoriosa, na qual aparentemente esbanjou mais energia do que o suporíamos capaz (para não falarmos da indispensável festa de comemoração, que parece, esta sim, exauri-lo até a última gota). Nesse período, pode ser que ele recaia na antiga melancolia, que regresse, nem que seja por um instante, à pasmaceira usual. Trata-se do momento em que o incêndio ameaça recuar, retroceder sobre si mesmo, antes de atingir o seu ponto culminante. Esperemos, porém, a assim chamada festa da posse e veremos do que ele é capaz realmente. Se é palha ou pólvora o que se acumula nele nas épocas de silêncio, assistiremos ao incêndio – incêndio que se prolongará pelo tempo que durar o período de alta, quatro, oito, doze anos, conforme disponha a sorte eleitoral. Só não poderemos pensar é que ele permaneça inerte, qualquer que seja a circunstância, pois, do mesmo modo que os mortos-vivos de nossos pesadelos, é o ressurgir que lhe infunde ânimo, como se uma lei de eterno retorno movesse os cordões de seu destino.

 

Hoje em dia, algumas determinações legais que têm surgido, visando a tornar obrigatória a exigência de realização de concursos para contratação de funcionários públicos, ou a surpreendente lei da responsabilidade fiscal, que proíbe os prefeitos de assumirem dívidas públicas que não possam ser pagas dentro do prazo de seus mandatos, ameaçam impor obstáculos a esse eterno retorno. O que pensará o morto-vivo eleitoral de tudo isso? Estará contente com as novas regras ou as considerará apenas como um transtorno momentâneo, ou um capricho da justiça, que facilmente se pode contornar por meio de mecanismos que só ele mesmo conhece? De certo modo, às vezes é possível imaginar que o que o leva a se erguer do túmulo não chega a ser, sempre, o interesse pecuniário imediato. Uma outra coisa, mais impalpável, que muitos chamam pitorescamente de “paixão” política parece movê-lo. Pode ser. (Pensemos numa cidade como B., com seus poucos milhares de habitantes, sua fábrica de cimento, suas empresas de mineração, que geram razoável arrecadação de impostos para os cofres públicos todos os meses...) Essa outra coisa é que é indescritível, misteriosa como o próprio fato de que o comportamento dos mortos-vivos eleitorais se apresente assim, marcado por oscilações que vão da euforia às longas fases de desânimo, algo muito menos acessível à razão do que podemos imaginar. Influenciam, seja como for, o que quer que seja a opinião pública das cidades que assombram e exercem nela um papel político relevante? Ou devemos pensar também que, de um modo ou de outro, por meio de sua voz e seu comportamento, adquire expressão um modo de pensar e de se comportar do homem comum, muitas vezes alheio às disputas políticas, que por ser alheio a elas delega ao homem político (no caso, o morto-vivo eleitoral) a tarefa de expressá-los, enquanto em seu silêncio ele apenas referenda o que quer que seja a vida política das cidades do interior?

 

Qualquer que seja a resposta, delegando a eles a tarefa de realizar o que a falta de tempo, o excesso de escrúpulos ou a simples pusilanimidade nos impedem de empreender, nós os transformamos em porta-vozes de nossas aspirações inconscientes. Somos todos nós, no fundo, mortos-vivos que ainda não despertaram e que adormecem indefinidamente em sua fase noturna, incapazes de acordar para o frenesi do dia claro? Provavelmente, o fato de que os mortos-vivos adquiram relevância na vida política local revela que essa relevância foi usurpada e que, como acontece nos filmes, a vida que vivem se alimenta de outras, muito embora esse alimentar-se raramente seja sentido como tal.

 

(In Adendos e Espinhos - livro eletrônico)

 

 

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