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Carlos Martins, A roda do destino

 

Poemas de Amadeu Baptista

 

 

PORTALEGRE, CASA DE JOSÉ RÉGIO

 

dou três passos em direcção

à casa e fico muito perto da sagacidade.

nada do que vejo é verdadeiro.

estas escadas não existem, esta sombra,

a mulher no quadro surpreendentemente

azul, o friso com ramagens e pássaros,

a destruição do silêncio, a névoa.

tudo em volta é, apenas, mediação,

um artifício para a ilusão e o conflito,

a porta entreaberta para lado nenhum

e nenhum sítio, a morte que se aproxima,

com a penumbra branca a desenhar os lábios,

a pálpebra, a palidez. o gesto desenvolve-se, separa. aqui, ali, este homem

é uma representação, um ciclo sob o vento,

a alma arde-lhe nas têmporas, com insistência

    arde,

no rumo da razão de empédocles em que se diz

“das coisas mortais não há criação”.

mas há aves no corpo, este corpo

translúcido que sobre a cómoda entretece

um modo reflexivo e imanente, correndo

para sempre com um breve fumo fulvo

ao longe, a arrastar o abismo para a planície imensa, a arder, a arder pelo oposto

    e a envolvência,

na crua simetria da escada, a memória

onde a mudança se abre ao inaudito,

a deus, ao demónio, à casa breve e anómala.

tudo foi inevitável aqui, a mão

prendeu o fio narrativo, o verso e o reverso

do destino, o homem no caminho

entre a sala e o quarto, a ver o incêndio

    ampliar-se,

a ver a rua retroceder, com um sentido

de brilho e possessão que não é deste mundo.

esta colcha brevíssima, o anjo sobre o leito,

a jarra nacarada sobre o contador castanho,

o veio na madeira, a pequena luz sob o tapete,

a varanda e o diminuto alpendre, a parede

de água em que desliza um possessivo veludo,

o cristo no desvão, com a cabeça

pendente sobre o peito, dão ao olhar a pura brevidade, a pura rendição, enquanto ninguém dorme. maravilhoso e fugaz é o lugar

    da sabedoria,

o homem cresce na escuridão, cresce

como uma constelação, um fio de vinagre

na boca, um certo amor perdido, enquanto

a palavra descreve, dispara um perímetro  

    longínquo

e eu cresço e diminuo, aqui, à porta desta casa,

a pedir um ponto de ruptura em tudo isto,

uma curva na estrada que volte ao corredor onde se inscreve a mancha de humidade

que explica tudo e nada é, ou foi, e pode já

    ser tudo.

mais um passo e poderei gritar, mais um passo

e poderei dizer que vim aqui por nada,

estava a esteva no exterior e entrei

para transfigurar o real, este dia de chuva

no espírito, a serrania em volta, a experiência

insaciável do auspício, a casa, a noite,

    a casa, sempre,

onde cada derrocada faz prevalecer

o contágio das vozes, a curvatura do arcos,

o telhado, a janela, os múltiplos estuários

em que os clarões se alicerçam, e os poemas,

certas construções a caminho das nuvens.

no livro vi a primeira dúvida, a rasura

crescente, em outra casa. aqui, a sós,

induzo-me a idêntica explicação, a tosse

na garganta, o doloroso carrego, o dedo

de um pronunciamento a alongar-se

sobre as espáduas, a replicar

à saudade uma luz obscura, com negros

contrastantes, como num sonho mau,

tenso, tenaz. anoitece em mim

como pode ter anoitecido na alma

deste homem, talvez o mar tenha este efeito demolidor, o mar ou a sua ausência.

percorro a casa e pronuncio silêncios estreitos, sempre encontro o coração noutro lugar,

    em chamas,

o coração que não vai por aí, o chão

de sulcos e rastros, onde o pó intratável

não retrocede nos séculos, há-de conter

esta aparição repentina, este rumor

de estações insuspeitas, queda a queda, grumo

    a grumo,

numa cidade tão improvável como um poeta,

sendo nós quem somos, filhos de retratos

insuspeitos em que nem a claridade toca,

nem a claridade consegue dessangrar.

aqui viveu o homem

que todas as ressonâncias confirmam

como um ser desolado, floresce no inverno

este constrangimento, dou um passo, outro,

sigo este percurso de volumetrias áridas

e rápidas ascensões e prometo-me não voltar,

prometo-me ficar nesta casa para sempre,

até que alguém chegue e me desperte. assim,

a têmpera e a sanguínea retomarão o nome

desta ausência, este homem flui

sobre o passado, volta comigo à pedra, à praia,

embora nestes sinais desconhecidos seja rasa

a euforia, a disforia,

cada um dos capítulos desta nave. por isso,

não me creias. já nada há para crer,

tudo é um vazio sem retorno

desde que te deixei ou este homem abandonou

a minha infância, sempre o li com a certeza

de um mistério anterior a nós, o mistério

que, muito provavelmente, nos fez reconhecer

a amplitude da dor, a vida passada

que vivemos sem que sequer o suspeitássemos,

a ave, a ave de sempre,

no meu e no teu sortilégio desabrido.

 

 

A NOITE DE PAVESE

 

Raras vezes me franquearam a porta

e deixaram entrar. A febre

sitia-me a alma e quem me vê

assusta-se do aspecto do meu rosto,

esta barba por fazer onde um rouxinol

se esconde. E mais ainda assusta

a minha altura, este lugar de vertigem

e palavras poderosas, a presença

de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer, o estremecimento que corre

nos meus ombros. Embora nada peça, sabem que sou um pedinte. E quando entro nas casas os meus gestos afeiçoam-se a alguma coisa enigmática que contorna o pavor e o entrega

por não se saber que espécie de vida

ou de morte vem comigo. Obviamente, eu abençoo quem me deixa entrar, dou a entender

que alguma coisa brilha nas minhas mãos

e posso matar a fome com uma ou outra palavra próxima do amor, um dedo nos cabelos

de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa em silêncio e em silêncio aceitei

que me aguardassem com as inefáveis sombras que vejo nos outros e tento decifrar para meu contentamento. Mandaram-me sentar

e deram-me de beber. Esse álcool

reconfortou-me a alma. E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo e nítido, observando a mulher nesse sem fim das coisas, onde todos os mistérios avançam

para uma explicação que a qualquer momento pode irromper do espírito como uma explosão.

Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas

que me ofereces, o teu rosto é-me familiar

se recuar à infância e subitamente perceber

que também pertenci ao exercício desta árvore

que nesta sala se levanta. Em frente,

na fotografia que o meu olhar alcança

porque me alcança o olhar que dela

se desprende, inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar, mais que um rumor ou um fio ténue com o nome de todas as coisas inesperadas que me aconteceram na vida, sempre que me franquearam a porta e deixaram entrar. Agora, com a memória de ter estado

em tua casa e ter recebido a graça de alguma atenção, eu, que sou pedinte embora nada peça,

entrego-te este sulco da desordem

sobre a página em branco e agradeço-te

com o conhecimento de um outro mundo

ainda mais inexplicável. Não tendo havido despedida, sabe que permaneço

e na encruzilhada das dores que me couberam viver não esquecerei o teu nome no dia

em que também tiver partido

e mais nenhuma luz houver além daquela

que ilumina o teu rosto na solidão da noite.

Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar. Que me seja a alba a tua tolerância.

 

 

BILLIE HOLIDAY: SOLO

 

Não tenho mais visões, não tenho obsessões,

sigo a trompete apenas, a ternura

é esse outro lado das coisas em que me perco

porque nada mais me chama e nada mais

revejo no lentíssimo torpor que pelas veias

senti outrora num azul imenso

que mais do que tocar-me me esvaía

no inferno do mundo e em seus ramais

de pura nostalgia, tristeza e desencanto.

Só ergo agora a voz para esquecer

e ter o olhar toldado para as coisas

que como grito lancinante escuto no silêncio

enquanto outras vozes me chamam,

outros indícios me vêm perturbar

quando pressinto a noite antíquissima

em que se esconde o sobressalto da serenidade do meu tempo. Nem já a sombra aguardo

ou o sentido destes brilhos espessos,

estas chamas que consomem o meu corpo

e a minha alma no mistério de tudo

e no liminar enigma que adensa nos outros

os sentidos, certa atenção venal, um desespero

que em fumos e rastros me pergunta

por esta vida que já não é minha

e no coração recebo como salvação e ruína.

Sigo a trompete, o subtil sinal da despedida.

Só ergo agora a voz para esquecer.

 

 

 

INTERVALO PARA LEONARD COHEN

 

E o mistério? Ainda transfiguramos

o mistério no rastro inacessível da verdade,

ainda trocamos o crepúsculo por outra linha fugaz no horizonte ígneo? A sombra fugitiva

que habita o nosso corpo, a alma,

a insegura alma de existirmos?

 

Nascem e morrem, as cidades,

sucedem-se os dias, as estações, os anos,

esfuma-se o tempo, foge entre os dedos a vida

que nos religa à fuga uma outra vez ainda,

a solidão ameaça, procura-nos a morte

com o medo de querermos instintivamente resistir, a verdade efémera, o amor.

 

Outro cigarro?

 

Outro mistério, ainda,

na auréola de fumo sobre as cabeças

- e o mistério, a que devastação conclama?

 

O destino das coisas, o mundo de instantes

à deriva?   

 

 

FRIDA KAHLO E OS DESENHOS DO MUNDO

 

Creio que a adolescência tocou o teu rosto

para fazer crescer a perturbação ainda hoje visível no olhar, o modo surpreendente

como os cabelos deslizam para a brancura

são a prova inequívoca do enigma, o vaticínio marca-te no rosto um pouco dessa tristeza avassaladora e ténue de quem atravessa

uma cidade para se perder no instante

de uma fonte, mão que toca a cor imponderável

das coisas para extrair do passado

uma medida de ferro, um fio de oiro,

um pássaro azul. Vejo-te passar nesse navio longínquo que há-de um dia pertencer ao vento, decifro o reflexo de um brilho que te sobe

para os ombros como o frágil ramo

de uma árvore vivaz e suavemente flutua

sobre a transparência para identificar o anjo

que te precede, um pouco após o sinal redutor da inocência e a infinita doçura de quem foi perseguido e arrancou das entranhas

subtílimos silêncios para resistir ao assédio

das pedras, os poderes aniquiladores, o rumo das coisas quando a tempestade triunfou

sobre a tempestade e a memória entregou

o resgate de não haver resgate.

Deste lugar te avisto e avisto o mar,

esta passagem conduz ao indizível encontro com as estrelas, sol e noite, os mínimos percalços que a natureza desoculta das sombras e faz explodir em fragmentos translúcidos

onde se inscreve a mensagem,

uma última notícia do paraíso perdido

em que um traço de luz corresponde

ao augúrio da brisa, a voz secreta que nos une

e separa, a palavra onde o deslumbramento

é um labirinto que pela alucinação

percorremos no incontornável fulgor

de um momento perpétuo.

 

O autor - Nasceu  no Porto (1953) e vive em Lisboa. Escreveu, entre outros, “Passagens secretas”, “Arte do regresso”, “O claro interior”. Traduzido em francês, inglês, italiano, hebraico, romeno, espanhol e holandês.

 

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