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Nuno de Matos Duarte

 

CAÇA AO MISTÉRIO

 

(Renato Suttana)

 

Já faz algum tempo que o velhinho apareceu na televisão, prometendo pagar um milhão de dólares redondos a quem lhe apresentasse – ao vivo e em cores, como se diz – um evento, considerado “sobrenatural”, que ele, o velhinho, não viesse a desmascarar como pertencendo à ordem do ilusionismo ou da charlatanaria. Ou, pelo menos, que ele não conseguisse descrever como se tratando de um evento “natural”, o qual, tomado pelos crédulos como sendo extranatural, ele de pronto não devolvesse à ordem natural, a que todas as coisas devem pertencer. Como terminou o episódio? Houve por certo alguém – um brasileiro, segundo consta – que ameaçou fazer-lhe demonstrações legítimas de habilidades parapsicológicas, coisa perfeitamente natural, em se tratando de ganhar um milhão de dólares, que qualquer um se aventuraria a tentar, mas que parece o brasileiro desistiu de fazer.

 

Se o velhinho tinha de fato esse milhão para esbanjar assim, apenas pelo prazer de deixar claro, de uma vez por todas, para quem ainda suspeita da idoneidade da natureza, que esses eventos não existem, é questão que se pode discutir (seria interessante apostar na possibilidade de que o velhinho tivesse mesmo esse dinheiro). Provavelmente o teria, pois também é difícil crer que sua confiança (no natural) chegasse ao extremo de arriscar sua reputação, ou seu bom nome como desmascarador de fantasmas, fazendo promessas que não poderia cumprir. A conclusão do episódio? Perdeu-se de vista. Sumiu, por assim dizer, do foco da imprensa, tal como somem tantos assuntos ou tal como sumiria um fantasma que apenas uns poucos tivessem visto e que, depois de desaparecido, ninguém fosse capaz de fazer reaparecer. O que sobrou foi, como sempre, a dúvida acerca da possibilidade real desses eventos: intacta e tão antiga quanto a própria descrença a seu respeito – para não dizermos: resistente até (acreditamos) a uma recompensa que não seria das mais desprezíveis. Quanto ao velhinho?

 

Outro que aparecia na televisão a exibir capacidades excepcionais de desmascarar a fraude era um padre – chamado Quevedo, se não me engano –, que não tinha um milhão de dólares para oferecer, mas que desafiava qualquer um a lhe provar a existência do antinatural. Crentes absolutos do natural, o padre e o velhinho saíram a campo para defender suas convicções. Como o velhinho, o padre Quevedo era arguto. Não só tinha adquirido grande habilidade em desmontar truques como também em praticá-los, o que fazia na frente de qualquer um, só para deixar claro que não se tratava de nada que não se pudesse explicar segundo as leis da física e da química e de acordo com os mais verossímeis preceitos da lógica. Nada de matemáticas experimentais. E nada de uma sobrefísica ou de uma sobrequímica que, insistentemente desacreditada, insistisse o tempo todo em retornar, como se o lançá-la pela janela e o retornar depois, pela porta dos fundos, fizesse parte de seu modo de ser. Queria o fato, o fenômeno, descrito segundo as regras da razão e sem as intromissões do imprevisto, que sempre atrapalham quando se quer descrever alguma coisa segundo as regras da razão.

 

Se, conforme disse Schopenhauer, o maior dos descrentes é o próprio papa (uma injustiça, admitamos), esse padre provavelmente sentiria uma necessidade grande de mostrar que, tendo o mundo recebido de Deus desde o início uma determinada conformação, não haveria por que desconfiar dela, passando a crer em possibilidades de eventos que fugiriam a essa conformação. Mas isso não é tudo. Poderíamos suspeitar de que eles mesmos – o padre e o velhinho –, mais do que quaisquer outros, tivessem necessidade de, mais cedo ou mais tarde, dar com o nariz em algum evento que desmentisse suas convicções, provando que estavam errados e que existe efetivamente o sobrenatural. As pessoas comuns não chegam a tanto. Contentam-se, tal como se contentam em crer que um dia poderão se tornar milionárias apostando alguns centavos numa loteria, em acreditar que “tudo é incerto e vário”, como disse Fernando Pessoa, e que, provada ou não a existência dos fantasmas, o resto continuará como tal, pois nem todos terão acesso a essas provas e nem todos se deixarão convencer por elas. (Há sempre coisas mais importantes a fazer do que se deixar desiludir por meia dúzia de cientistas fanáticos.)

 

Pode-se também pensar que, no caso do padre, alguma coisa a mais esteja implicada. Pensemos, por exemplo, na reputação de sua própria Igreja, a qual durante tantos séculos penhorou o seu prestígio na admissão de milagres que lhe permitiram constituir um panteão de santos que nunca parou de crescer. Imaginem! A função do padre seria “passar a limpo” o incessante aflorar de “casos” que, todos os dias, vêm a público para depor em favor da memória de mortos que muito bem mereceriam a honra do altar. Então que se chame lá o inquisidor, para atestar a veracidade ou a falsidade das alegações, e que a Igreja não seja enganada e saia por aí elevando aos céus criaturas cujo prestígio se fundamentou num engodo. Explica-se a preocupação do padre: descrente de tudo a não ser da realidade, que  – ela mesma assombrosa – já não precisa de ninguém que lhe venha apensar mais espantos, não havia por que não sair pelo mundo provando que, fora do campo do verdadeiro, não existe nada senão o improvável.

 

Hoje em dia, segundo consta, até velhas práticas veneráveis – como a da medicina caseira ou da homeopatia –, acreditadas por todos e antigas de centenas, senão milhares de anos, estão sob suspeita. E vem de novo alguém à televisão oferecer recompensa em dinheiro para quem prove, a partir de evidências científicas, que a homeopatia tem de fato efeitos medicinais. Nesse aspecto, os únicos, suponho, que ainda não desistiram de suas crenças são os chamados ufólogos, que não se cansam de percorrer o mundo não tanto em busca de provas contra a suposição de que os discos voadores sobrevoam a Terra, mas de evidências a favor dessa suspeita – bastante simpática por sinal e (por que não?) bastante consoladora para aqueles que, como nós mesmos, continuam a se sentir solitários neste universo vasto, de cuja infinitude poderia muito bem, algum dia, saltar alguma criatura que, montada numa nave espacial, viesse de longe para nos asseverar que, afinal, não estamos tão sozinhos nem somos os únicos que tivemos o privilégio de nascer e de olhar para o céu, perguntando pela existência de criaturas não tanto “inteligentes”, mas pelo menos tão vivas como nós.

 

Mas aqui se trata de uma esperança, e os discos voadores devem ser vistos com cautela ou tomados como eventos naturais, cientificamente explicáveis – ao contrário dos fantasmas ou dos fatos paranormais, que além de açularem nossa curiosidade, de quebra ainda põem a perder os pressupostos da ciência tão penosamente amealhados ao longo de milhares de anos de pesquisa e de sacrifícios incontáveis. Devemos colocar tudo a perder só porque alguns, retardatários da novidade, ainda insistem em pensar que estão na Idade Média ou que o mundo, afinal, não repousa sobre bases sólidas e estáveis?

 

Mistérios a vida os terá, se não for ela própria o maior deles. Porém, para esses exterminadores do oculto, não basta ser esse o mistério em si – e mais insolúvel do que qualquer outro que a charlatanaria ou a má fé (daqueles que querem nos fazer crer que a ordem do mundo não é tal qual a descrevem os sábios) nos venham impingir como tal. Não pagarão a ninguém para provar que se trata de um ou que estamos mergulhados nele até o pescoço. Se bem que, provavelmente, não o fizessem nem mesmo se, depois de mortos, seus fantasmas voltassem ao mundo para gritar a todos que não acreditemos neles – porque não se trata senão de uma fraude – e que em fraudes não se deve acreditar.

 

 

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